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Licitações inclusivas: os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência nas contratações públicas

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Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

27/07/2015

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Sumário: 1) Introdução; 2) A proteção dos portadores de deficiência no Direito Administrativo; 3) Licitações inclusivas e os impactos promovidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015): a função regulatória da licitação e a função social dos contratos administrativos; 4) conclusões

1) Introdução

A Lei 8.666/1993 tem sofrido alterações importantes ao longo do tempo, o que confirma a necessidade de sua substituição por novo diploma legislativo pautado pela eficiência, agilidade e economicidade nas licitações públicas.

Atualmente, é possível perceber que a Lei 8.666/1993 perdeu o seu papel de única protagonista nas licitações, cujo universo normativo é marcado pela pluralidade de fontes, cabendo mencionar como exemplos dessa tendência a larga utilização da modalidade pregão (Lei 10.520/2002) e a progressiva ampliação das possibilidades de utilização do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC (Lei 12.462/2011).

Não obstante isso, a mitificação da Lei 8.666/1993, pautada por excesso de formalismos e ineficiências, acarreta o interessante (e inadequado) fenômeno de transformar o referido diploma legal em verdadeira colcha de retalhos.

Os gestores, procuradores, professores, alunos e demais operadores do direito precisam redobrar a vigilância na atualização das normas de licitações, que são modificadas a todo instante.

Independentemente das críticas aqui apresentadas, certo é que algumas mudanças vão ao encontro das necessidades sociais e da crescente efetivação dos direitos fundamentais.

É o caso da recente alteração promovida pela Lei 13.146/2015 que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência e promoveu importantes alterações em outros diplomas legislativos, inclusive o Estatuto de Licitações.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) tem por fundamento a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 186/2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3.° do art. 5.° da Constituição da República Federativa do Brasil, e promulgados pelo Decreto 6.949/2009.

Trata-se de importante avanço na efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana e na proteção dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiência, garantindo a sua inclusão social e o exercício da cidadania, na forma exigida nos arts. 1.º, III, e 23, II, da CRFB.[1]

2) A proteção dos portadores de deficiência no Direito Administrativo

Em relação ao Direito Administrativo, o fomento à proteção e inclusão das pessoas portadoras de deficiência tem sido crescentemente implementado, especialmente a partir do tratamento favorável garantido no âmbito dos serviços públicos, dos concursos públicos e das contratações administrativas, com o objetivo de garantir a inserção no mercado de trabalho, finalidade que foi ratificada no art. 35 do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

No campo dos serviços públicos, por exemplo, a Lei 8.899/1994 garantiu a gratuidade (passe livre) no transporte público interestadual aos portadores de deficiência “comprovadamente carentes”, tratamento favorável que foi considerado constitucional pelo STF, conforme ementa abaixo:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO INTERMUNICIPAL, INTERESTADUAL E INTERNACIONAL DE PASSAGEIROS – ABRATI. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 8.899, DE 29 DE JUNHO DE 1994, QUE CONCEDE PASSE LIVRE ÀS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA, DA ISONOMIA, DA LIVRE INICIATIVA E DO DIREITO DE PROPRIEDADE, ALÉM DE AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE FONTE DE CUSTEIO (ARTS. 1º, INC. IV, 5º, INC. XXII, E 170 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA): IMPROCEDÊNCIA. 1. A Autora, associação de associação de classe, teve sua legitimidade para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade reconhecida a partir do julgamento do Agravo Regimental na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.153, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 9.9.2005. 2. Pertinência temática entre as finalidades da Autora e a matéria veiculada na lei questionada reconhecida. 3. Em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede das Organizações das Nações Unidas, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado. 4. A Lei n. 8.899/94 é parte das políticas públicas para inserir os portadores de necessidades especiais na sociedade e objetiva a igualdade de oportunidades e a humanização das relações sociais, em cumprimento aos fundamentos da República de cidadania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela definição de meios para que eles sejam alcançados. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente” (grifo nosso).[2]

No tocante aos concursos públicos, o art. 37, VIII, da CRFB exige que a lei estabeleça reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, bem como os critérios de sua admissão.[3]

Em consequência, a Lei 7.853/1989 dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social. O art. 8.º, II, da Lei em comento, alterado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, define como crime, punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, além da multa: “obstar inscrição em concurso público ou acesso de alguém a qualquer cargo ou emprego público, em razão de sua deficiência”.

