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PROCESSO PENAL

As Circunstâncias Judiciais de Aplicação da Pena e as Garantias Constitucionais

APLICAÇÃO

ARTIGO 32 DO CP

CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS

CÓDIGO PENAL

DIREITO PENAL

GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

PENA

PERSONALIDADE DO AGENTE

Felipe Novaes

Felipe Novaes

11/03/2015

prisioneiro

I – Primeira introdução

O presente artigo está motivado na necessidade, percebida ao longo do estudo do direito penal, do desenvolvimento de abordagem crítica, baseada na efetivação das garantias conquistadas pela sociedade com o passar dos séculos, busca humanizar e, com a licença da expressão, constitucionalizar a cominação e a aplicação da sanção penal.

O trabalho não pretende ser exaustivo, e não serão abordados de forma completa os temas; pelo contrário, certamente pecaremos pela falta e, até mesmo, pelo excesso de colocações aparentemente desnecessárias ao desenvolvimento da abordagem.

O direito penal, desde muito, vem apresentando evolução no sentido de maior humanização, e o fenômeno se enquadra certamente no abandono das formas tradicionais e modernização de conceitos antes estáticos, imóveis, diríamos imutáveis.

O processo de substituição dos formatos estatais, afastando das estruturas de poder a influência de valores meramente religiosos e morais, consiste em causa indissociável dessa evolução. Aquilo que ficou conhecido como secularização – o afastamento dos valores meramente morais ou divinos rumo à sedimentação das descobertas científicas, iniciado a partir do século XV e fortalecido no século XIII por movimentos como o iluminismo e a Revolução Francesa, o Aufklärung da Alemanha, entre outros que se espalharam por toda a Europa ocidental – acarretou (in)diretamente modificações evolutivas essenciais no Direito e, em especial, no direito penal. Talvez um dos maiores pensadores do século XX, fundador da filosofia analítica mais associada à lógica matemática do que às ciências sociais e humanas, Bertrand Russell[1], em suas palavras explique melhor:

(…) o iluminismo esteve ligado à difusão do conhecimento científico. Enquanto no passado muitas coisas haviam sido aceitas com base na autoridade de Aristóteles e da Igreja, agora a moda é seguir o trabalho dos cientistas. Assim como na esfera da religião, o protestantismo lançara a ideia de que cada qual deveria julgar por si, igualmente, no campo científico, agora os homens deviam observar a natureza por si mesmos, em vez de confiar cegamente nos pronunciamentos daqueles que representavam doutrinas há muito estabelecidas (…). O iluminismo foi essencialmente uma revalorização da atividade intelectual independente que pretendia, literalmente, difundir a luz onde até então prevaleceram as trevas.

Notadamente a evolução das ideias causada pelos movimentos citados, em especial pelo iluminismo, culminando na Revolução Francesa, influenciou decisivamente o estudo e a prática do direito penal. Nos Estados modernos regidos pelos princípios racionalistas humanitários que seguiram as reformulações, o direito penal assume papel importantíssimo enquanto limitador da fúria punitiva estatal e, também, como regulador de condutas sociais extremante danosas aos valores e elementos mais importantes ao convívio harmônico da sociedade.

O direito penal adquire notadamente um papel secundário dentre as formas de resolução dos conflitos do homem em sociedade, somente sendo necessária sua intervenção nos casos realmente graves, quando não se conseguir (re)equilibrar o relacionamento entre integrantes da sociedade. O Ministro Nelson Hungria[2] já ensinava que as sanções penais são o último recurso para conjugar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. Não é outra também a lição do mestre René Ariel Dotti[3] quando afirma que segundo a clássica lição da doutrina, apoiada na jurisprudência, o Estado somente deve recorrer à pena criminal quando não houver, no ordenamento positivo, meios adequados para prevenir e reprimir o ilícito.

Assim, a evolução do direito penal caminha inevitavelmente para a percepção de que sua intervenção na vida social deve ser mínima, somente ocorrendo quando extremamente necessária, e incompatíveis se tornam tanto concepções do Estado Liberal, que entendiam a necessidade de afastamento completo do Direito da regulação do convívio social em prol de teorias de autorregulação (a mão invisível que condiciona a economia e a sociedade), quanto do Direito como regulador das condutas em busca de um melhor e mais rápido desenvolvimento social, pregado no Estado Social, o Welfare State.

No entanto, também não se apresenta uma defesa da total desregulamentação tendenciosamente perseguida pelos neoliberais de plantão. A sociedade complexa e sistêmica em que vivemos não mais permite que o Direito ou que o próprio Estado possa definir tudo o que há de relevante. O ideal de uma sociedade organizada com um centro de valorações fixas está ultrapassado, e sua organização é extremante complexa, repleta de desigualdades que levam à formação de subsistemas, necessariamente regulados de forma desigual em busca da real isonomia, porquanto a desregulamentação, pregada entre outros por Helmut Wilke e Gunther Teubner, não se apresenta como solução para a problemática dos diversos conflitos sociais.

Por outro lado, movimentos que enxergam no direito penal a solução para toda a problemática complexa da sociedade subsistêmica e desigual, utilizando-se de movimentos de massa em busca do endurecimento das normas penais vigentes, bem como a enxurrada de novos tipos penais, o afastamento de garantias constitucionais e legais, a revogação de benefícios aos condenados, entre outras medidas, são falaciosos e estão distantes das efetivas soluções necessárias à problemática questão da criminalidade violenta.

