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Dierle Nunes

Dierle Nunes

23/06/2015

Por Dierle Nunes e Lúcio Delfino[1]

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O princípio do contraditório é apresentado e considerado como uma forma de “violência” ao modo que o ser humano é condicionado ao longo de sua vida.

Essa afirmação provocativa está arraigada no senso comum e não raro é exteriorizada quando alguém se presta a defender o princípio, em sua perspectiva dinâmica e substancial[2].

E a explicação talvez não esteja ao largo da razão. Somos ensinados, desde a mais tenra idade, a seguir um arquétipo marcado pelo exercício de poder decisório solitário. Tudo se inicia nos lares, quando os pais, até em razão da incapacidade de diálogo dos infantes e da necessidade de orientá-los rumo ao que lhes parece melhor e mais adequado, decidem sozinhos aspectos essenciais de suas vidas. Até determinada idade, curvamo-nos aos desígnios infligidos por aqueles que nos tutelam, aceitamos suas determinações, seguimos os nortes que projetam e recebemos, de bom grado, seus conselhos. Aprendemos que este exercício solitário do ato de decidir é “natural” e não fruto de uma contingência.

E a situação amiúde se mantém ao longo de toda a vida. Afinal, mesmo depois de adultos, e por mais que sejamos (ou pensemos ser) acessíveis ao debate sobre questões a envolver assuntos pessoais e familiares, nossas pré-compreensões acabam sendo fator principal (ou único) nas decisões adotadas. Intuímos solitariamente as soluções, tudo sob a influência de nossa própria subjetividade e sem interferências por parte de terceiros.

A raça humana, em várias ocasiões de seu cotidiano, decide simulando ouvir e considerar argumentos alheios aos seus. Vamos aprimorando nosso tirocínio de afetação. No fundo, tudo se resolve no ermo da consciência daquele que decide, em atenção às suas impressões anteriores, compromissado com seu próprio universo cultural, social e histórico. Ou seja, estamos condicionados a deliberar sozinhos e naturalizamos esse comportamento decisório.

A verdadeira violência simbólica, que promove a imposição de posturas e conduz a criança a adotar, como referencial exclusivo de sua orientação, a interpretação fornecida pelo detentor do saber e do seu modo de agir, pode amputar sua capacidade criativa[3] e sua necessária abertura ao debate.

Não é à toa, pois, que encaramos como um exercício de “violência” a abertura ao debate, isto é, a indispensabilidade do contraditório como condição para legitimar decisões judiciais. Não surpreende que o leigo, em face desse condicionamento inerente à civilização humana, sinta em si a exteriorização de um sentimento de espanto quando alguém lhe informa que o sistema jurídico obriga qualquer julgador a, no âmago de sua decisão, considerar e fazer imperar argumentos (fáticos e jurídicos) que predominantemente não são os dele ou, ao menos, que esse mesmo julgador está obrigado a considerar narrações trazidas por aqueles que sofrerão os efeitos do julgamento. Nada mais natural já que o diálogo, como mecanismo de decisão, nunca foi o modus operandi adotado por ele ao longo de sua vida, chegando a ser até afrontoso ao adestramento ao qual se submeteu desde a mais terna idade.

Não se pode ainda olvidar que estudos empíricos (psicológicos e jurídicos), realizados com magistrados americanos, demonstram que o juiz sofre propensões cognitivas que o induzem a usar atalhos para ajudá-lo a lidar com a pressão da incerteza e tempo inerente ao processo judicial. É evidenciado que mesmo sendo experiente e bem treinado, sua vulnerabilidade a uma ilusão cognitiva no julgamento solitário influencia sua atuação[4].

Um exemplo singelo encontrado nas pesquisas, que aclara esta situação,  é a propensão do magistrado que indefere uma liminar a julgar, ao final, improcedente o pedido. Por um efeito de bloqueio ficou demonstrado que o juiz fica menos propenso à mudança de sua decisão mesmo à luz de novas informações ou depois de mais tempo para a reflexão. Tal bloqueio cognitivo ocorre por causa da tendência a querer justificar a alocação inicial de recursos, confirmando que a decisão inicial estava correta[5]. Isto induz o fomento ao debate como ferramenta de quebra das ilusões e propensões cognitivas.