Ao regulamentar a Lei 7.853/1989, o Decreto 3.298/1999 definiu, em seu art. 4.º, as espécies de deficiência (deficiência física, deficiência auditiva, deficiência visual, deficiência mental e deficiência múltipla). O art. 37 do referido Decreto assegura à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.[4] Deverá ser reservado cinco por cento do total das vagas do concurso público aos candidatos portadores de deficiência e, caso a aplicação deste percentual resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subsequente (art. 37, §§ 1.º e 2.º).[5]

Em âmbito federal, o art. 5.º, § 2.º, da Lei 8.112/1990 assegura aos portadores de deficiência o direito de inscrição em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras, devendo ser reservadas “até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”. Assim, na Administração Federal, existe limite mínimo (5%) e máximo (20%) para reserva de vagas em concursos.

Note-se, contudo, que, em determinados casos, não será possível a reserva de vagas para deficientes, quando houver poucas vagas em aberto e não for possível alcançar os limites percentuais mínimos e máximos das vagas reservadas aos deficientes. Nesse sentido, o STF, em concurso público destinado ao preenchimento de dois cargos de serviços notariais e de registro do Distrito Federal, reconheceu a razoabilidade da inexistência de vagas reservadas aos deficientes, pois a obediência dos aludidos percentuais não levaria ao número inteiro (5% e 20% do total de duas vagas equivalem, respectivamente, a um décimo e quatro décimos de vaga). Nesse caso, o arredondamento para uma vaga geraria, ao final, a reserva de 50% das vagas disponíveis, o que não seria harmônico com o princípio da razoabilidade.[6]

Ao lado do tratamento favorável em concursos públicos, o ordenamento jurídico igualmente consagra instrumentos de inclusão dos portadores de deficiência no mercado de trabalho por meio das contratações públicas, como será destacado no próximo tópico.

3) Licitações inclusivas e os impactos promovidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015): a função regulatória da licitação e a função social dos contratos administrativos

Sempre sustentamos a constitucionalidade das normas de licitação que condicionavam as contratações públicas à presença de portadores de deficiência nos quadros das empresas contratadas.

Trata-se da função regulatória (ou extraeconômica) da licitação e da função social das contratações públicas. Por esta teoria, a licitação não se presta, tão somente, para que a Administração realize a contratação de bens e serviços a um menor custo; o referido instituto tem espectro mais abrangente, servindo como instrumento para o atendimento de finalidades públicas outras, consagradas constitucionalmente.[7]

A preocupação com as questões sociais e ambientais (Green public procurement ou licitações verdes) revela tendência no Brasil e no Direito comparado. Ao abordar a questão sob a ótica do Direito europeu, Maria João Estorninho afirma:

“Às finalidades tradicionais da contratação pública foram-se somando novas preocupações. Aos poucos, foi-se tomando consciência de que a contratação pública, a par dos seus objetivos imediatos, pode servir como instrumento de realização das mais variadas políticas públicas, nomeadamente ambientais e sociais”.[8]

De forma semelhante, Pedro Costa Gonçalves leciona:

“O incentivo à inovação tecnológica, a promoção da sustentabilidade e as políticas sociais e ambientais são valores e objetivos de interesse público que o direito da contratação pública também deve proteger, no contexto deste princípio da prossecução do interesse público ou de interesses públicos, no plural”.[9]

A proteção dos direitos e das liberdades dos portadores de deficiência pode ser inserida, em última análise, nos fundamentos da isonomia (material) e do desenvolvimento nacional sustentável, insculpidos no art. 3.º da Lei 8.666/1993. Aliás, em relação ao último fundamento, é preciso ressaltar que o desenvolvimento sustentável não é apenas de índole econômica e ambiental, mas abrange, também, a sustentabilidade sociopolítica, com destaque para a promoção da dignidade das pessoas.[10]

Evidentemente, não se pode perder de vista que as contratações públicas objetivam a seleção da melhor proposta e o atendimento das necessidades administrativas, sendo descabido pensar que podem servir para solução de todas as ineficiências e mazelas estatais no cumprimento de suas missões constitucionais.

Por esta razão, a interpretação da função regulatória da licitação não pode ser fundamentalista, razão pela qual a inserção de objetivos relevantes (de caráter social ou ambiental, por exemplo) nos processos de seleção pública deve ser compatível com o princípio da proporcionalidade e não pode inviabilizar a obtenção, pelo Estado, dos bens e serviços necessários para o funcionamento da máquina administrativa e prestação dos serviços públicos.