A propaganda em favor do endurecimento realizada por meio das agências de comunicação de massa, patrocinadas por movimentos de lei e de ordem, tende a consequências bem diversas das prometidas, as quais diríamos perigosas. Os Professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini[4] enfrentam a questão e apontam três efeitos alarmantes das modificações do direito penal baseadas na influência causada por tal expansão desenfreada:

(…) as três principais e drásticas consequências de todas as transformações do Direito Penal seriam: 1) o risco de um acentuado déficit operacional (inoperatividade); 2) o perigo de que o Direito Penal cumpra função puramente simbólica; 3) o alto custo para os direitos e garantias fundamentais (…) As três consequências que acabam de ser recordadas, se conjugadas, podem implicar a absoluta deslegitimação do Direito Penal tradicional, a partir do momento em que ele deixa de cumprir seu papel essencial de instrumento de redução da violência (transformando-se, ao contrário, em mecanismo propulsor desta mesma violência.

As críticas desenvolvidas pelos autores estudiosos do direito penal a essa tendência desenfreada de produção legislativa, à criação de novos tipos penais e a agravação na cominação e execução das sanções de natureza penal não vêm de hoje, como se pode inferir das palavras do jurista alemão Carl Ludwig von Bar[5] quando afirma:

Ali onde chovem leis penais continuamente, onde por qualquer motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas se resolvam com novas leis penais ou agravando as existentes, aí não se vivem os melhores tempos para a liberdade – pois toda lei penal é uma sensível intromissão na liberdade, cujas consequências serão perceptíveis também para os que a exigiram da forma mais ruidosa –, ali se pode pensar na frase de Tácito: pessima respublica, plurimae leges.

Portanto, percebemos com facilidade que os caminhos seguidos hoje na sociedade brasileira, em muito por influência dos detentores dos meios de comunicação e dos integrantes de movimentos favoráveis à maximização do Estado Policial, existente dentro do Estado de Direito em maior ou menor proporção, levam a problemas irreversíveis no campo do direito penal, refletindo inevitavelmente sobre a aplicação da pena, pois por meio desta é que se efetiva o direito de punir. Muitas outras são as consequências apontadas pelos estudiosos do tema, o Professor argentino Eugenio Raul Zaffaroni[6] em excelente obra de direito penal sustenta a hipótese de ampliação dos conflitos sociais, especialmente nas classes mais inferiores da sociedade, pois dela é que são selecionados tanto o estereótipo criminoso quanto os integrantes das agências estatais responsáveis pela persecução penal, bem como a expansão dos tipos penais, sem, contudo, a (des)qualificação técnica e profissional dos envolvidos na persecução acabam por gerar a chamada “cifra negra”, em outras palavras a impunidade real ou, simplesmente, sensitiva, perante a incapacidade de efetivação do direito de punir sobre todos aqueles indivíduos que praticam alguma ação delituosa.

A presente introdução se faz essencial por demonstrar de que local analisaremos a questão da aplicação das penas no direito penal brasileiro. Não pretendemos apresentar um trabalho que sirva à formação do conhecimento de possíveis leitores, o que desejamos é estimular a discussão acerca do assunto, desenvolvido de forma tímida e superficial, ao menos, quando analisado sobre o prisma da Teoria do Garantismo Penal. Entretanto, antes de iniciar o estudo da aplicação das penas, devemos entender suas funções, e justificada está uma segunda introdução.

II – Segunda introdução

Torna-se necessário, antes de prosseguirmos no estudo específico do tema, entender os fins a que se destinam a aplicação e a própria cominação das penas, o estudo das funções das penas que servem para tornar legítimo o poder punitivo estatal. Conceitualmente, a sanção penal consiste na consequência jurídica prevista para aquele que pratica a conduta incriminada, e são indissociáveis conceitualmente as imagens de pena e castigo. Conforme ensinam inúmeros doutrinadores[7], a pena consiste no mal que será imposto a quem pratica o delito. No entanto, não devemos entender que o conceito se confunde com as funções da pena, caso contrário estaremos afirmando, necessariamente, sua função de retribuição, nos moldes das teorias absolutas, deixando de lado as teorias relativas de caráter preventivo da pena, seja em sentido geral ou especial, seja positiva ou negativamente.

As teorias absolutas tentam negar que a pena tenha um fim qualquer, reduzem sua apreciação à mera retribuição ao autor do fato lícito do mal causado pela prática do delito, ora defendendo simplesmente os valores éticos, ora apresentando como fundamentos a defesa do ordenamento jurídico. A maior referência das teorias absolutas está em Kant, que entendia a função da pena na retribuição do mal causado pelo delinquente, com o fim de garantir os valores éticos; a cominação e aplicação de tais penas devem ser norteadas no sofrimento causado pelo delito. Nas palavras do mestre Zaffaroni[8], as teorias absolutas tendem a a) retribuir b) para garantir externamente a eticidade c) quando uma ação objetivamente a contradiga d) infligindo um sofrimento equivalente ao injustamente produzido (talião). As teorias absolutas foram defendidas por muitos outros especialistas[9] do direito penal, além de estudiosos das ciências sociais relacionadas ao Direito.

Com outro enfoque, as teorias relativas acerca das funções das penas empreendem em sentido teórico a limitação do poder punitivo, e elas se desenvolvem no sentido de legitimar o poder punitivo do Estado, como explicam Zaffaroni e Nilo Batista, a partir das funções manifestas das penas, embora não possamos esquecer de que a pena também apresenta funções latentes importantes ao estudo do tema. As teorias relativas são desenvolvidas ora sobre os indivíduos integrantes da sociedade como um todo, ora sobre os indivíduos delinquentes – teorias da prevenção geral e da prevenção especial –, sendo que ambas incidem de forma positiva ou negativa.

De maneira resumida e superficial, podemos entender que a teoria da prevenção geral negativa pretende, por meio de sua atuação sobre o todo social, dissuadir os indivíduos da prática de crimes, ou seja, por medo da aplicação futura e certa da sanção penal, os indivíduos que não delinquiram continuarão sem fazê-lo. Como ensina seu expoente Feuerbach, a sanção penal produz uma espécie de “coação psicológica” nos integrantes da sociedade levando a dissuasão da vontade de delinquir. Por outro lado, a teoria da prevenção geral positiva, também incidente sobre os integrantes da sociedade, mesmo e principalmente os não delinquentes, visa reforçar[10] os valores éticos ou a confiança no sistema social, com a finalidade de evitar a prática de condutas delituosas, e a “coação psicológica” é afastada em nome do consenso, de Günther Jakobs, necessário à manutenção do convívio social harmônico.