Daí a necessidade de se afastar o estranhamento nutrido por muitos quando se compreende a obrigatoriedade constitucional, reforçada pelo texto do Novo CPC (artigos 10 e 499), de encarar o contraditório como garantia de influência e não surpresa. Surpreende-se quando se constata que o sistema normativo exorciza a incrustada versão que imprime a esse princípio constitucional essência meramente formal, acomodando as partes e seus advogados em um arranjo afetado e ficcional em que o conteúdo legítimo e democrático de uma decisão soçobra diante das pré-compreensões para as quais o juiz obteve (ou não) comprovação nos autos ou que o mesmo gerou ancoramentos e bloqueios ao julgar.

Pensar o contraditório em seus moldes hodiernos impõe aceitar que o juiz tem o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as de conhecimento oficioso. Importa reconhecer que o julgador está impedido, em solitária onipotência, de aplicar normas ou embasar decisões sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas as partes[6]. Absolutamente tudo aquilo que o juiz deliberar fora do debate já ensejado às partes corresponde a surpreendê-las, vale dizer, implica postura judicial contrária ao caráter dialético e democrático do processo, cuja consequência é a nulidade.

Toda vez que o magistrado não exercitar ativamente o dever de advertir as partes quanto ao específico objeto relevante para o contraditório, o provimento merece ser invalidado, sendo que a relevância ocorre se o ponto de fato ou de direito constituiu necessária premissa ou fundamento para a decisão (ratio decidendi). Assim, o contraditório não incide sobre a existência de poderes de decisão do juiz, mas, sim, sobre a modalidade de seu exercício, de modo que o juiz seja um garante da sua observância, impondo a nulidade de provimentos sempre que ausente a efetiva possibilidade do seu exercício[7].

Em relação às partes, o contraditório aglomera um feixe de direitos que dele decorrem, entre os quais: a) o direito a uma cientificação regular durante todo o procedimento, ou seja, uma citação adequada do ato introdutivo da demanda e a intimação de cada evento processual posterior que lhes permitam o exercício efetivo da defesa no curso do procedimento; b) o direito à prova, possibilitando-lhes sua obtenção toda vez que esta for relevante; c) em decorrência do anterior, o direito de assistir pessoalmente a assunção da prova e de se contrapor às alegações de fato ou às atividades probatórias da contraparte ou aquelas oficiosamente praticadas pelo julgador, especialmente quando se percebe, mediante estudos empíricos, que quando o juiz prova ele tende a se ancorar nesta evidência para julgar (um dos grandes problemas da iniciativa probatória do magistrado); d) o direito de ser ouvido e julgado por um juiz imune à ciência privada (private informazioni), que decida a causa unicamente com base em provas e elementos adquiridos no debate em contraditório; e e) o direito a uma decisão fundamentada, em que se aprecie e solucione racionalmente todas as questões e defesas adequada e tempestivamente propostas pelas partes (fundamentação racional das decisões).

Algo, porém, deve ser sempre lembrado. Tais perspectivas, ora trabalhadas, de leitura dinâmica do contraditório, não podem ser vislumbradas com objetivo protelatório e formalista pela parte que sucumbiu nas decisões, pois a análise do contraditório há muito deixou de possibilitar uma mera enunciação formal. Ao contrário, as referidas perspectivas demonstram que a indicação preventiva dos pontos relevantes da controvérsia constitui instrumento insubstituível para uma decisão correta. O risco protelatório e formalista se mostra, aliás, bastante reduzido quando se leva a sério a fase técnica de preparação do procedimento (artigo 331, CPC reformado; artigo 364 do CPC Projetado) e quando se impõe a necessidade de demonstração, pela parte sucumbente, do dano e da potencialidade de manifestação em sentido que altere o conteúdo da decisão.

Ocorre que a submissão ao contraditório de todos os aspectos potencialmente relevantes da decisão denota a percepção de que o poder do juiz no processo não é nem de longe absoluto, seja pela falibilidade inerente a todo ser humano, seja pelo fato de que a discussão será muito mais eficiente (e legítima) se todas as partes souberem e discutirem os aspectos da demanda. Haverá, deste modo, a garantia de que mesmo as questões que passaram despercebidos pelos litigantes serão submetidos ao debate[8], permeabilizando-as ao contraditório substancial e exorcizando as tão mal vistas decisões surpresa.