É o caso, por exemplo, do art. 24, XX, da Lei 8.666/1993 que admite a dispensa de licitação para contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão de obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.[11]

Com as alterações promovidas pela Lei 13.146/2015, a Lei 8.666/1993 reforça a tendência de utilização das contratações públicas para incentivar a inclusão dos portadores de deficiência no mercado de trabalho.[12]

A primeira inovação diz respeito ao desempate entre os licitantes, com a inserção de tratamento favorável aos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social. De acordo com o art. 3º, § 2.º da Lei 8.666/1993:

“Art. 3.º (…)

§ 2.º  Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:

I – (revogado).

II – produzidos no País;

III – produzidos ou prestados por empresas brasileiras.

IV – produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País

V – produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.” (grifo nosso).

A preferência no desempate entre os licitantes levará em consideração, portanto, os parâmetros acima transcritos que serão observados em ordem “sucessiva”. Desta forma, a preferência aos bens e serviços prestados por empresas que comprovem vínculos empregatícios com portadores de deficiência ou reabilitado da Previdência Social, na forma da legislação em vigor, seria o quarto critério de desempate. Apesar de não vislumbrarmos inconstitucionalidade nessa ordem de preferência, parece-nos, de lege ferenda, que o novo critério de desempate deveria ter prioridade em relação aos demais, especialmente pela sua forte vinculação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A segunda novidade refere-se à alteração do § 5.º do art. 3.º da Lei 8.666/1993 para incluir margem de preferência em favor dos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem o cumprimento de reserva de empregos para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social, bem como que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.[13] O dispositivo em comento dispõe:

“Art. 3.º (…)

(…)

§ 5.º Nos processos de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para:

I – produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras; e

II – bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.” (grifo nosso).

Verifica-se, desde logo, que a legislação não condiciona a participação na licitação e a contratação administrativa à presença de número mínimo de empregados com deficiência nas empresas licitantes ou ao fornecimento de produtos e serviços nacionais.[14]

Com isso, a função regulatória da licitação é utilizada de forma proporcional, pois permite a competitividade no certame, sem desconsiderar a preferência, na definição do vencedor, para empresas que implementam valores constitucionais sensíveis.

Em verdade, a legislação permite a participação de toda e qualquer empresa interessada na licitação, mas a nova redação do dispositivo passou a consagrar duas preferências distintas: a) a primeira com o objetivo de garantir o desenvolvimento nacional sustentável (inciso I) e b) a segunda para garantir a inclusão no mercado de trabalho dos portadores de deficiência ou reabilitados da Previdência Social (inciso II).

A partir da ponderação de interesses, a economicidade da contratação é relativizada em favor do desenvolvimento nacional sustentável e da proteção dos portadores de deficiência.

Contudo, os demais parágrafos do art. 3.º da Lei 8.666/1993 não sofreram alterações para se adaptarem à nova margem de preferência, o que parece ter sido um lapso da Lei 13.146/2015 e pode gerar controvérsias.

Veja-se, por exemplo, que o § 8.º determina que a margem de preferência prevista nos §§ 5.º e 7.º do citado dispositivo não poderá ultrapassar 25% “sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros”, nada mencionando sobre o limite da margem de preferência para as empresas que tenham empregados portadores de deficiência ou reabilitados da Previdência Social. Transcreva-se o dispositivo em comento:

“Art. 3.º (…)

(…)

§ 8.º  As margens de preferência por produto, serviço, grupo de produtos ou grupo de serviços, a que se referem os §§ 5.º e 7.º, serão definidas pelo Poder Executivo federal, não podendo a soma delas ultrapassar o montante de 25% (vinte e cinco por cento) sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros.”

Não obstante a ausência de menção expressa ao limite da margem de preferência incluída pela Lei 13.146/2015, entendemos que o limite de 25% previsto para os “produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras” deve ser também aplicado aos bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem o cumprimento da legislação de acessibilidade e cumpram os quantitativos mínimos legais de empregados com deficiência ou reabilitados da Previdência Social. Além de efetivar os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da isonomia, a aplicação dos mesmos limites se justifica pela menção das duas margens de preferência no mesmo dispositivo legal.

