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Concursos públicos, separação de poderes e controle judicial sob à ótica do STF: deferência ou ativismo?

23/04/2015

ARBITRARIEDADE ADMINISTRATIVA

BANCA EXAMINADORA

CONCURSO

EDITAL

INSINDICABILIDADE DO MÉRITO ADMINISTRATIVO

PODER JUDICIÁRIO

PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES

RE 632.853

REPERCUSSÃO GERAL

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

04/05/2015

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O STF, no dia 23/04/2015, noticiou o resultado do julgamento do RE 632.853, quando a Suprema Corte, por maioria e com repercussão geral, decidiu que “os critérios adotados por banca examinadora de um concurso não podem ser revistos pelo Poder Judiciário”.[1]

Trata-se de orientação que vai ao encontro da tese já consagrada na jurisprudência da própria Corte sobre o mesmo assunto e que corrobora a interpretação tradicional do princípio da separação de poderes que impede a invasão judicial do mérito administrativo.[2]

Excepcionalmente, todavia, permite-se a invalidação de questões objetivas em provas de concursos públicos quando houver flagrante ilegalidade ou desrespeito às regras constantes do edital.[3]

Todavia, é interessante observar, nesse ponto, certa ambiguidade na atuação da Corte no tocante à interpretação do princípio da separação de poderes e do dogma da insindicabilidade do mérito administrativo.[4]

Isto porque o STF, em determinados casos, especialmente envolvendo a efetividade de direitos fundamentais (saúde, educação etc), adota posicionamento ativista no controle das ações e omissões estatais. Mencione-se, por exemplo, a decisão do STF que obrigou os Municípios a matricularem crianças de até cinco anos de idade em creches e em pré-escola, sob o argumento de que a intervenção judicial em caso de omissão estatal, na implementação de políticas públicas previstas na Constituição, seria legítima e não afrontaria o postulado da separação de poderes.[5]

Da mesma forma, no campo dos concursos públicos, o STF tem relativizado, progressivamente, a discricionariedade administrativa das entidades federativas e administrativas na decisão sobre a nomeação dos candidatos aprovados em concursos públicos.

Com efeito, a jurisprudência do STF reduz a discricionariedade estatal e admite a interferência judicial com o objetivo de reconhecer o direito dos candidatos aprovados à nomeação e posse em três situações: a) inobservância, por parte da Administração, da ordem de classificação do concurso (Súmula 15 do STF); b) quando a Administração, durante o prazo de validade do concurso, efetua contratações precárias para o exercício das mesmas funções que justificaram a realização do certame;[6] c) candidatos aprovados dentro do número de vagas previsto no edital do concurso.[7]

Em outros casos, todavia, a Corte atua de forma conservadora, com maior deferência aos demais Poderes, tal como ocorreu no caso objeto do presente estudo.

Evidencia-se, destarte, certa ambiguidade e falta de parâmetros claros na jurisprudência do STF acerca da interpretação dos postulados do mérito administrativo e do princípio da separação de poderes, sendo certo que, em alguns casos, a Corte adota posição ativista e, em outras situações, posição mais defensiva.

Não se pode olvidar que o controle judicial da discricionariedade administrativa sofreu profundas mutações ao longo dos tempos, com a intensificação do controle e valorização do papel do Judiciário.

Ao lado das tradicionais teorias do desvio de poder (ou de finalidade) e dos motivos determinantes, atualmente a teoria dos princípios jurídicos, com o reconhecimento da força normativa primária dos princípios constitucionais, abre caminho para o papel mais intenso do controle judicial.

Isto porque os princípios constitucionais, em razão da abertura textual e normativa de seus comandos, ampliam a dinâmica do controle judicial.

Compreendido o mérito como “resultado do exercício regular de discricionariedade”, ele somente será considerado legítimo se respeitar a juridicidade (lei e o direito). O mérito, concebido como o “sentido político” da ação do Estado, ou seja, de atendimento do interesse público ou de “integração administrativa da legitimidade”, continua sendo considerado insindicável pelo Poder Judiciário. Todavia, o resultado da atividade discricionária (uso incorreto do mérito administrativo) pode e deve ser examinado pelo Judiciário para garantir o respeito aos limites legais e constitucionais, especialmente a observância dos princípios constitucionais (“controle dos limites”). Por isso, a invalidação de um ato administrativo por violação ao princípio da razoabilidade, por exemplo, não enseja, em última análise, o exame do conteúdo do mérito pelo Judiciário, mas sim do limite imposto ao administrador na utilização desse mérito.[8]

Evidentemente, os princípios jurídicos não podem tudo e não devem ser utilizados para mera substituição de eventual arbitrariedade administrativa por outra judicial.

