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O novo CPC e os dispositivos-zumbis

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Processo Civil

NOVO CPC

PROCESSO CIVIL

O novo CPC e os dispositivos-zumbis

AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE

CPC 2015

DISPOSITIVOS ZUMBIS

LIQUIDAÇÃO ZERO

NOVO CPC

RÉPLICA

ZUMBIS

CPC 2015
CPC 2015

03/08/2015

Amigo leitor, o título do artigo de hoje é inusitado (ainda mais que o normal para este autor), para um assunto também inusitado, porém, mais comum do que se imagina. Quando um novo código é aprovado, é natural que o legislador priorize alguns assuntos em detrimento de outros, que lhe pareceram secundários ou mesmo desnecessários. Assim, por exemplo, poucos irão lamentar que o novo CPC não discipline mais a figura da posse em nome do nascituro (sério, alguém já viu um caso desses no Poder Judiciário?).

Em vez disso, o novo CPC centrou sua atenção, a título de ilustração, em temas de evidente importância, como o fortalecimento dos precedentes, sobretudo aqueles produzidos pelos tribunais superiores, e a estruturação – ou aprimoramento – das técnicas de julgamento por amostragem, como o incidente de resolução de demandas repetitivas e os recursos repetitivos.

Nem sempre, todavia, essa avaliação do legislador corresponde à realidade, ocasião em que acaba por abrir mão de disciplinar assuntos ainda relevantes. É nesses vazios normativos que, diante da omissão da nova legislação, surge a tentação de aplicar a regra antiga – revogada – como forma de solucionar os problemas que surgem.

Quando isso ocorre, é como se a regra revogada “ressuscitasse”, de forma velada. No mundo das normas, ela está morta, tendo dado espaço à nova legislação. No mundo real, todavia, ela continua viva e efetiva. É o que eu tenho chamado de “dispositivos-zumbis”, ou seja, regras do CPC de 1973 que, na prática, continuarão a ser aplicadas mesmo após o novo CPC.

Não que os dispositivos-zumbis nunca tivessem existido antes do novo CPC. Há alguns, ainda entre nós, que remontam ao século XIX.

Vou dar três exemplos no âmbito processual:

1) Réplica: amigo leitor, você já parou para pensar de onde veio a “réplica”? Procure por esse nome no CPC de 1973 e não achará nenhuma referência a ele. É verdade que os arts. 326 e 327 do CPC de 1973 estabelecem que, se o réu alegar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor ou, ainda, se alegar matéria preliminar em sua contestação, o autor deverá ser ouvido no prazo de dez dias. Mas “réplica”, como uma petição de resposta a qualquer contestação, independentemente de seu conteúdo, não há.
Vou te dizer onde você o encontra. Está lá no art. 101 do Regulamento 737/1850, revogado já há mais de um século.[1] Desde então, esse zumbi-réplica anda vagando pelas petições e cartórios da vida, aparecendo algumas vezes até mesmo em obras doutrinárias. E continuará a existir, pois o novo CPC estabeleceu idêntica disciplina para o assunto, apenas ampliando o prazo de dez para quinze dias (úteis). Esse é um exemplo criado mais pelo costume do que propriamente pela omissão do legislador.

2) Ação de imissão na posse: você já ouviu falar da ação de imissão na posse? Vou explicar do que se trata: consiste, de forma simplificada, em medida judicial destinada a assegurar a obtenção da posse a quem ainda não a tem. Não é, portanto, uma ação possessória, voltada à sua reintegração ou manutenção (pois posse ainda não houve), mas de cunho petitório. Como não há previsão da ação de imissão na posse no CPC de 1973 entre os procedimentos especiais, ela deve ser processada pelo procedimento comum.

De onde surgiu então esse nome? Está lá no CPC de 1939, mais precisamente nos arts. 381 a 383. Aqui, temos um zumbi criado pela omissão do legislador de 1973 em disciplinar assunto que permanecia relevante. Deu no que deu: uma breve pesquisa jurisprudencial no STJ mostra que a denominação, não por acaso, continua sendo utilizada frequentemente.

