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Seminário da Feiticeira

FILOSOFIA DO DIREITO

SEMINÁRIO DA FEITICEIRA

Direito à mentira talvez sempre também[1] – Torquato Castro Jr.

DIREITO À MENTIRA

Seminário da Feiticeira

Seminário da Feiticeira

22/12/2014

Por Torquato Castro Jr.

Minha intervenção como debatedor neste evento, penso, devo-a principalmente ao intuito de nossos gentilíssimos anfitriões de que eu propicie uma porção de veneno ao Seminário da Feiticeira. Isso porque vem sendo, certamente apenas por coincidência, esse o meu papel, em nossos encontros anteriores.

Decidi, assim, inverter o tema do “direito à verdade”, perguntando pela legitimidade do seu oposto, de sua negação; um possível “direito à mentira”, nas precariedades do humano.

A proposta de ir ao extremo oposto, para ver no que dá, é crítica. É, propriamente, diabólica. Espero que, ao final, isso permita abrir perspectivas sobre problemas filosófico-jurídicos, desde um ângulo incomum, mas não menos rico, em termos heurísticos: o ângulo de explorar a contradição, da razoabilidade de não se ser razoável; de se ser livre da razão, pela razão mesma da liberdade.

Daí a alusão ao diabo mesmo, metaforicamente, para estruturar a minha intervenção; um diabo, porém, digamos, “humanista” ou “humanizado”, mais ou menos como o Mefistófeles, no “Fausto” de Goethe, que reiteradamente quer o mal, mas reiteradamente realiza o bem (stets das Böse will, und stets das Gute schafft).

Aqui, neste encontro nosso, onde se diz, como o disse o Prof. Eros Grau, estar em Gemeinschaft (comunidade) e não em Gesellschaft (sociedade), num lugar onde a presença de Heidegger se evidencia através das referências, em diversas falas, a Hannah Arendt, sinto-me à vontade para remeter-me à etimologia de “diabo”, lembrando a sua dualidade de dia-bolos.

Invoco, assim, um diabo humanista, um diabo dissoi logoi, um espírito de negação na sua própria estrutura arquetípica (Ich bin der Geist, der stets verneint), que há-de servir a desígnios divinos, eventualmente a contragosto de si próprio, numa espécie de anti-sócrates trágico, que tende para o bem,mesmo sem querer.

Recordo a passagem em que Goethe fez o seu Mefisto comentar a disposição de Deus, de dialogar (e apostar) com o diabo, como uma atitude “humana” (menschlich). Também humana seria essa característica no diabo, a de ir tratar com Deus, aqui e ali? Se a resposta for sim, retratada está a fratura original da condição humana, condição de divindade falida, como a do diabo. E seria, pois, nessa condição humana decaída, com a qual muitas vezes nos fazemos representar, que cabe a dimensão não só da mentira propriamente dita, mas de um suposto direito à mentira, um talvez “direito humano”, num sentido muito peculiar. Como disse o Senhor Deus, na peça de Goethe, “erra a pessoa, tanto quanto intente” (es irrt der Mensch, solang er strebt).

Quero confessar, pois, em desfavor do diabo e de sua invocação que ele me trouxe, ao longo das falas precedentes, das conversas com os colegas nos intervalos, à experiência intra-subjetiva de sucessivos fracassos, relativamente a todos os prévios esboços desta minha presente intervenção. Esses fracassos fáusticos, cuja ocorrência preciso narrar para situar meu argumento acerca do fracasso também e das promessas descumpridas de um suposto direito à mentira – que não há, realmente, mas bem pode haver, a depender das circunstâncias, mesmo da diabólica “equidade”. Diz o Mefisto sobre a sua totalidade como fragmento: eu sou uma parte da parte, que, no início era tudo (Ich bin ein Teil des Teils, der anfangs alles war).

