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Interação entre Novo CPC e Lei de Mediação: primeiras reflexões

MEDIAÇÃO

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Fernanda Tartuce

Fernanda Tartuce

04/09/2015

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Nos últimos dezessete anos variados projetos de lei sobre mediação tramitaram no Congresso brasileiro; considerando a primeira grande iniciativa engendrada em 1998, após diversos movimentos finalmente a normatividade tornou-se real. O Novo Código de Processo Civil, promulgado em 16/03/2015, contempla regras sobre a mediação judicial em diversos dispositivos, estando prevista sua entrada em vigor para março de 2016.

O legislador, contudo, não pareceu satisfeito nem disposto a deixar que o Código processual se tornasse o marco legal sobre tema. Um projeto de lei específico (Projeto de Lei nº 517/2011) seguiu tramitando até redundar na Lei de Mediação: promulgada em 29/06/2015, a Lei 13.140 prevê regras sobre a mediação nos âmbitos judicial e extrajudicial, estando prevista sua entrada em vigor para dezembro de 2015.

Considerando as regras de vacatio legis previstas nas leis, a Lei de Mediação incidirá no ordenamento antes do Novo CPC. Embora haja dispositivos semelhantes, há também diferenças marcantes entre as previsões normativas das legislações; quais merecerão prevalecer? É útil sistematizar dados sobre as teis para compreender seu perfil.

Para entender como pode se dar a interação normativa, é importante analisar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: o Decreto-lei nº 4.657/42 contempla relevantes critérios de hermenêutica jurídica a serem cotejados pelo intérprete caso, no momento de aplicação das normas, constate imperfeições[1].

Seu artigo 2º[2] consagra o princípio da continuidade da lei: a norma, a partir de sua entrada em vigor, tem eficácia continua até vir outra que a modifique ou revogue[3].

Tal diretriz trabalha com o referencial de vigor das leis. Sob tal prisma, uma primeira questão a ser respondida é: dentre as duas novas legislações, qual é a lei posterior? Se considerarmos a publicação, lei posterior será a Lei de Mediação, que adveio três meses depois do Novo CPC. Contudo, como ela integrará o ordenamento jurídico antes (por sua vacatio legis ser mais curta), em termos de vigor o Novo CPC virá ao ordenamento depois.

De todo modo, a tendência não é considerar pura e simplesmente a revogação de uma lei por outra; não foi essa, pelo menos, a opção do legislador. A apresentação do Projeto de Lei nº 517 em 2011 foi justificada pela necessidade de criar um sistema de mediação  afinado com o Novo CPC e a Resolução n° 125 do CNJ[4]; nessa perspectiva, se fosse efetivo o interesse de revogar previsões do Novo CPC, a Lei de Mediação o teria feito expressamente.

No mais, vale lembrar como se opera a revogação segundo a Lei de Introdução brasileira: “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (art. 2o § 1.º); contudo, se a lei nova vier a estabelecer disposições gerais ou especiais diversas das já existentes, não revogará nem modificará a lei anterior (§ 2º).

Eis um exercício para testar a aplicabilidade de tais previsões em relação ao Novo CPC e a Lei de Mediação.

Se considerarmos, no cotejo entre ambas, que a Lei de Mediação é a lei posterior, é forçoso reconhecer que não há em seu teor qualquer declaração expressa sobre revogação. É ela incompatível com o Novo CPC? Não: apesar de haver regras pontuais diferenciadas, a estrutura de princípios e diretrizes é similar. Pode-se dizer que a Lei de Mediação regula inteiramente a matéria de que trata o Novo CPC? Tampouco: como este se dedica a disciplinar a atuação dos sujeitos processuais em juízo, traz mais regras detalhadas do que a Lei de Mediação em relação a certos temas – por ex., ao dispor sobre a adoção da via consensual em conflitos familiares e em demandas possessórias. Assim, pode-se conceber que a Lei de Mediação, considerada como lei nova que prevê disposições gerais e especiais diferentes das que constam no Novo CPC, não o revoga nem modifica.