De qualquer forma, assim como sustentamos em obra específica sobre o tema para a margem de preferência para os produtos e serviços nacionais, a margem de preferência para os bens e serviços de empresas com empregados portadores de deficiência depende de regulamentação pelo Poder Executivo, inclusive com fundamento no § 8.º do art. 3.º da Lei 8.666/1993.[15]

Aliás, o regulamento deverá estabelecer, inclusive, como serão compatibilizadas as duas margens de preferência, que não são excludentes e não são, necessariamente, coincidentes. Imagine-se, hipoteticamente, o resultado da licitação que apresente, dentro da margem de preferência, a primeira colocada (empresa de produtos e serviços estrangeiros), a segunda colocada (empresa de produtos e serviços nacionais que não atendam a normas técnicas brasileiras, mas que cumpram os requisitos legais de empregados portadores de deficiência) e a terceira colocada (empresa de produtos e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras, mas que não possuem o quantitativo legal mínimo de empregados portadores de deficiência).

A Lei 8.666/93 não evidencia, de forma clara, como será resolvida essa dessa questão, o que abre caminho para solução pelo regulamento. A interpretação conjugada do § 8.º e do § 2.º do art. 3.º da Lei 8.666/1993 poderia sugerir que os bens e serviços produzidos no País e produzidos ou prestados por empresas brasileiras tenham preferência em relação aqueles que sejam produzidos ou prestados por empresas que tenham o número exigido por lei de empregados portadores de deficiência.

Todavia, entendemos que a preferência mencionada no § 2.º deve ser utilizada restritivamente apenas para os casos de desempate entre propostas e não deve vincular a interpretação do § 8.º que trata de propostas diferentes (inexistência de empate) entre licitantes, razão pela qual o campo discricionário do regulamento deve estabelecer os critérios e os percentuais para aplicação da margem de preferência.

Em princípio, a empresa, que cumprir os requisitos das duas margens de preferência, teria prioridade em relação aos demais licitantes. Na hipótese em que uma empresa cumprir uma margem de preferência e a outra empresa cumprir a outra margem de preferência (solução apresentada no exemplo hipotético acima), a solução, em princípio, deve ser resolvida em favor da empresa que apresentar o menor preço.

Enquanto não regulamentada a margem de preferência para as empresas, com empregados portadores de deficiência, as empresas fornecedoras de bens e serviços nacionais, que já foram objeto de regulamentação específica, teriam preferência nas licitações.

Registre-se, ainda, que as empresas que tenham empregados portadores de deficiência ou reabilitados da Previdência, beneficiadas com a aplicação das regras favoráveis de desempate (art. 3º, § 2.º, V) e/ou pela margem de preferência (art. 3º, § 5.º, II), deverão cumprir, durante todo o período de execução do contrato, a reserva de empregos prevista em lei, bem como as regras de acessibilidade previstas na legislação, na forma do art. 66-A da Lei 8.666/1993, incluído pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Nesse caso, o descumprimento da exigência legal no curso do contrato poderia acarretar a rescisão do contrato, com a aplicação das sanções respectivas.

Por fim, é importante observar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência alterou a Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) para incluir na tipificação do ato de improbidade administrativa, por violação aos princípios da Administração Pública, a ausência de cumprimento dos requisitos de acessibilidade previstos na legislação. É o que dispõe o inciso IX do art. 11 da LIA, incluído pela Lei 13.146/2015:

“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

(…)

IX – deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação.”

Lembre-se que a configuração do ato de improbidade administrativa por violação aos princípios da Administração depende da comprovação do dolo ou da má-fé do infrator, não sendo suficiente a atuação culposa.[16]

4) Conclusões

Destarte, é possível concluir que o Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece importantes exigências para garantir a inclusão social e o exercício da cidadania pelos portadores de deficiência, inclusive no campo das licitações e contratações públicas.

O tratamento favorável às empresas que comprovem o cumprimento de reserva de empregos, prevista em lei, para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social, bem como que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação, encontra respaldo constitucional (arts. 1.º, III, e 23, II, da CRFB) e cumpre valores constitucionais sensíveis (interesse público primário) ao relativizar, de forma proporcional, a economicidade (interesse público secundário) das contratações públicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ESTORNINHO, Maria João. Curso de Direito dos contratos públicos, Coimbra: Almedina, 2012.

FERRAZ, Luciano. Função regulatória da licitação. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, v. 37, 2009.

GONÇALVES, Pedro Costa. Direito dos contratos públicos, Coimbra: Almedina, 2015.

MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: A Lei Geral de Licitação – LGL e o Regime Diferenciado de Contratação – RDC. São Paulo: Malheiros, 2012.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de improbidade administrativa. 3. ed., São Paulo: Método, 2015.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 3. ed., São Paulo: Método, 2015.