Minha sucessão de fracassos se inicia na abertura, sexta-feira à noite, quando da fala do Prof. Tercio. Ao longo de sua exposição, o mestre se foi desenvolvendo e desdobrando num raciocínio primoroso, enquanto eu, do meu canto, inquietava-me com a sensação de que, de fato, muito do dito eu também tinha pensado, que talvez meus pensamentos não sejam tão meus, e no quanto é possível ser mentira o enunciado de que eu sou eu, como suspeitam neurocientistas atualmente.

Foi quando a reflexão sobre a palavra humana me trouxe à lembrança os memes, Richard Dawkins, Daniel Dennett. Os seres humanos somos hospedeiros replicando as unidades transmissíveis de herança cultural, ideias, conceitos, comportamentos, que se espalham de pessoa a pessoa, na sociedade. Cada meme é a postulação de um elemento, de uma unidade constatável e descritível, uma protagonista para uma narrativa causal, a explicação para a sucessão de mudanças na cultura, pela história, como uma história natural, uma história de elementos da natureza, como história dos elementos, carbono catorze, como que uma “geologia da cultura”.

Por essa filosofia, meus pensamentos serem meus é o que menos importa. Tudo que é subjetivo, as qualia, é também inefável, incomunicável e irrepetível. São meus esse padrões de conteúdo mental somente tanto quanto o são os meus próprios genes. Portanto, minha sensação de não serem meus os pensamentos que penso quando vejo o Prof. Tercio pensando, não seria senão a minha diabólica condição de ser uma mentira de mim mesmo.

Aí o ponto! Eis que eu tenho direito à mentira de que eu sou eu! Ainda quando verdade que não sou. E direito à mentira de que meus pensamentos são meus! E direito à mentira de saber minhas as minhas decisões.

Se eu não tenho esses direitos, eu não tenho nenhum outro.

Direito à mentira e direito de mentir: farei essa distinção menos com cunho analítico do que com o propósito de explicitar a amplitude da ideia com que pretendo lidar aqui.

Serei certamente um advogado do diabo, se seguir meu plano original. Talvez eu consiga defender esse possível direito à mentira, sob a ótica crítica de um pressuposto saber “jurídico”, e de um direito ao direito, como o direito a uma ferramenta para a liberdade, para o Estado de Direito, que sempre talvez possa vir a ser entre nós, nunca completamente sendo; nós, camponeses diante da lei, no conto de Kafka, inspirador do belo livro do Prof. Eurico, cultuando uma possibilidade até a impossibilidade.

Daí o sentido da busca da Prof. Leora Bilsky, de provar que o julgamento de Eichmann é um precedente jurídico, não apenas político. Minha atenção, então, volta-se para o um sub-campo da política, para a política da anti-política, para o direito. Desdobro-me, para isso, à condição de advogado. Quero fazer de minha participação como debatedor, aqui, uma advocacia do direito, um elogio ao direto, o que é uma advocacia de um meme, a advocacia de uma coisa que eu pensei que pensei, mas que se replicou em mim, por mim, quando eu me comuniquei, e eu nem sei se soube que sim…

Vê-se o direito como transmissão, herança. O direito é a ideia de que há um saber decidir, de um ensinar e aprender, de uma especialização profissional, uma especialidade, um saber submeter, saber subsumir, saber pensar, que vincula a decisão no contexto de uma disputa controlada, de uma lide, tornando-a criticável, sendo a vinculação, em qualquer que seja a direção que se dê, uma responsabilidade quase religiosa, de autenticidade filosófica, coisa para quem leva as coisas a sério, conforme ficou claro na fala do Prof. Eros Grau, justificando por que, marxista, portanto iconoclasta, se submeteu a decisões que não eram suas, mas eram vinculantes, estavam tomadas, e acatá-las, respeitar o decidido pelo legislador é simplesmente correto, é o jogo como ele deve ser.

Acreditar, apesar de Marx, que o direito liberta e é libertador é um direito garantido pelo direito, como direito à mentira, ou direito à ideologia, ou liberdade de ideologia, liberdade democrática.

Quando pensamos a categoria do direito à mentira sob o ângulo do direito-liberdade, do direito kantiano, ela soa como um oxímoro. A mentira, na medida kantiana, é sempre lamentável. Destrói o sujeito e a sociedade, ao menos naquela forma como o intelecto os recompõe e representa, na idealidade do als ob.