As teorias relativas da prevenção geral devem receber crítica, seja nas versões de dissuasão, seja nas reforçadoras, pois a cada delito cometido se estará negando sua eficácia. Se seu caráter é de atuação sobre o todo social com a finalidade de impedir a prática de comportamentos proibidos, sob a ameaça da aplicação de pena ou sob a necessidade de confiança do público nos sistemas estatais e no consenso social, e tais teorias serão negadas e se apresentarão em crise a cada delito praticado. Outro aspecto relevante consiste na possível ampliação ou expansão, como prefere o Professor espanhol Jesús-Mária Silva Sánchez[11]objetivando uma maior eficácia na prevenção, pois quanto maior o número de comportamentos proibidos sobre a ameaça de pena, maior será o temor dos indivíduos. Assim, as teorias da prevenção acabam por ser ensejadoras de movimentos como o de lei e de ordem, ou de simbolização do direito penal.

As teorias da prevenção especial são desenvolvidas sob viés diverso, não visam mais à coletividade, e sim à prevenção de novos delitos por aqueles que já delinquiram. Assim como aquelas, também são apresentadas em dois modelos diversos: o positivo e o negativo. Positivo enquanto possibilidade moralizante, isto é, acreditam seus defensores que mediante a aplicação concretizada da sanção penal o Estado estará criando a possibilidade de moralizar o delinquente, restituindo a ele os valores corretos, evitando que volte a praticar infrações penais.

Outrossim, a teoria da prevenção especial negativa visa à neutralização ou à inocuização do delinquente, isto é, por meio da aplicação concreta da sanção penal proporcional e necessária o delinquente será afastado do seio social, garantindo assim a paz e o desenvolvimento da sociedade[12].

As teorias da prevenção especial também merecem críticas, embora pareçam as mais sensatas e próximas de um ideal teórico perfeito. Há muito é sabido que a privação de bens jurídicos dos delinquentes não provoca exatamente a possibilidade de moralização. Desde Beccaria, passando inevitavelmente por Foucault[13], têm-se criticado os modelos tradicionais de aprisionamento, bem como sua eficácia na reeducação ou remodelação dos encarcerados, e a adoção pelo direito penal de teorias cognitivistas de remodelação do comportamento/personalidade do indivíduo na prisão é, muitas vezes, falaciosa.

Mesmo onde os modelos prisionais são “sérios”, considerada a real neutralização, pelo completo afastamento do indivíduo da sociedade, muitos prejuízos ocorrem. São os ensinamentos profundos do sociólogo Erving Goffman[14]– em excelente obra de leitura obrigatória para os estudiosos do direito penal –, quando desenvolve sua pesquisa sobre as transformações sofridas pelo eu interior dos internos das instituições totais. O autor conclui que essas instituições têm o poder de causar deformidades, reestruturação da personalidade dos que ali permanecem por tempos mais longos, além de serem absolutamente ineficazes aos que ficam pouco tempo. Demonstra o autor que os internos, ao saírem dessas instituições, em sua maior parte, estão incapazes para o convívio em sociedade, estão institucionalizados.

Percebemos, portanto, que as teorias da pena se encontram todas em crise. Acreditamos que o caminho seja o da combinação das teorias, sob visão constitucional. Se a aplicação das penas é, como já afirmado, um mal necessário, este deve ser seu princípio norteador, e somente haverá aplicação de pena quando se fizer necessária à manutenção do convívio social pacífico, observadas todas as garantias constitucionais e legais deferidas aos indivíduos em sua totalidade.

Em um sistema de garantias, todas as premissas fundadas no princípio republicano devem ser observadas, e o maior defensor do garantismo penal, o italiano Luigi Ferrajoli, afirma que o sistema de garantias não é perfeitamente, e, sim, tendencialmente satisfazível, elencando dez axiomas do garantismo, o chamado sistema de garantias (SG), importantíssimo para o entendimento das referências que faremos a seguir. Para o autor italiano, os dez axiomas são: nulla poena sine crimine (A1); nullum crimen sine lege (A2); nulla lex (poenalis) sine necessitate (A3); nulla necessitate sine injuria (A4); nulla injuria sine actione (A5); nulla actio sine culpa (A6); nulla culpa sine judicio (A7); nullum judicium sine accusatione (A8); nulla accusatio sine probatione (A9); nulla probatio sine defensione (A10)[15].

III – As penas no direito penal brasileiro

O Código Penal brasileiro prevê três tipos de penas a serem aplicadas aos indivíduos que venham a cometer delitos. O artigo 32 do CP apresenta o elenco das três modalidades de pena afirmando serem a) privativas de liberdade; b) restritivas de direito; e c) de multa. Cada uma das penas recebeu nos dispositivos seguintes seu tratamento próprio pelo legislador.

No que tange aos crimes, as penas privativas de liberdade poderão ser de detenção ou de reclusão. Há muito a doutrina vem afirmando que tal distinção, além de desnecessária, demonstra extrema desatualização do diploma nacional. A verdade é que, mesmo tendo sofrido inúmeras modificações ulteriores à sua entrada em vigor, desde 1940, o diploma penal encerra dispositivos antigos, verdadeiros resquícios de um direito penal retrógrado e autoritário.

As penas privativas de liberdade cominadas, em termos abstratos pelo legislador, para cada tipo penal, consistem na possibilidade de impor, em virtude da prática da conduta típica, antijurídica e culpável, a restrição à liberdade do indivíduo, consiste no encarceramento, com funções teóricas de neutralização e moralização, já apreciadas. Conforme afirmamos, é sabido que tais funções dificilmente são alcançadas.