Por esta razão, revela-se fundamental o avanço na exigência justificação e motivação da decisão judicial, exigindo-se do magistrado a apresentação de fundamentos fáticos e jurídicos que demonstrariam a ilegalidade, em sentido amplo, da ação ou omissão administrativa.

Não é suficiente o manejo de argumentos exclusivamente metafísicos ou dogmáticos para resolução das questões da vida. Seria inaceitável a decisão judicial que se limitasse a dizer: “julgo improcedente o pedido, pois o Judiciário não pode adentrar no mérito administrativo”. Devem ser demonstradas as peculiaridades fáticas e jurídicas envolvidas no debate e que justificariam a deferência ou, eventualmente, o maior ativismo judicial.

Nesse sentido, o art. 489, §1° do novo CPC (Lei 13.105/2015) representa importante avanço na tentativa de garantir a fundamentação efetiva das decisões judiciais. A norma dispõe:

“Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

§ 1° Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.

§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.”

De nossa parte, sustentamos uma posição “mais ativa” do Judiciário no controle dos resultados dos concursos públicos, com o objetivo de evitar a utilização de critérios arbitrários ou incorretos por parte das bancas examinadoras e, com isso, proteger os direitos dos respectivos candidatos à legalidade do procedimento concursivo, sem que isso signifique, contudo, a substituição da Administração pelo Judiciário.[9]

A atuação do Judiciário no controle formal e material dos concursos públicos pode variar de acordo com o formato das avaliações.

Nas provas objetivas (“múltipla escolha”), o controle é facilitado de certa forma, pois os enunciados das questões restringem as opções dos candidatos e da Banca Examinadora. Nesse caso, por exemplo, se o enunciado exige a marcação da única resposta correta, mas existem duas ou mais alternativas corretas, a questão deverá ser anulada.

Frise-se que, em nossa opinião, a questão deve ser anulada com a atribuição dos pontos para todos os candidatos, e não apenas para o candidato que se socorreu do Judiciário, tendo em vista o princípio da impessoalidade.

Questão mais complexa, todavia, refere-se às provas discursivas, quando existe uma maior flexibilidade e subjetividade nos critérios de correção das questões.

O controle judicial, no caso, deve ser exercido com parcimônia e não pode o magistrado reexaminar a conveniência e a oportunidade dos critérios adotados pelos examinadores do concurso, o que não impediria, em casos extremos, a interferência quando evidenciada manifesta ilegalidade. Imagine-se, por exemplo, a hipótese em que o candidato, ao ser indagado sobre questão controvertida, apresenta, em sua resposta, opinião que coincide com a jurisprudência dos tribunais superiores, mas não obtém qualquer pontuação simplesmente pelo fato do examinador possuir posição divergente e minoritária. Estaríamos diante de “flagrante ilegalidade ou desrespeito às regras constantes do edital”, ou seja, das situações excepcionais indicadas pelo STF que viabilizariam o controle judicial ? Alguns diriam que não.

Ocorre que a ausência de interferência do Judiciário no sobredito exemplo, desrespeitaria o próprio princípio da inafastabilidade do controle judicial nas situações de lesão ou ameaça de lesão a direito, especialmente pela ausência de proporcionalidade ou razoabilidade dos critérios de correção da banca examinadora.

A maior margem de liberdade na correção e na valoração das respostas por parte da Banca examinadora não afasta, contudo, a possibilidade de controle judicial, inclusive com o auxílio de perícia, quando houver violação aos princípios constitucionais, pois a discricionariedade não se confunde com o arbítrio.[10]

É por esta razão que as bancas examinadoras devem utilizar e demonstrar os padrões de resposta e de pontuação que serão utilizados nas correções das provas, conferindo maior transparência ao resultado (publicidade), isonomia no tratamento dos candidatos e controle posterior (administrativo ou judicial, inclusive sob a ótica da teoria dos motivos determinantes).

Infelizmente, algumas bancas insistem na prática de não disponibilizar aos candidatos os critérios de correção, o que dificulta o controle a posteriori, sem olvidar as práticas autoritárias que negam o direito de vista e de revisão por parte dos candidatos. É desastroso pensar que os candidatos recebam tratamentos diferenciados na correção das mesmas provas em razão, pura e simplesmente, das opiniões pessoais divergentes dos examinadores.

Ressalte-se, todavia, que o Judiciário não poderá substituir a Banca Examinadora para atribuir a nota que entender correta, mas apenas decidir pela desproporcionalidade ou ilegalidade da nota atribuída. Na hipótese, após invalidar a atuação da Banca, deverá o Judiciário oportunizar nova correção por parte dos examinadores com a atribuição de nova nota à questão.