De minha parte, com direito à mentira quero me referir, por exemplo, à situação em que a alguém é dado como lícito crer que fato ou acontecimento, cientificamente comprovado como falso, ocorreu ou ocorre. Tanto faz crer que o sol é carregado por uma divindade numa carruagem invisível ou que um deus encarnou num humano ou que um humano morreu e ressuscitou ou tudo junto. Esse é o tratamento, humanisticamente tolerante, que os sistemas jurídicos dão à afirmação, pelos cidadãos, de certos dogmas religiosos ou supostos acontecimentos bíblicos, recusados pela ciência, como improváveis ou impossíveis. É a tolerância religiosa, o direito à religiosidade, o direito de crer num sentido, ainda que mentiroso, para as coisas.

Diferentemente, com direito de mentir, penso em outras situações em que a alguém é dada a faculdade de omitir ou falsear fatos, ou de não poder ser responsabilizado pelo próprio testemunho, por não lhe ser imputável perjúrio, tamanha é a exigência emotiva e estética no sentido da mentira, em determinados casos. Um direito do pai de mentir por amor ao filho, e vice-versa, não é verdadeiramente um direito, mas é também sempre. Um direito de mentir no sentido de educar, como no caso do Inaldo e o sobrinho, que o Prof. Tercio referiu em sua fala. A minha interpretação é que, no caso, Inaldo ter mentido que obedeceria à criança, quando não pretendia de fato fazê-lo, serve para mostrar à criança a verdade de que ela, criança, não tem poder sobre a conduta dos adultos. É bom aprender isso.

No processo civil, algumas pessoas não são admitidas como testemunhas, quase como se dela não se pudesse, então, esperar a verdade; aliás, a frequência da mentira nos depoimentos quaisquer, faz com que o testemunho seja considerado, à boca miúda, a “prostituta” entre os meios de prova, nomeação essa injusta com as respectivas profissionais, cuja posição na sociedade é testemunho de uma verdade estonteante: o ser humano é estômago e sexo, por primeiro e sempre também.

A palestra da Prof. Leora Bilsky, porém, nos traz a presença necessária do testemunho, mesmo quando nele predomine a emoção e certo falseamento, como aspecto inarredável ao humano, à compreensão humana da história, incluindo sempre o sentido do simbólico, sendo possível fazer analogia aqui de novo com a um direito a uma coisa não estritamente verdadeira, do ponto de vista empírico, mas radicalmente humana.

Ambas as situações do mentir apresentam-se como negação. E assim voltamos ao Mefisto, de par com o espírito que insistentemente nega. Vou estender o argumento: haveria um direito de mentir, no possível “direito” do prisioneiro de subornar seu carcereiro, como estado de necessidade. Quem vai condenar aos abençoados que escaparam ao destino Auschwitz, eventualmente subornando guardas nazistas? Eis assim, o estado de necessidade, a legítima defesa; excludentes, dirão juristas: excludentes de anti-juridicidade: dupla negação. O diabo em dobro. Se uma pessoa mata outra, é lícito, embora não pareça, então. Mas não é e é. O “não matarás” absoluto é humanizado, excepcionado, “equitificado”.

Aqui ainda não há mentira, só exceção, a menos que suspeitemos da exceção como mentira, o que ela sempre também pode ser; mas vou associar isso a outros aspectos problemáticos, para demonstrar meu ponto de vista, quanto aos insights de direitos desde a mentira.

Alegar-se-á que, no Estado que garanta os direitos humanos aos prisioneiros, não se precisa desse direito de fugir, ou de subornar para fugir, nem caberia falar-se nesse suposto direito de mentir. Que seja. Mas antes, perceba-se que a condição da garantia dos direitos humanos, aos prisioneiros, precisaria estar satisfeita para esse argumento ser válido. Tal não é o caso, por exemplo, do Brasil, onde a realidade carcerária é dantescamente infernal e seus pavilhões desumanos são sistematicamente ocultados da população, nunca se tornando a sua reforma uma agenda atual.