______________. Licitações e contratos administrativos, 4. ed., São Paulo: Método, 2015.

PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Desenvolvimento sustentável: a nova cláusula geral das contratações públicas brasileiras. In: Interesse Público. Belo Horizonte, ano 13, n. 67, maio/jun., 2011.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo das parcerias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

______________. Direito administrativo contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.


[1] CRFB: “art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana; (…) art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (…) II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.
[2] STF, Tribunal Pleno, ADIn 2.649/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe-197 17.10.2008, p. 29, Informativo de Jurisprudência do STF n. 505.
[3] Sobre o tema, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 3. ed., São Paulo: Método, 2015. p. 672. Registre-se que a obrigação de empregar pessoas com deficiência no setor público foi assumida pelo Brasil no art. 27, 1, “g”, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
[4] De acordo com o STF, é inconstitucional a exigência de comprovação de que a deficiência dificulta o exercício das atribuições do cargo postulado. A exclusão somente seria legítima se comprovada a incompatibilidade entre a deficiência e as funções inerentes ao cargo (STF, RMS 32732 AgR/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe-148 01.08.2014, Informativo de Jurisprudência do STF n. 762).
[5] A reserva de vagas não se aplica aos casos de provimento de cargo em comissão ou função de confiança, de livre nomeação e exoneração, bem como aos cargos ou empregos públicos integrantes de carreira que exija aptidão plena do candidato (art. 38 do Decreto).
[6] STF, Tribunal Pleno, MS 26.310/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe-134 31.10.07. Os Ministros Menezes Direito e Carmen Lúcia ficaram vencidos, pois entendiam que, no caso, deveria ser reservada ao menos uma vaga aos deficientes.
[7] Sobre a função regulatória da licitação, vide: SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo das parcerias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 86-89; Idem. Direito administrativo contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 6, p. 105, 328 e 424; FERRAZ, Luciano. Função regulatória da licitação. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, v. 37, p. 133-142, 2009; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 4. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 163-166.
[8] ESTORNINHO, Maria João. Curso de Direito dos contratos públicos, Coimbra: Almedina, 2012. p. 417.
[9] GONÇALVES, Pedro Costa. Direito dos contratos públicos, Coimbra: Almedina, 2015. p. 145.
[10] MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: A Lei Geral de Licitação – LGL e o Regime Diferenciado de Contratação – RDC. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 87. Ao comentar a cláusula do desenvolvimento nacional sustentável, Jessé Torres Pereira Júnior afirma: “O fundamento último desse desenvolvimento e dessa qualidade reside na dignidade da pessoa humana, com o compromisso da promoção do bem de todos, sem preconceito de qualquer índole (CR/88, artigos 1º, III, e 3º, IV)”. PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Desenvolvimento sustentável: a nova cláusula geral das contratações públicas brasileiras. In: Interesse Público. Belo Horizonte, ano 13, n. 67, p. 69, maio/jun., 2011.
[11] Sobre o tema, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 4. ed., São Paulo: Método, 2015. p. 79.
[12] Vale lembrar que a Lei 13.146/2015 entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial que ocorreu no dia 07/07/2015.
[13] Em âmbito federal, o Decreto 3.298/1999, que regulamentou a Lei 7.853/1989 dispõe: “Art. 36.  A empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada, na seguinte proporção: I – até duzentos empregados, dois por cento; II – de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento; III – de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; ou IV – mais de mil empregados, cinco por cento.”
[14] Nesse ponto, é mais restritivo o Decreto 33.925/2003 do Estado do Rio de Janeiro que condiciona a contração estatal de empresas privadas à presença de percentual mínimo de empregados portadores de deficiência. O art. 1.º, caput, do diploma normativo dispõe: “Art. 1.º – Nas contratações diretas e nas licitações realizadas por órgãos e entidades da Administração Pública Estadual direta e indireta, deverão constar dos respectivos editais, a obrigatoriedade para a empresa com 100 (cem) ou mais empregados de demonstrar o preenchimento de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada, na seguinte proporção: I – ate duzentos empregados, 2% (dois por cento); II – de duzentos e um a quinhentos empregados, 3% (três por cento); III – de quinhentos e um a mil empregados, 4% (quatro por cento); ou IV – mais de mil empregados, 5% (cinco por cento)”.
[15] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 4. ed., São Paulo: Método, 2015. p. 178.
[16] Sobre o tema: NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de improbidade administrativa. 3. ed., São Paulo: Método, 2015. p. 90-91.

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