Com o intuito de minimizar os males da aplicação das penas privativas de liberdade é que se apresentam as penas restritivas de direito. No Direito pátrio, as penas restritivas de direito, embora autônomas, são aplicadas como substituição das penas privativas de liberdade, ou seja, após a condenação, o juiz irá, observados os requisitos legais, analisar a possibilidade de substituição, que, sendo possível, deverá ser feita.

A execução dessas penas tem apresentado alguns problemas, causados pela dificuldade de fiscalização por parte das agências estatais e judiciais do seu real cumprimento; tais dificuldades hodiernamente ensejam a busca, por alguns movimentos jurídicos sociais, de sua menor aplicação, sendo preferível, para eles, a aplicação das penas de encarceramento por serem, ao juízo deles, mais efetivas na punição e prevenção dos delitos.

As espécies de penas restritivas de direito presentes no Código Penal nacional são: a) prestação pecuniária; b) perda de bens ou valores; c) limitação de final de semana; d) prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; e e) interdição temporária de direitos. Nesse ponto, a doutrina tem observado que nem todas têm natureza de restrição de direitos; as penas de prestação pecuniária e de perda de bens e valores, por exemplo, têm natureza de penas pecuniárias, o que acarreta divergências quando do descumprimento e consequente conversão em pena privativa de liberdade. Parece-nos que a posição mais acertada está em negar tal possibilidade, por se tratar de dívida de valor, devendo ocorrer a execução, e não o retorno à privação da liberdade substituída. Esse é apenas um dos inúmeros aspectos discutidos no tema das penas restritivas de direito.

Por derradeiro, a pena de multa consiste em sanção penal de natureza pecuniária aplicável pelo juiz quando cominada expressamente no preceito secundário do tipo legal. O mecanismo da aplicação da pena de multa adotado pelo legislador após a reforma de 1984 foi o do dias-multa. O sistema (re)implantado pelo legislador possibilita uma melhor individualização da sanção pecuniária aplicada, que, tendo natureza de pena, deve ser proporcional ao fato praticado e deve ser personalíssima, não podendo, portanto, atingir os herdeiros e sucessores do condenado.

Entretanto, a questão que surge da apreciação das penas no Código Penal diz respeito à sua individualização. Esse processo se inicia na fase legislativa, e as agências políticas, ao decidirem sobre a incriminação primária de determinada conduta (observados os requisitos da fragmentariedade do Direito Penal), devem cominar de forma taxativa e proporcional as penas em abstrato cabíveis à espécie, iniciando a individualização. O segundo estágio da individualização das penas ocorre no momento da condenação, quando o julgador decide sobre a pena em concreto que será aplicada. Tal mecanismo será alvo dos próximos tópicos. Por fim, a individualização da pena se concretiza no momento de sua execução, quando, nos termos do Código Penal e da legislação sobre execução penal, as agências estatais (Poder Executivo) e as judiciais determinaram as melhores formas de execução (estabelecimento, progressão, isolamento, entre outros) no caso concreto.

Nos próximos tópicos deste estudo, abordaremos os mecanismos existentes para a individualização judicial da pena, teoria da aplicação das penas, especificamente na utilização dos critérios judiciais. Não temos a intenção de exaurir o tema, e não serão abordados todos os pontos referentes à aplicação das penas, mas somente aqueles que consistem em maior afronta aos princípios do sistema de garantias, em especial na aplicação das penas privativas de liberdade, espécie de pena preferida nos últimos séculos nas legislações penais.

A análise será desenvolvida sob perspectiva constitucional, sob a ótica de um direito penal de garantias, ou seja, de um direito penal comprometido com a realização e proteção das garantias individuais, tanto na teoria quanto na prática observadora dos axiomas do sistema de garantias.

IV – Sistema de aplicação das penas

A aplicação da pena consiste no sistema adotado pelo juiz a fim de determinar a pena aplicável ao delinquente, tendo em vista a comprovação de ter sido sua conduta típica, antijurídica e culpável. No Brasil, o legislador determinou de forma expressa o procedimento a ser adotado. O artigo 68 do Código Penal dispõe que o juiz atribuirá a pena observando três momentos ou fases de aplicação: primeiro, serão observadas as condições judiciais do artigo 59 para determinar a pena-base; no segundo momento, incidirão as agravantes e atenuantes; por fim, terceira etapa, o juiz verificará as causas de aumento e diminuição da pena.

A primeira fase que determina a pena-base a ser imposta ao delinquente apresenta elementos que concedem ao juiz extrema discricionariedade, mesmo com a necessidade de fundamentar os motivos de o cálculo ter levado àquela quantidade de pena-base. Os elementos são por demais subjetivos e, muitas vezes, fazem supor tratar-se de reprovação do autor do fato, pelo o que é, e não pelo o que fez. Certamente a doutrina é unânime em afirmar que o direito penal moderno se enverga sobre o julgamento dos fatos criminosos praticados por determinados agentes, mas não tem o poder, nem mesmo a missão de julgar a moral, a liberdade de condução ou o modo de vida adotado pelo autor de tais condutas, salvo quando em si ilícitas[16].

Como ensina Salo de Carvalho[17], devemos diferenciar o direito penal do autor do direito penal do fato, sendo este último a única opção republicana. Após o fenômeno da secularização, o Direito sofre inevitável e necessário afastamento de valores morais, além de estar concedida ampla liberdade de condução da vida particular. As constituições racionalistas republicanas deferem aos cidadãos a possibilidade de livre escolha de comportamentos dentro dos limites, empiricamente aferidos, do lícito; não existem padrões determinados, ao contrário, a desigualdade é preservada pela verdadeira isonomia, e não devem existir modelos ou homens ideias. No mesmo sentido, as palavras do mestre argentino Zaffaroni[18] quando se refere ao direito penal do autor: este direito penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. O autor argentino ainda explica que o direito penal do autor considera a infração penal um estado de pecado jurídico, mas para outros teóricos desse tipo de direito penal o crime se afasta do pecado, e o problema passa a ser enfrentado a partir da periculosidade do autor. Difere-se do direito penal do fato, pois este

(…) concebe o delito como um conflito que produz uma lesão jurídica, provocado por um ato humano como decisão autônoma de um ente responsável (pessoa) que pode ser censurado e, por conseguinte, a quem pode ser retribuído o mal na medida de sua culpabilidade (ou seja da autonomia da vontade com que atuou).

