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Direito intertemporal: nem foi tempo perdido – parte I

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Direito intertemporal: nem foi tempo perdido – parte I

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Andre Vasconcellos Roque
Andre Vasconcellos Roque

12/10/2015

1. Não temos tempo a perder

Um dos temas mais subestimados nas reformas legislativas diz respeito ao conflito de leis no tempo ou, como se costuma denominar, o direito intertemporal. Assunto normalmente relegado para as disposições finais – e o novo CPC não é exceção –, em regra a doutrina não costuma lhe dar muita atenção.

No Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), evento que reúne professores de direito processual de todo o Brasil a cada seis meses para discutirem propostas de interpretação do novo CPC, não foi diferente. Houve grupos de discussão específicos sobre direito intertemporal nas edições de Belo Horizonte (dezembro/2014) e Vitória (maio/2015), os quais, todavia, estavam significativamente esvaziados, se comparados a outros temas, que contavam com número bem maior de participantes.

Mas os esforços daqueles que trabalhavam com direito intertemporal e o novo CPC e alertavam para os problemas que estavam por vir não foram em vão. Para o próximo FPPC, a se realizar em Curitiba (outubro/2015), o grupo que tratará do tema conta com número expressivo de inscritos. Ademais, a doutrina começa a olhar com preocupação o tema, tendo sido inclusive publicada uma coletânea de artigos sobre o novo CPC que, entre outros assuntos, trata especificamente do “direito transitório”.[1]
Tal preocupação da doutrina, evidentemente, não se deu por acaso.

2. A tempestade que chega

O direito intertemporal enfrenta questionamento que, em linhas gerais, parece bastante simples, mas é sempre fonte de tormentosos problemas. Para as relações jurídicas que começaram a se desenvolver ao tempo da lei anterior – revogada –, será aplicada a regra antiga ou os novos dispositivos legais?

Tratando-se de um novo Código de Processo Civil, a discussão assume contornos dramáticos. Segundo números divulgados pelo CNJ, há cerca de 100 milhões de processos pendentes e, ainda que boa parte deles não seja exclusivamente regulada pelo CPC – afinal, não se pode ignorar que, nesse número global, há processos criminais, trabalhistas e eleitorais, entre outras áreas específicas – o impacto da reforma em tela será, para dizer o mínimo, extremamente significativo.

A pergunta que se coloca, portanto, é a respeito de qual regra processual será aplicada (CPC-1973 ou CPC-2015) aos processos pendentes.
Ainda que o CPC-2015, em muitos aspectos, consista em simples reprodução de regras do CPC-1973, assemelhando-se mais a um “museu de grandes novidades”,[2] não se pode desprezar que não foram poucas as alterações empreendidas e cada uma delas deverá, a seu tempo, ser analisada sob a perspectiva do direito intertemporal.

Vamos a alguns exemplos do que estamos falando:

1) Decisão que indefere prova pericial é publicada ainda sob a vigência do CPC-1973, encerrando-se o prazo para o agravo de instrumento já com o CPC-2015 em vigor. Considerando que o art. 1.015 do CPC-2015 não elenca tal matéria entre as hipóteses (presumivelmente taxativas) para o agravo de instrumento, a parte poderá interpor ainda assim o recurso, dentro do prazo, valendo-se do regime do CPC-1973, ou deverá correr para apresentar o recurso antes que o CPC-2015 comece a vigorar?

2) Ainda neste exemplo, admitindo-se que seja cabível o agravo de instrumento, como deverá ser contado o prazo? No CPC-1973, o prazo é de dez dias corridos. No CPC-2015, de acordo com os arts. 219 e 1.003, § 5º, o prazo será de quinze dias úteis. Supondo que o novo Código entre em vigor no quinto dia desse prazo, como ele deverá ser computado? Em dias corridos? Em dias úteis? Até dez dias? Até quinze dias? Ou alguma forma híbrida que combine os regimes dos dois códigos?