É também direito de mentir o de negar fatos da vida pessoal, a quem não tem o direito de perguntar, poucas sendo as situações em que esse véu de proteção, de omissão e, indiretamente de possível mentira, deva ser violado. O direito à privacidade é direito à omissão, em parte, mentira, em parte, não, e servirá, por vezes, a encobrir ilícitos, isso é óbvio. Mas mantém-se necessário, contrafaticamente, ainda assim, segundo o credo dos juristas hoje, pela vitória de um meme, o direito, de um sentido constitutivo da dimensão humana, da liberdade individual, pessoal e impessoal ao mesmo tempo.

Agora, depois de fazer alusão ao direito de mentir, volto ao direito à mentira. Preciso antes de um segundo esclarecimento: não vejo o direito como avesso à política, mas como uma prática integrante dela, que em certos pontos parece contradizer a própria política. Isso traz de volta à exposição da Profa. Bilsky, que destaca a importância do precedente do caso Eichmann, como um precedente jurídico e não político, e pressupõe, assim, a distinção entre o político e o jurídico, distinção essa sempre necessariamente política. Eu advogo, desde outro ângulo, o mesmo meme, de que o direito é algo que não é a política, destaca-se da e na política, mesmo quando é sempre também política, sendo ele, como vejo, uma política da anti-política, em que o certo e o devido assumem a forma de saber, antes de ser como são sempre também um querer.

O direito está, penso, nesse jogo de persuasão, no fazer passar por saber, ou no fazer crer existir um saber, onde sempre também se terá o querer. Sendo um, é mais de um, é o diabo, sendo que não passando por mentiroso, mas por als ob indelével, por um just-so humano; como o depoimento testemunhal e seu inextrincável valor histórico e jurídico, mesmo quando sua verdade seja sempre também relativa àquele hospedeiro da teia memética de seu tempo e lugar.

Por fim, vou trazer o diabo como ele me chegou, na pergunta, não sei se inocente, de alguém a mim: mas isso que está no relatório da comissão, não já se sabia? Levei o comentário à Profa. Leora, que me apontou o papel simbólico, inserido nos aspectos de uma justiça restaurativa, humana, do reconhecimento oficial, contido no relatório. Certo! Eu sabia que isso ela diria. Mas esse relatório é político. Ou é jurídico? Pede responsabilização, corroborando o direito como saber. Mesmo sem ter poder decisório, mesmo sem ser interpretação autêntica, mesmo sem cunho normativo, mesmo sendo fato, quer ser saber e se apresenta como saber, porque é o saber que permite dizer, por quem não foi chamado para dizer, que é dever responsabilizar.

É a declaração do direito, sem jurisdição. O que me faz, por inverso, lembrar de toda uma discussão de processualistas quanto à possibilidade jurídica de julgados meramente declaratórias, quando o judiciário não se deva conceber como órgão consultivo. Que uma ação seja meramente declaratória é, em parte, uma mentira, mas uma mentira útil, porquanto dispensa uma condenação e sua constitutividade é relativa à segurança, para eventual prova futura de fatos e direitos, em âmbito indefinido. Que o relatório da comissão seja apenas fático, seria outra mentira. Dos fatos “em geral”, já sabíamos todos.

Digo isso, porque concordo que o relatório deva ser assim, que deva incluir a verdade humana do simbólico e a verdade ficcional do saber jurídico. Porque esse é o meme do direito, o da decisão devida, o da decisão certa, que se constitui também numa voz política.

Assim realiza-se o direito como uma política da verdade e do correto, segundo um antigo discernir entre as coisas, que se replica em nós, neste nosso debate e além de nossas vidas. Talvez o direito à mentira seja sempre um excesso distorcido do direito à veracidade do humano, à veracidade precária de um deus falido ab ovo.


[1] Texto desenvolvido a partir de intervenção oral no Seminário da Feiticeira, em 29 de dezembro de 2014, em Ilhabela, São Paulo.

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