Assim, podemos afirmar que é na primeira fase desse processo trifásico de aplicação das penas que os maiores problemas são encontrados. Os elementos apresentados pelo dispositivo legal que devem ser analisados pelo juiz para, entre outras finalidades, quantificar a pena privativa de liberdade aplicável ao condenado, são deveras abertos, permitindo uma indesejável e perigosa discricionariedade, levando à suposição falaciosa de que a pena será quantificada de acordo com elementos subjetivos do autor do fato. Vejamos a explicação do ilustre Professor Heleno Fragoso[19]:

(…) manda a lei, aqui, considerar elementos que permitem avaliar a maneira de ser do agente (antecedentes, conduta social, personalidade) e a reprovabilidade do fato punível praticado (culpabilidade, consequências e comportamento da vítima)… Por isso mesmo, a personalidade do agente passa aqui ao primeiro plano, assumindo posição preponderante na determinação da pena. O juiz ajusta a pena ao autor concreto do crime, atendendo às peculiaridades de sua personalidade moral (caráter), e examinando se a conduta delituosa constitui fato acidental ou se é expressão da maneira de ser do acusado (sem grifos no original).

É fácil perceber pela citação que os elementos do artigo 59 do Código Penal confundem a questão de o direito penal, mais especificamente da aplicação da sanção penal, ter incidência sobre o indivíduo pelo que é ou em virtude do ato típico, antijurídico ou culpável praticado. Por isso mesmo, torna-se necessário analisar alguns dos elementos contidos no dispositivo.

V – As circunstâncias judiciais

A primeira das circunstâncias judiciais contidas no artigo 59 do Código Penal é a culpabilidade.

O estudo da culpabilidade no direito penal se apresenta sob dois aspectos distintos, mas interligados, e ela é necessária no momento de constatação de existência do delito. Nas palavras de Salo de Carvalho, a culpabilidade se apresenta de forma dúplice, servindo para avaliar se o homem, socialmente referido, naquelas circunstâncias fáticas, possuía autodeterminação e possibilidade de agir de modo diverso; o segundo momento de análise da culpabilidade consiste na aplicação da pena, a culpabilidade serve para atribuir a quantidade de pena aplicável para a reprovação, isto é, dimensionando a culpabilidade da conduta.

A culpabilidade exerce papel importantíssimo na teoria do delito, mas também influi na teoria da pena, pois por meio do juízo de culpabilidade é que será determinada a quantidade de pena proporcional à dimensão da conduta praticada. Percebemos que a culpabilidade deve ser afastada de qualquer apreciação interior do indivíduo, e a velha discussão acerca da periculosidade do agente não compõe no direito penal moderno o conceito de culpabilidade. Por outro lado, a culpabilidade não deve ser afastada da estrutura do delito, pois é essencial que se possa atribuir ao agente, no caso concreto, a autodeterminação na atuação da forma escolhida, a fim de possibilitar a aplicação e a quantificação da sanção.

Assim, a culpabilidade serve de ligação entre a teoria do delito e a aplicação da sanção penal, e o agente somente é responsável por sua conduta quando, além de ilícita e antijurídica, for reprovável pelo juízo de culpabilidade. Mais uma vez recorremos a Zaffaroni[20] quando conceitua culpabilidade:

(…) la culpabilidad es el juicio que permite vincular en forma personalizada el injusto a su autor y se este modo operar como el principal indicador que, desde la teoría del delito, condiciona la magnitud de poder punitivo que puede ejercerse sobre éste. Dado que la teoria del delito es un sistema de filtros que sirve para que sólo pueda superarlo el poder punitivo que presenta características de nenor irracionalidad, la mera existencia del conflicto criminalizado – el injusto – no es suficiente para afirmar la existencia del delito, cuando no pueda vincularse a un autor en forma personalizada, puesto que la criminalización secundaria siempre lo es de una persona.

Portanto, a culpabilidade tem papel relevante no estudo do direito penal, e por meio dela é possível criar o elo determinante da incriminação secundária. Somente pela análise real da culpabilidade é que se pode determinar a (não) reprovação de determinado sujeito em virtude de sua capacidade de autodeterminação diante das circunstâncias reais do caso concreto. A partir dessa certeza é importante afirmar que a culpabilidade não pode ser única, não é estática sua apreensão e não pode ser realizada por meio de mecanismos como o do homem normal. Como já afirmamos em tópicos anteriores, o direito penal moderno não pode se basear no exercício do poder punitivo, em padrões ou modelos previamente determinados.

No campo da culpabilidade não é diferente. O juízo de culpabilidade serve como limitador do poder punitivo, e desde sua função como culpabilidade da conduta deve ser utilizado de forma diferenciada em cada caso apresentado. Admitir a existência de padrões de comportamentos humanos perante diversas circunstâncias consiste em negar a existência de diferenças entre os diversos membros da sociedade. A igualdade entre os seres humanos pregada dentre as garantias não impõe que todos sejam iguais, mas requer do Estado o tratamento de todos de forma isonômica, o que significa dispensar o tratamento, nem sempre igualitário, necessário à realização da igualdade. Por isso mesmo, o juízo de culpabilidade deve ser feito sobre cada caso concreto, com a finalidade de verificar a possibilidade de comportamento compatível em substituição ao comportamento ilícito praticado, isto é, verificando se a) naquele momento, b) diante daquelas circunstâncias fáticas, c) o agente poderia ter autodeterminação de seu modo de agir.

