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Antonio Fernando Costa Pires Filho

Antonio Fernando Costa Pires Filho

21/09/2015

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Era uma vez o Lexvaldo. Lexvaldo nasceu na rua, debaixo de uma laje do metrô da Praça da Sé em SP. Fruto de uma gravidez não querida, foi abandonado ali mesmo e encontrado quase morto de fome aproximadamente 24h depois e com frio.

Foi levado a um hospital público para aleitamento e cuidados. O médico confidenciou a uma enfermeira que ele poderia, muito provavelmente, ter sequelas de um choque ou trauma após ter caído de dentro de sua mãe. Ou, ainda, danos decorrentes do cordão umbilical enrolado ou todos esses danos oriundos de um parto sem atenção. Danos irreparáveis, cerebrais, caso tenha caído de cabeça no chão com muita força ou ficado muito tempo sem comer. Nada se sabia sobre sua mãe, se era viciada ou não, se por acaso se alimentava ou não, se tomava remédios, etc.

Lexvaldo não teve carinho ao nascer e nem teve carinho até hoje. Lexvaldo saiu do hospital com uma semana de vida e foi direto para um abrigo público. O nome “Lexvaldo” foi-lhe dado pelo diretor do abrigo, que nunca concluiu o curso de direito, mas gostava da palavra “lex”. Lexvaldo nunca teve um berço ou bichinhos, carrinhos e videogames. Dormia numa cama com outros Lexvaldos e se alimentava minimamente, duas ou três vezes ao dia. Brincou com pedrinhas, cacos de vidro e pedaços de pau até os 12 anos. Brincava quando podia.

Não teve educação adequada. Faltavam verbas para o ensino em orfanatos públicos.

Quando tinha 5 anos, idade mais ou menos oficial de ingresso na escola, Lexvaldo brincava novamente com pedrinhas, cacos de vidro e pedaços de pau. Aos 7 anos de idade, um professor desinteressado e bronco passou por ali. Não conseguiu lhe ensinar a ler e escrever. Aparentemente, nem o professor nem ele sabiam ler, escrever, pensar e falar direito. Lexvaldo tornou-se um analfabeto funcional: sabia contar até 20 ou 30, sabia ler e escrever seu nome e compreender apenas pequenas locuções, simples, desde que não contivessem a letra “ipisilone” ou outras letras muito difíceis. Sabia que a capital do Brasil era Brasília e só.

Lexvaldo apanhava muito no orfanato. Cansou-se e fugiu. Foi morar nas ruas aos 12 anos de idade. Continuou apanhando nas ruas, é claro, mas era bem melhor apanhar nas ruas, pois podia trocar de rua ou de quarteirão quando apanhasse.

Lexvaldo sobrevivia de restos de comida dos lixos. Comia restos de arroz, feijão, maçã.

Lexvaldo descobriu algumas manhas da rua: era preciso estar sempre de madrugada escondido atrás de um poste, próximo a um restaurante. Após o lixo ser despejado, dava tempo de fuçar nos sacos até a chegada dos lixeiros. Lexvaldo nunca trabalhou. Descobriu mais manhas das ruas: limpar para-brisas, pedir esmolas com cara de doente, cometer pequenos furtos, tomar conta de veículos e coisas assim.

Lexvaldo, aos 17 anos de idade, começou a cheirar cola para disfarçar o frio, a fome e o cansaço que vêm naturalmente das ruas e das brigas. Certa feita, imbuído da coragem própria das drogas, Lexvaldo decidiu roubar uma mulher que tinha estacionado seu carro no estacionamento de um hipermercado. Deu-se mal. A mulher gritou, os seguranças acudiram e Lexvaldo foi levado à Delegacia. Da Delegacia foi direto para a Febem.

A Febem, na verdade, era como o orfanato ou as ruas. Apanhava-se muito, comia-se mal e sofria-se todo tipo de tortura mental, por parte dos internos e dos funcionários públicos mal remunerados. Lexvaldo foi sentenciado a ficar ali até os 18 anos de idade.

Lexvaldo saiu da Febem aos 18 e continuou nas ruas. Interessava-se por mulheres nesta idade, mas sabia que nunca se deitaria com uma. Lexvaldo morava embaixo de viadutos, em casinhas de papelão, às vezes bebia cachaça quando tinha 1 real e fumava bitucas. O banheiro de Lexvaldo era a rua. Sua sala de estar era a rua. Não tinha TV, rádio, nada. Lutava para conseguir 2 ou 3 reais por dia para comer. Tomava banho quando chovia ou em córregos. Às vezes Lexvaldo achava que era inimigo de seu próprio corpo.

Lexvaldo aparentava estar doente já aos 30 anos de idade. Dificilmente cortava as unhas e usava a mesma roupa havia 10 anos. Sua barba era comprida e sua aparência era a única aparência possível para quem mora nas ruas: aparência de rua. Metade de seus dentes já tinha caído. Alguns deles ele arrancou com uma faca, pois não aguentava mais de tanta dor. Caminhava e respirava com dificuldade. Nunca tomou vitaminas, remédios adequados nem foi ao médico. Certa vez, uns meninos ricos tentaram lhe atear fogo, como passatempo, e Lexvaldo perdeu as roupas, todas queimadas. Não gostava de abrigos, mas viu-se forçado a pedir roupas usadas num abrigo da Prefeitura, que também dava café da manhã grátis, mas mediante cadastro. Lexvaldo apareceu lá pelado, vestiu-se, tomou café sem cadastro e foi-se.

Lexvaldo não se incomodava mais em morrer ou viver. Apenas acordava e vagava durante o dia. Lexvaldo sentia que parecia um cachorro e que poderia ter um pouco de dignidade um dia, mais do que um cachorro, talvez comer uma refeição gostosa um dia. Os sonhos não se perdem, nem os sonhos do mendigo nem os sonhos dos ricos.

Eis que, um belo dia, uma equipe de reportagem de um candidato a Prefeito da cidade de SP abordou Lexvaldo debaixo de uma ponte. A repórter disse rapidamente do que se tratava (propaganda para seu chefe) e se poderia lhe fazer umas perguntas e filmá-lo. Lexvaldo pediu uma esmola e foi atendido, consentindo, então, com a encenação.

Quando apontaram-lhe a câmera e a repórter lhe perguntou “Lexvaldo, qual é seu maior sonho?”, Lexvaldo respondeu sem dúvida nenhuma, sem pestanejar por nem um instante e sem nenhuma hesitação no coração: ‘Meu maior sonho é morar numa favela’”.

Fonte inspiradora: para os efeitos dos arts. 46, III e 47, ambos da Lei dos Direitos Autorais [Lei nº 9.610/98], citamos como fonte inspiradora deste conto a seguinte faixa da seguinte obra musical: autor – Gabriel, O Pensador – CD “Gabriel, O Pensador” – faixa: “O Resto do Mundo” – 1993


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