3) Liquidação zero: no CPC de 1939, havia um dispositivo que previa que, se as provas na liquidação de sentença não fossem suficientes para determinar o valor da condenação, o liquidante seria condenado nas custas, procedendo-se a nova liquidação (art. 915), ou seja, uma espécie de extinção da liquidação sem resolução de mérito. No CPC de 1973, o legislador não quis manter tal dispositivo, de maneira que, diante desse eloquente silêncio, não havendo provas suficientes para a demonstração do valor a ser liquidado, outra solução não restaria ao juiz, senão julgar a liquidação como de valor zero, não sendo possível ao interessado instaurar novo pedido de liquidação no futuro.

Mesmo assim, a omissão do legislador em disciplinar expressamente a liquidação com valor zero permitiu a criação jurisprudencial de mais um zumbi, mediante aplicação analógica de regra revogada (!) ao tempo do CPC de 1973 para restabelecer a extinção sem resolução do mérito como solução. [2] Entende-se que tal decisão do STJ está equivocada – afinal, a não reprodução de regra revogada aqui traduz evidência de que se quis modificar o regime – mas o fato é que aqui surgiu mais um zumbi para assombrar o processo civil.

* * *
No novo CPC, certamente surgirão mais alguns dispositivos-zumbis (e outros do CPC de 1939 ou mesmo da legislação que o antecedeu continuarão a vagar por aí, de sorte que o estudo de algumas matérias do CPC de 1973 permanecerá relevante, ainda que essas não tenham sido reproduzidas expressamente no novo código.

Para além dos dispositivos do CPC de 1973 mantidos pelo próprio legislador,[3] dou pelo menos um exemplo de zumbi que será criado pelo novo CPC: o novo Código estabelece que a tutela de urgência cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea (art. 301).

A pretexto de simplificar a matéria, o novo Código abriu mão de disciplinar de forma mais detalhada a procedimentalização dessas medidas cautelares. Quando o juiz dará um arresto? E o sequestro, quando será determinado? Qual o espaço reservado ao arrolamento de bens? Na falta de qualquer parâmetro normativo no novo CPC, é bastante provável que jurisprudência e doutrina mantenham as construções interpretativas que já vinham utilizando, com base em dispositivos do CPC de 1973 que, no entanto, serão revogados.

Assim é que, embora formalmente mortos, dispositivos do CPC de 1973 como os arts. 813 (hipóteses de arresto), 822 (sequestro) e 855 (arrolamento de bens) continuarão a vagar como zumbis, influenciando veladamente a produção doutrinária e as decisões judiciais na vigência do novo CPC. Mais do que isso: é possível que algumas outras regras, como aquelas relativas aos requisitos ao arresto (art. 814 do CPC de 1973, tal como a prova literal da dívida líquida e certa), ao depositário dos bens sequestrados (art. 824 do CPC de 1973) ou à formalização do arrolamento de bens (art. 859 e 860 do CPC de 1973) continuem a ser aplicadas. Algo parecido, em certo sentido, ao que se verifica hoje com a ação de imissão na posse.

Outros zumbis certamente surgirão. Alguns, de forma inesperada.

Exemplo disso é o que vem ocorrendo com o julgamento liminar de improcedência (art. 285-A, CPC de 1973; art. 332, novo CPC). O novo CPC promoveu significativa reforma no instituto da sentença liminar de improcedência. No CPC de 1973, tal possibilidade era bastante restrita, limitada às causas repetitivas de massa. Nos termos de seu art. 285-A, somente se admitia tal sentença liminar quando (i) a matéria controvertida fosse unicamente de direito (ou, melhor dizendo, não fosse necessária a produção de outras provas) e (ii) já houvesse sido proferida no mesmo juízo sentença de total improcedência, caso em que o seu teor seria reproduzido para fins de decisão nos processos subsequentes.