Após determinar a análise da culpabilidade, o artigo 59 do Código Penal apresenta a necessidade de verificação dos antecedentes. A expressão utilizada pelo legislador da reforma de 1984 causou algumas confusões e divergências doutrinárias quanto a sua amplitude. Antecedentes no sentido dicionarístico da expressão é o que vem antes, e nesse ponto já se apresenta a primeira situação tormentosa: são os fatos que ocorreram antes da prática da infração ou antes da aplicação da pena? Acreditamos que o melhor entendimento é o primeiro, ou seja, os antecedentes são os fatos ocorridos antes da prática do delito.

A segunda questão importante consiste em determinar que fatos poderão ser considerados antecedentes para a exasperação da pena: a expressão antecedentes abarca tudo o que aconteceu na vida do agente ou os antecedentes se delimitam aos antecedentes criminais? Como o próprio artigo 59 determina a análise de outros elementos como personalidade e conduta social, pensamos que os antecedentes são os de natureza criminal. Por serem antecedentes criminais, compreendem todos os inquéritos policiais e as ações penais anteriores? Em que têm resultado: em condenação ou absolvição? Inclusive as geradoras de reincidência?

Começaremos da última questão. A reincidência já está prevista no Código Penal como agravante genérica da pena-base. Logicamente, se for utilizada para a determinação da pena-base, estar-se-á ferindo a proibição do ne bis in idem, pois a reincidência causaria o aumento da pena em dois momentos distintos. Assim, a reincidência não pode ser considerada como antecedente do artigo 59, embora sua natureza seja exatamente essa.

Por outro lado, os inquéritos policiais em curso ou arquivados, bem como as ações penais em tramitação ou que tenham terminado com absolvição do agente, não podem ser considerados como antecedentes pelo simples fato de não ter havido condenação, prevalecendo o princípio da presunção de inocência previsto na Constituição da República.

Portanto, somente podem ser considerados antecedentes as condenações transitadas em julgado que não sejam capazes de gerar reincidência. Mesmo depois de filtrada a possibilidade de aumento da pena em virtude de fatos passados já punidos, parece-nos indevido. Os antecedentes apresentam inúmeros outros problemas, como salienta Salo de Carvalho[21]. Somente os maus antecedentes serão levados em conta pelo juiz e nunca os bons, os antecedentes criminais são perpétuos, pois, diferente até mesmo do que ocorre com a reincidência, não ensejam limitação temporal; são subjetivos porque o juiz é que os seleciona arbitrariamente. Portanto, os antecedentes criminais não devem figurar entre os elementos suscetíveis de causar o aumento da pena, ainda mais por se referirem mais ao criminoso e seu passado do que ao fato por ele praticado.

Com a conduta social nossos comentários não serão outros. A questão elevada pelo legislador à ampliação da reprovabilidade do agente está diretamente associada ao comportamento do agente em sociedade, ou seja, a conduta social capaz de aumentar a pena do agente pelo fato concretamente praticado se apresenta por meio da análise de comportamentos não criminosos. Assim, o humor do agente, sua maior ou menor educação, sua forma de tratar os outros, seu relacionamento com a família, com os amigos, entre outros fatores, serão analisados para causar o aumento da pena privativa de liberdade aplicada. Por outro lado, a questão da conduta social, bem como a dos antecedentes criminais, geram o problema de serem perpétuas, como comentamos anteriormente, contudo a jurisprudência[22], atenta a essa situação, tem determinado a aplicação analógica do lapso de cinco anos previsto para o desaparecimento da reincidência.

Entretanto, diferente dos antecedentes de natureza criminal, o comportamento ou conduta social do agente consiste em sua escolha pessoal de modo de vida, no uso do direito à liberdade do qual é detentor por força de normas constitucionais. Portanto, aliamo-nos aos penalistas modernos no sentido de afirmar que os comportamentos humanos lícitos não podem servir para o aumento da pena referente a um único comportamento ilícito, ou seja, por pior que seja o comportamento social do agente, permanecendo dentro dos limites impostos pela legislação, não ultrapassando a fronteira existente entre licitude e ilicitude, não pode ser reprovado, seja direta ou indiretamente (como causa de aumento de pena), sob pena de por mais uma vez optarmos pelo direito penal do autor, e não do fato.

Quanto aos motivos, circunstâncias e consequências do crime, não vislumbramos grandes problemas na análise judicial no sentido de afastar a pena do mínimo. Afirmamos isso por serem elementos inerentes à conduta, e não ao autor da conduta, perfeitamente adequados aos princípios do direito penal moderno. Somente fazemos a advertência, já presente na doutrina, de que se deve atentar para a possibilidade de bis in idem, quando os motivos, as circunstâncias ou as consequências consistirem em qualificadoras, agravantes ou causas de aumento, pois somente podem incidir uma vez sobre a pena.

VI –A personalidade do agente

Reservamos espaço próprio para a análise da personalidade por ser esta, dentre os elementos assinalados no artigo 59 do Código Penal, a que nos causa maior preocupação. Nós, penalistas, reduzimos o conceito de personalidade a elementos aferíveis pela observação exteriorizada do agente, não como ratificação da culpabilidade da conduta, o que de certo modo seria interessante, mas sob a perspectiva de exteriorizações de comportamentos, expressões, gestos etc., incapazes certamente de demonstrar a personalidade do condenado.

Embora a personalidade não seja tema jurídico, por estar mais (ou completamente) relacionada à psicologia, os estudiosos da ciência penal, talvez por obrigação derivada da péssima atuação do legislador, insistem em conceituá-la. Vejamos o que dizem alguns dos mais reconhecidos doutrinadores nacionais. Para Damásio de Jesus[23], a personalidade do agente pode ser analisada pela autoridade policial, pois é seu dever, logo após a prática de infração penal, averiguar a atitude e estado de ânimo do indiciado, antes, durante e depois da prática delituosa, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação de seu temperamento e caráter; o autor continua sua explicação sobre a personalidade afirmando que a expressão é utilizada pelo legislador como conjunto de qualidades morais do agente, por fim afirma que é o retrato psíquico do delinquente, incluindo a periculosidade.