Consideremos agora o Novo CPC como lei nova (posterior). Não há, obviamente, regra sobre a revogação da Lei de Mediação (que nem sequer existia quando do advento do novo Codex). É ele incompatível com a Lei de Mediação? Não: apesar de haver regras pontuais diversas, a estrutura de princípios é similar. Pode-se dizer que o Novo CPC regula inteiramente a matéria objeto da Lei de Mediação? Não: esta é mais detalhada em alguns temas (como a confidencialidade e a mediação envolvendo o Poder Público). Assim, pode-se conceber que o Novo CPC, considerado como lei nova contempladora de disposições gerais e especiais diferentes das que constam na Lei de Mediação, não a revoga nem modifica.

Por tais vertentes, percebe-se que a resposta não será simples em termos de considerar verificada a derrogação de certas previsões legais. Quem, porém, entender que há revogação tácita precisará examinar as disposições das leis (anterior e posterior) para verificar eventual incompatibilidade entre elas, dizendo quais previsões prevalecem.

O advento de novas normas traz à tona a temática da antinomia, situação de incompatibilidade entre leis válidas. Inicialmente, vale esclarecer que o conflito aqui tratado pode ser tido como aparente: enquanto as antinomias reais conduzem a uma situação sem saída, nos conflitos aparentes é possível, a partir da adequada interpretação e utilização de critérios apropriados, distinguir qual previsão tem precedência sobre a outra[5]. Via de regra, os critérios invocados[6] para a solução das antinomias entre normas costumam ser de três ordens: cronológico[7], hierárquico[8] e especialidade[9].

Consideremos, exemplificativamente, um conflito entre previsões do Novo CPC e da Lei de Mediação; pelos critérios acima apontados temos o primeiro como norma mais recente (em relação ao vigor) e de índole geral, enquanto a segunda é norma mais antiga (porquanto incidente antes) e mais específica. O critério hierárquico em nada interfere, já que neste quesito ambas ocupam o mesmo patamar.

Como apontado, como há diferenças entre a publicação da norma e sua entrada em vigor: a depender do referencial tanto o Novo CPC como a Lei de Mediação poderá ser reputado(a) como lei posterior.

É essencial verificar o critério da especialidade; afinal, diante de um conflito ele deverá prevalecer sobre o critério cronológico por força do princípio constitucional da isonomia[10] (que enseja a necessidade de prover tratamento peculiar a situações diferenciadas). Como bem pondera Norberto Bobbio,

A passagem de uma regra mais extensa (que abrange um certo genus) para uma regra derrogatória menos extensa (que abrange uma species do genus) corresponde a uma exigência fundamental de justiça, compreendida como tratamento igual das pessoas que pertencem à mesma categoria. A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa injustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado através de leis especiais, encontramos uma das regras fundamentais da justiça, que é a suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu). Entende-se, portanto, porque que a lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar este desenvolvimento[11].

Ao ponto, vale perquirir: a Lei de Mediação pode ser considerada lei especial? A resposta é positiva: a Lei 13.140/2015, apresentada para compor o marco legal regulatório sobre o tema no Brasil, cumpre tal papel.

Como bem explana Maria Helena Diniz,

“Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta (…) O tipo geral está contido no tipo especial. A norma gera só não se aplica ante a maior relevância jurídica dos elementos contidos na lei especial que a tornam mais suscetível de atendibilidade do que a norma genérica[12]”.

E como fica o Novo CPC nesse cenário? Segundo seu art. 1.046 § 2º, “permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”.