Desta forma, o controle judicial dos critérios de correção da banca examinadora garantiria a efetividade dos direitos e princípios constitucionais, sem substituição da liberdade (e não arbitrariedade) da banca examinadora.

Além da legitimidade da intervenção judicial em casos de “flagrante ilegalidade ou desrespeito às regras constantes do edital”, como afirma o STF, o ideal seria a viabilização do controle judicial também nos casos em que restar comprovada, de forma indiscutível, a incorreção dos gabaritos e dos critérios de correção das bancas examinadoras.

Evidentemente, o dogma do mérito administrativo e o postulado da separação de poderes não podem servir como argumentos casuísticos, utilizados, de forma estratégica e sem parâmetros, pelo Poder Judiciário, ora para adotar posição de deferência, ora para assumir papel ativista no controle da discricionariedade estatal.

[1] Notícias do STF do dia 23/04/2015. Fonte: ‹http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=290101›. Acesso: 24/04/2015. Acórdão pendente de publicação.
[2] vide, por exemplo: STF, 2.ª Turma, RE 560.551 AgR/RS, Rel. Min. Eros Grau, DJe-142 01.08.2008; AI 608.639/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1.ª Turma, DJ 13.04.2007, p. 96; RE 268.244/CE, Rel. Min. Moreira Alves, 1.ª Turma, DJ 30.06.2000, p. 90.
[3] Nesse sentido: STJ, 3.ª Seção, EREsp 338.055/DF, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 15.12.2003, p. 179; RMS 19.353/RS, Rel. Min. Denise Arruda, 1.ª Turma, DJ 14.06.2007, p. 248, Informativo de Jurisprudência do STJ n. 311.
[4] O debate sobre a postura do Judiciário no controle dos atos estatais (ativismo ou auto-contenção) é célebre no direito norte-americano. Vide, por exemplo: DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1978; ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review, Cambridge: Harvard University Press, 1980; BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics, 2ª ed., New Haven: Yale University Press, 1986; WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 1999; SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court, Cambridge: Harvard University Press, 2001; KRAMER, Larry. The people themselves – popular constitucionalism and judicial review. Oxford University Press: Oxford, 2004.
[5] STF, ARE 639.337 AgR/SP,  Rel.  Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe-177 15-09-2011, p. 125.
[6] STF, 2.ª Turma, RE 273.605/SP, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 28.06.2002, p. 143, Informativo de Jurisprudência do STF n. 265. No mesmo sentido: STJ, 5.ª Turma, RMS 11.966/AM, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 18.03.2002, p. 275, Informativo de Jurisprudência do STJ n. 123; STJ, 5.ª Turma, RMS 19.924/ SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 30.10.2006, p. 336, Informativo de Jurisprudência do STJ n. 300; STJ, 3.ª Seção, MS 13.575/DF, Rel. Min. Jane Silva (desembargadora convocada do TJMG), DJe 01.10.2008, Informativo de Jurisprudência do STJ n. 367.
[7] STF, 1.ª Turma, RE 227.480/RJ, Rel. p/ acórdão Min. Carmen Lúcia, DJe-157 21.08.2009, Informativo de Jurisprudência do STF n. 520. No mesmo sentido: STJ, 6.ª Turma, RMS 19.478/SP, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 25.08.2008, Informativo de Juris- prudência do STJ n. 354; RMS 27.311/AM, Rel. Min. Jorge Mussi, 5.ª Turma, DJe 08.09.2009, Informativo de Jurisprudência do STJ n. 411.
[8] Vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A constitucionalização do Direito Administrativo, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 82-83. O STJ já teve a oportunidade de asseverar que o “mérito significa uso correto da discricionariedade, ou seja, a integração administrativa. Com observância do limite do legal e o limite do legítimo, o ato tem mérito. Caso contrário, não tem mérito e deixa de ser discricionário para ser arbitrário e, assim, sujeito ao controle judicial.” STJ, REsp nº 647417/DF, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, data do julgamento: 09/11/2004, DJ 21.02.2005, p. 114.
[9] Vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 3ª ed., São Paulo: Método, p. 676-678.
[10] Nesse sentido: SILVA, Almiro do Couto e. Correção de prova de concurso público e controle jurisdicional. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 42, p. 5-18, abr.-jun. 2003; TRF 1.ª Região, 5.ª Turma, AC 1998.34.00.001170-0/DF, Rel. Fagundes de Deus, DJU 25.11.2003, p. 42

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