O ilustre penalista Cesar Roberto Bitencourt[24] sustenta que a personalidade do agente consiste na síntese das qualidades morais e sociais do indivíduo; e inclui entre os pontos a serem observados no delineamento da personalidade as infrações criminais praticadas pelo réu durante a menoridade e as infrações praticadas depois do crime, pois ambos não podem ser considerados como antecedentes criminais, mas nas palavras do autor constituem elementos concretos reveladores da personalidade identificada com o crime, que não podem ser ignorados.

O Professor Fernando Capez[25] parece se aproximar mais do ponto ideal da personalidade quando afirma que o conceito de personalidade pertence mais ao campo da psicologia e psiquiatria do que ao direito, exigindo-se uma investigação dos antecedentes psíquicos e morais do agente, de eventuais traumas de infância e juventude. O penalista descreve a personalidade como inerente a outro campo do conhecimento diverso do direito, tornando necessário o estudo mais aprofundado do indivíduo na sua determinação. Nesse sentido também o professor mineiro Rogério Greco[26] ao afirmar: a exigência de análise da personalidade faz com que o juiz entre nas particulares características do agente, a exemplo do modo e o meio onde cresceu e foi criado.

Percebemos que os autores de direito penal atribuem conceitos e elementos diversos à seara da personalidade. Alguns chegam a reconhecer que o estudo da personalidade está muito mais atrelado ao objeto de análise de outras ciências, o que nos parece verdade. Sem dúvida, o estudo da personalidade dos seres humanos não pertence ao direito, muito menos ao direito penal, e sim às áreas da psicologia e da psiquiatria, conforme comentaremos a seguir. Outrossim, devemos fazer sobre a personalidade os mesmos comentários que realizamos anteriormente: aumentar a pena do agente, por uma conduta concreta delituosa, em virtude de sua personalidade, é trabalhar na área da reprovação do indivíduo em si, de sua periculosidade, de suas ações lícitas; afastando-se da reprovação pela conduta que se aprecia é adotar o direito penal do homem, e não o direito penal do autor.

Por outro lado, acreditamos importante falar um pouco sobre o estudo da personalidade. Conforme afirmamos, trata-se de tema inerente à psicologia e à psiquiatria, e não à ciência jurídica, portanto já nos desculpamos a fim de reduzir nossa responsabilidade sobre as falhas na apreciação do ponto. A expressão personalidade é utilizada no senso comum com uma série de significados diferentes, e muitas vezes é confundida com características do indivíduo como alegria, perspicácia, inteligência etc.; outras vezes, é usada para designar qualidade ou importância da pessoa. Cientificamente, na psicologia e na psiquiatria a personalidade não deve ser unicamente analisada com base nesses valores externos, e menos ainda deve ser valorada, como nós juristas normalmente fazemos. Não se empregam expressões como personalidade desregrada ou regrada, boa ou má, entre outras que representam a valoração da personalidade.

Psicologicamente, a personalidade pode ser compreendida a partir da compreensão do ser em sua totalidade, portanto os psicólogos têm afirmado que a personalidade é objeto de estudo da psicologia geral, e não de algum de seus ramos específicos, embora as inúmeras correntes teóricas da psicologia se debruçam sobre o estudo e formam conceitos diferentes para a personalidade. Os psicólogos Bock, Furtado e Teixeira[27] ensinam que a personalidade refere-se ao modo relativamente constante e peculiar de perceber, pensar, sentir e agir do indivíduo. Assim, a personalidade se caracteriza por um universo de elementos que também devem ser analisados de forma universal; nesse sentido, os mesmos autores explicam que a definição tende a ser ampla e acaba por incluir habilidades, atitudes, crenças, emoções, desejos, o modo de comportar-se e, inclusive, aspectos físicos do indivíduo.

A personalidade, contudo, não se resume à forma como todos esses aspectos se integram; este é senão mais um de seus elementos. A personalidade confere aos indivíduos suas características essenciais e, por se apresentarem de modos sempre diversos, em virtude de seus inúmeros elementos, é ela que defere aos indivíduos sua singularidade. Nas palavras dos especialistas, o estudo da personalidade permite aí a descoberta da individualidade.

A complexidade do estudo acerca da personalidade não para nesse ponto; ela deve ser analisada por meio de uma dúplice caracterização, como duas faces de uma mesma moeda. Na personalidade, estrutura e conteúdo são indissociáveis. A primeira trata de sua formação, consiste na base que organiza e une entre si as diferentes condutas e disposições do indivíduo. Para os psicanalistas, a base da personalidade se forma no início da infância, quando a estrutura da personalidade se consolida. Outros teóricos enxergam a formação da estrutura no final da infância. O conteúdo, por sua vez, está associado às trocas ou vivências concretas do agente em sua sociedade.

Inúmeras correntes do estudo da psicologia apresentam elementos estruturais da personalidade sob óticas completamente diferentes, e os psicanalistas destacam os elementos psicossexuais; os behavioristas centram estudos sobre a questão da aprendizagem. Outros pontos são marcantes na formação das teorias da personalidade, ora aproximando-as, ora afastando-as. Entre tais pontos podemos citar alguns, novamente apoiando-nos nos autores: a questão dos determinantes inconscientes e dos determinantes conscientes da personalidade. Freud e os psicanalistas em geral acreditam que a estruturação parte do inconsciente, enquanto Allport, não admitindo tal hipótese, prefere trabalhar no campo da determinação consciente. Outra questão controvertida consiste na concepção de homem como produto do determinismo ambiental ou determinismo psíquico, que consiste em entender o homem como passivo ou reativo.