Uma interpretação assim, fugidia de uma matriz decisória solipsística, poderia ser responsabilizada por eventual tumulto e embaraço no transcurso da atividade jurisdicional, especialmente num cenário em que pulula o demandismo no Brasil a ponto de atingirmos atualmente quase 100 milhões de processos em curso.

Mas essa crítica, além de contrária aquilo que se entende por devido processo legal, somente é factível caso se encare o exercício do poder decisório de modo isolado e não dentro da cadeia processual. Afinal, há provas de que, em todos os sistemas nos quais o debate processual é mais amplo e desenvolvido, as sentenças ganham em qualidade e as taxas de reforma decisória caem. Aliás, em texto anterior, publicado no site Conjur[9], demonstramos as altíssimas taxas de reforma nos tribunais brasileiros, cujas causas englobam igualmente a ausência de debate processual adequado.

Em termos diretos: se quisermos diminuir, com o passar do tempo, as hipóteses recursais, ou mesmo os limites de transferência de matérias (permitindo a rediscussão somente de aspectos jurídicos), é indispensável ampliar o debate de formação decisória.

Hoje os recursos, por exemplo, transformaram-se em uma ferramenta para se corrigir a superficialidade do debate de construção dos provimentos em primeiro grau de jurisdição, fato que, a bem da verdade, se respeitado estritamente o modelo constitucional do processo, conduziria indubitavelmente a nulidades em uma multiplicidade de processos.

Ademais, em época de utilização de decisões padrão produzidas pelos tribunais superiores a partir de causas piloto (recursos representativos da controvérsia), a ausência de plenitude do contraditório, na qual o tribunal superior não analisa todos os argumentos relevantes (poucas vezes mas com grande amplitude), faz com o que o tribunal não estabilize sua própria jurisprudência, gerando previsibilidade, permitindo que os próprios litigantes mantenham a esperança de que em seu caso o argumento não enfrentado induza o sucesso de sua pretensão. A amplitude do debate induziria a coerência e mantença da integridade decisória do direito jurisprudencial.

O Poder Judiciário deve aprimorar o contraditório na formação dos precedentes, com realização de audiências públicas, participação de amici curiae com briefs e antecipação das sustentações orais para sessão imediatamente anterior ao julgamento, de modo que os argumentos levados a sério permitam que os julgadores decidam menos vezes, mas com maior credibilidade e qualidade. Já que adotamos o peculiar sistema no qual o julgado do Tribunal Superior já nasce para ser precedente, que seja ele formado com a seriedade e a chancela do contraditório dinâmico.

Que o condicionamento humano do pensar solitário seja libertado pelas benesses indiscutíveis em termos de eficiência e amplitude do pensar dialogado (poder participado), sobretudo tendo-se em vista as diretrizes normativas que conferem colorido ao devido processo legal, limitadoras e determinantes das posturas de todo e qualquer agente público, incluídos evidentemente os juízes, hoje considerados guardiões da Constituição.


[1] É advogado, doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP). Pós-doutorando em Direito (UNISINOS).
[2] Cf. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008. NUNES, Dierle, THEODORO JR, Humberto. Princípio do contraditório. RePro 168.
[3] COSTA, J. Freire. “Saúde mental, produto da educação? In Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, pp. 81-102, 2003. BOURDIEU, Pierre, O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, editora Paidós, Buenos Aires, 2009.
[4] GUTHRIE, Chris, RACHLINSKI, Jeffrey J., WISTRICH, Andrew J.. Inside the judicial mind.  Cornell Law Review, 777, May, 2001, p. 778-829.
[5] Lynch, Kevin J. The lock-in effect of preliminary injunctions. Florida Law Review, Vol. 66. Ap. 2013. p. 779 -821.
[6] FERRI, Corrado. Sull’effettivitá del contraddittorio. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano: Giuffrè,1988, p. 781-782.
[7] FERRI, Corrado. Sull’effettivitá del contraddittorio. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano: Giuffrè,1988, p. 781-782.
[8] NORMAND, Jacques. I poteri del giudice e delle parti quanto al fondamento delle pretese controverse. Rivista di Diritto Processuale, Padova: CEDAM, 1988.p. p. 740.
[9] NUNES, Dierle. Novo CPC acerta ao manter efeito suspensivo em certas apelações. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-22/dierle-nunes-cpc-acerta-manter-efeito-suspensivo-certas-apelacoes

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