Sendo a Lei de Mediação uma norma especial, pode-se afirmar que ela regula um procedimento? Sim: embora reconheça ser a informalidade um dos princípios inerentes a tal meio consensual, a lei traz um detalhamento consistente sobre a sequência de atos a ser observada na mediação – referindo-se, por exemplo, à necessidade de advertência sobre a confidencialidade logo no início do procedimento. Pode-se concluir, portanto, que o Novo CPC deve ter reconhecida sua aplicação supletiva no que tange às regras de mediação judicial.

Vale ainda destacar a proposta contemporânea (formulada pelos partidários da teoria do dialogo das fontes) no sentido de promover a substituição da análise estrita desses clássicos critérios.

A tese do diálogo das fontes, desenvolvida na Alemanha por Erik Jayme e trazida ao Brasil pela jurista Claudia Lima Marques preconiza, em essência, que as normas jurídicas não se excluem – supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se complementam… Como se percebe, tal marco teórico contempla a premissa de uma visão unitária do ordenamento jurídico[13]; como bem expõe Claudia Lima Marques,

“Nestes tempos, a superação de paradigmas é substituída pela convivência dos paradigmas, a revogação expressa pela incerteza da revogação tácita indireta através da incorporação (…) Há convivência de leis com campos de aplicação diferentes, campos por vezes convergentes e, em geral, diferentes (no que se refere aos sujeitos), em um mesmo sistema jurídico; há um ‘diálogo das fontes’ especiais e gerais, aplicando-se ao mesmo caso concreto[14]”.

A primeira justificativa para a aplicação do dialogo das fontes refere-se à funcionalidade: como vivenciamos uma explosão de leis (um “Big Bang Legislativo”, na feliz expressão de Ricardo Lorenzetti), nesse mundo pós-moderno, globalizado e complexo abunda a quantidade de normas jurídicas – a ponto de deixar o aplicador do Direito desnorteado[15]

Por força do diálogo das fontes é viável reconhecer a possibilidade de subsunção concomitante do Novo CPC e da Lei de Mediação; afinal, os dois sistemas normativos dispõem de princípios comuns, sendo seus pilares a autonomia da vontade, a imparcialidade, a confidencialidade, a oralidade e a informalidade.

Em casos de dúvida quanto a aplicação de normas de um ou outro instrumento normativo, o interprete deverá conduzir sua conclusão rumo à resposta que mais se coadune com os princípios da mediação.

Dialogar é preciso: essa lição, reforçada nas iniciativas consensuais, é essencial para promover respostas adequadas aos questionamentos decorrentes da interação entre o Novo CPC e a Lei de Mediação.

REFERÊNCIAS

[1] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, vol. 1. SP: Método, 2013, p. 14.

[2] Decreto-lei nº 4.657/42, Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

[3] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, vol. 1, p. 14.

[4] PINHO, Humberto Dalla Bernardina, O Marco Legal da Mediação no Direito Brasileiro. Disponível em https://www.academia.edu/9192642/O_Marco_Legal_da_Media%C3%A7%C3%A3o_no_Brqsil. Acesso 14 jul. 2015.

[5] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, trad. J. Batista Machado, Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 10ª ed, 2008, p. 313.

[6] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, trad. Maria Celeste C.J. Santos, 9ª ed., Brasília: UNB, 1997, p. 91-110 passim.

[7] Lex posterior derogat priori.

[8] Lex superior prevalece sobre a lex inferiori.

[9] Lex speciallis derogat generali.

[10] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Normas do Direito Brasileiro Interpretada. 18ª ed. SP: Saraiva, 2013, 97.

[11] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 96.

[12] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Normas do Direito Brasileiro Interpretada, p. 96 .

[13] TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil. SP: Método, 2015, p. 59.

[14] “A solução sistemática pós-moderna, em um momento posterior à decodificação, à tópica e à micro-recodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo do nosso direito contemporâneo; deve ser mais fluida, mas flexível, tratar diferentemente os diferentes, a permitir maior mobilidade e fineza de distinções” (MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de defesa do consumidor / Claudia Lima Marques, Antonio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 62-63).

[15] TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil, p. 59.


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