O ponto que parece comum a todas as teorias é a dificuldade de se determinar a personalidade de um agente específico. A análise da personalidade prescinde de inúmeros testes específicos, executados por profissionais da área da psicologia ou psiquiatria, que mesmo com todo o rigor científico podem não chegar à determinação exata da personalidade. Por isso mesmo, como antes asseverado, evitam-se, naquelas ciências, afirmativas valorativas da personalidade. Os testes realizados vão desde Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota, Inventário de Personalidade de Eysenck (ambos objetivos) e Teste de Rorschach (teste projetivo), até entrevistas psiquiátricas.

Diante de tudo o que foi exposto, deixamos no ar duas questões: Será o juiz capaz de analisar a personalidade do agente? E, caso seja possível essa análise, ela será legítima perante o direito penal do fato?

VII – Conclusões

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1998 garantiu dentre os direitos fundamentais o direito à liberdade, à dignidade humana, à inexistência de penas cruéis e desumanas, à presunção de inocência, ao julgamento imparcial, ao devido processo legal, à estrita legalidade dos crimes e das penas, ao ne bis in idem, entre outros inúmeros direitos inerentes tanto à incriminação quanto ao julgamento dos indivíduos pelos delitos por eles praticados. Todos esses direitos elevados ao nível de princípios se apresentam intimamente associados ao modelo republicano e à secularização por que passou a sociedade nos últimos séculos.

A dita evolução social não deixou imune o direito penal que sofreu profundas mudanças evolutivas, culminando com uma notável evolução quer no campo legislativo, quer na dogmática.

No entanto, movimentos expansionistas da incriminação primária e secundária pressionam as agências políticas e judiciais, a fim de que novos tipos penais sejam criados e que a aplicação das penas deixe de lado as garantias, optando-se pela exasperação em nome de um combate ineficaz da criminalidade organizada.

Os problemas da sociedade moderna, desigualdades sociais, desequilíbrio econômico, globalização econômica predatória, baixos níveis de educação de grande camada das classes sociais, entre outros, parecem solucionáveis pelo direito penal, que acaba por receber uma missão de simbolização solucionadora dos males humanos.

A simbolização do direito penal, aliada à esperança, nele depositada pelas mais diversas camadas sociais, faz com que se transforme no grande meio de tutela de direitos, na expectativa de que sirva para resolver inúmeros problemas sociais ou jurídicos pertencentes a outros ramos da ciência jurídica.

Em virtude da grande pressão desenvolvida pela imprensa sensacionalista, nos esquecemos que o direito penal somente deve intervir quando os outros ramos do Direito falharem na solução de determinada situação, com a finalidade de proteger os bens jurídicos essenciais da sociedade contra condutas realmente lesivas, que serão consideradas como infrações penais após sua descrição na norma penal. Assim, o caráter mínimo do direito penal, do Estado Democrático de Direito, cede espaço ao direito penal máximo do Estado policial.

Na aplicação das penas não será diferente enquanto adotarmos critérios subjetivos de aplicação das penas, facilitadores do arbítrio dos julgadores; teremos dificuldade de enxergar penas justas e proporcionais às condutas praticadas. Enquanto perpetuarem na legislação pontos inerentes ao julgamento do homem em si, e não de suas condutas, o princípio republicano não estará efetivado.

Portanto, nossa luta é no sentido de efetivação do Estado Democrático de Direito diante do Estado de Polícia; é de efetivação do minimalismo perante a maximização do direito penal; é da perpetuação do direito penal do fato em face do direito penal do autor. Nossa luta consiste, por fim, na busca de vida, e não de sobrevida para todos.

VIII – Referências Bibliográficas

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[1] RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. A aventura das ideias dos pré-socráticos a Wittgenstein. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 332.
[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. III, p.178.
[3] DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 1. ed. 3.ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 67.
[4] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização. São Paulo: RT, p. 86-87.
[5] VON BAR, Carl Ludwig. Geschichte des Deutschen Strafrechts undder Strafrechtstheorien. Berlim, 1882. p. 334.
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002.
[7] Ver por todos BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003. v. I, p. 66-67.
[8] ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p 115-130.
[9] Ver sobre o assunto Hegel (Filosofía do derecho); Carrara; Binding; Mezger; entre outros citados por Cesar Roberto Bitencourt, op. cit., p. 74.
[10] Expressão utilizada por Zaffaroni e Nilo Batista. Op. cit.
[11] SÁNCHEZ, Jesús-Maria S. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Espanha, 2001.
[12] Sobre o tema ver também FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 209-226.
[13] Cesare Beccaria em Dos delitos e das penas e Michel Foucault em Vigiar e punir e em A verdade e as formas jurídicas vêm alertando sobre o utilitarismo do direito penal como forma de garantir o poder, estabelecendo críticas aos modelos tradicionais.
[14] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. (Coleção Debates Psicologia.)
[15] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 75-76.
[16] Não podemos deixar de afirmar que os legisladores continuam incriminando condutas desnecessárias por não causarem lesão e sequer perigo de lesão a quaisquer bens jurídicos relevantes. Tal incriminação primária deveria ser banida dos diplomas legais, como a embriaguês, a prostituição, o uso de entorpecentes, entre outra condutas incriminadas na contramão do minimalismo.
[17] CARVALHO, Salo; CARVALHO, Amilton Bueno. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 31-37.
[18] ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 131.
[19] FRAGOSO, Heleno Cláudio. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte geral. Atualizado por Fernando Fregoso. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 406.
[20] ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit., p. 650.
[21] CARVALHO, Salo; CARVALHO, Amilton Bueno. Op. cit., p. 50.
[22] STJ, 6.ª Turma, HC 2227-2/MG, DJ 29.03.1993, entre outros. Apud CARVALHO, Salo; CARVALHO, Amilton Bueno. Op. cit.
[23] JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1, p. 556- 557.
[24] BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003. v. I.
[25] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 390.
[26] GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003. p. 620.
[27] BOCK, Ana M. B.; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes T. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 114-125.


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