O novo CPC transformou a sentença liminar de improcedência em instrumento para assegurar que demandas contrárias a precedentes jurisprudenciais fossem rapidamente rechaçadas, a não ser que o autor demonstre ser a hipótese de distinção (distinguishing) ou superação do precedente (overruling). Assim é que ela caberá, no novo CPC, se a causa dispensar fase instrutória e se o pedido (i) contrariar enunciado de súmula do STF ou STJ; ou (ii) precedente em recurso especial ou extraordinário repetitivo; ou (iii) precedente decorrente de julgamento em incidente de assunção de competência ou incidente de resolução de demandas repetitivas; ou (iv) enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

O que é mais importante para se destacar aqui é que a hipótese prevista no art. 285-A do CPC de 1973 não foi repetida no novo CPC, evidência de que não mais se admitirá a sentença liminar de improcedência pela circunstância de já ter sido proferida no juízo, em processo anterior sobre a mesma matéria, sentença de total improcedência.

Era o que se imaginava…

Entretanto, recentemente chegou ao meu conhecimento que o seguinte enunciado sobre o novo CPC foi aprovado em discussões no âmbito da Justiça Federal de Pernambuco:

“Enunciado 17 – O artigo 332 do Novo Código de Processo Civil (Improcedência Liminar do Pedido) não obsta o julgamento de improcedência em outras hipóteses, quando no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos (hipótese do artigo 285-A, CPC/73)”.

Nesse caso, não dá para culpar o legislador. O enunciado chega a fazer referência a dispositivo que será revogado com o novo CPC. Um dos zumbis mais explícitos de que se tem notícia, não sendo exigível que o CPC de 2015 dissesse o óbvio, ou seja, que não caberia mais sentença liminar de improcedência nos casos do revogado art. 285-A do CPC de 1973.

* * *

Que outros zumbis surgirão após a entrada em vigor do novo CPC? É cedo ainda para respostas definitivas, mas a tentação de se interpretar os novos textos legislativos sob as lentes do CPC de 1973 é fator que não deve ser desprezado. Se você acha que tudo o que se construiu sob o código anterior se tornou irrelevante, muito cuidado: além de muitos dispositivos do novo CPC reproduzirem regras do CPC de 1973 ou se limitarem a promover ajustes pontuais, mesmo nos casos de efetiva alteração não se sabe quando um zumbi poderá surgir.

Enquanto não se sabe bem o roteiro desse Walking Dead processual, é prudente manter em perspectiva os estudos e construções forjados à luz do CPC de 1973. Este material, junto com a doutrina que já começou a surgir sobre o novo código, será essencial para a compreensão do que está por vir no direito processual civil brasileiro.


[1] Art. 101 do Regulamento 737/1850: “Offerecida a contestação, terão vista por dez dias cada um, o autor para replicar, e o réo para treplicar”.

[2] Confira-se: “Impossibilitada a demonstração do dano sem culpa de parte a parte, deve-se, por analogia, aplicar a norma do art. 915 do CPC/39, extinguindo-se a liquidação sem resolução de mérito quanto ao dano cuja extensão não foi comprovada, facultando-se à parte interessada o reinício dessa fase processual, caso reúna, no futuro, as provas cuja inexistência se constatou” (STJ, REsp 1280949/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/09/2012, DJe 03/10/2012).

[3] Mesmo após a entrada em vigor do novo CPC, a execução contra devedor insolvente continuará a ser regulada pelo CPC de 1973, até que sobrevenha legislação específica (art. 1.052), assim como as regras do CPC de 1973 relativas às hipóteses de procedimento sumário continuarão a ser consideradas para definir a competência dos Juizados Especiais Cíveis (art. 1.063). Esses verdadeiros zumbis legislativos, conscientemente criados – razão pela qual não se enquadram propriamente no conceito de dispositivo-zumbi definido no texto –, também não são algo inédito. O CPC de 1973, em seu art. 1.218, manteve em vigor partes do CPC de 1939, criando alguns zumbis legislativos que permanecem até hoje, como é exemplo o procedimento de dissolução e liquidação de sociedades, que não é exaurido nem mesmo pelo novo CPC (!), como destacado em outro texto nesta coluna: ROQUE, Andre Vasconcelos. Ele, o novo CPC, visto pelas empresas – parte II, em https://blog.grupogen.com.br/juridico/2015/05/25/novo-cpc-visto-pelas-empresas-parte-2/ (v. item 5, “Esqueceram de mim: ação de dissolução parcial de sociedade (arts. 599 a 609)”).


VEJA AQUI OUTROS TEXTOS DA SÉRIE CPC 2015

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