3) Ainda neste exemplo, caso a decisão tenha sido publicada ao tempo do CPC-1973 e a parte contrária apresente embargos de declaração, os quais são rejeitados já na vigência do CPC-2015, alguma das respostas acima se altera, no que concerne ao cabimento do agravo de instrumento e à contagem do prazo?

4) Recurso especial interposto na vigência do CPC-1973 e ainda não processado na data em que entrou em vigor o CPC-2015 deverá ter seu juízo de admissibilidade no tribunal de origem (como determina o CPC-1973) ou subirá diretamente ao STJ, sem qualquer juízo de admissibilidade na origem, como prevê o art. 1.030 do CPC-2015?[3]

5) Determinada a citação do réu sob a vigência do CPC-1973, o qual determina, para o procedimento ordinário, que o prazo para contestação se inicia da juntada do mandado de citação positivo aos autos, o que deverá fazer o Oficial de Justiça se ainda não tiver realizado o ato citatório quando entrar em vigor o CPC-2015, cujo art. 334 estabelece que, em regra, deve ser designada audiência de conciliação ou mediação? Deve devolver o mandado sem cumprimento para aditamento? Deve, ainda assim, cumprir a diligência? E o réu citado nestas condições, que prazo terá para contestar? Da juntada do mandado aos autos ou na forma do art. 335 do CPC-2015?

Muitas outras perguntas poderiam ser – e certamente serão! – feitas, sendo inúmeros os complexos problemas de direito intertemporal trazidos por um novo CPC.

O fato é que faltam apenas seis meses para a entrada em vigor do novo CPC[4] – salvo, claro, eventual alteração da vacatio legis. A tempestade está chegando…

3. Temos nosso próprio tempo

O CPC-2015, prevendo que determinadas questões envolvendo direito intertemporal ensejariam maiores dificuldades, cuidou de estabelecer algumas regras objetivas para solucionar específicos conflitos de leis processuais no tempo. Infelizmente, tais regras não são nem de longe suficientes para resolver todos os problemas.

Vamos a elas:

a) 1.046, § 1º: as disposições do CPC-1973 relativas ao procedimento sumário e aos procedimentos especiais suprimidos do CPC-2015 continuarão a ser aplicadas às ações propostas e não sentenciadas até o início da vigência do novo CPC. Hipótese evidente de ultra-atividade da lei revogada.

b) 1.046, § 5º: para a primeira lista de prioridade cronológica de julgamento (art. 12, CPC-2015), relativa aos processos já conclusos na data de entrada em vigor do novo CPC, será observada a ordem de antiguidade na distribuição. Critério subsidiário, que logo desaparecerá, na medida em que esses processos conclusos forem julgados.

c) 1.047: segundo este dispositivo, as regras de direito probatório do CPC-2015 somente se aplicam às provas requeridas ou determinadas de ofício na sua vigência. Trata-se de solução inusitada, porque as partes podem vir a requerer as provas em datas distintas. Além disso, evidentemente, o juiz poderá determinar de ofício alguma prova em momento posterior no processo. Faria sentido que, em uma audiência de instrução e julgamento, por exemplo, algumas testemunhas fossem ouvidas de acordo com o CPC-1973 (que determina que as perguntas sejam feitas pelo juiz) e outras pelo CPC-2015 (que permite, na forma do art. 459, as perguntas diretamente pelas partes)?

Essa regra criará mais problemas que soluções. Teria sido melhor estipular – assim como ocorre com o conflito de leis no tempo sobre recursos – que a admissibilidade da prova se rege pela lei vigente ao tempo do requerimento ou da sua determinação pelo juiz (não podendo, portanto, o legislador retirar da parte o direito adquirido a certa prova que se admitia na lei revogada), mas o procedimento probatório se regula de forma imediata pela lei que vigorar ao tempo em que a prova for produzida.

d) 1.054: a formação de coisa julgada sobre as questões prejudiciais (art. 503, § 1º) somente ocorrerá para os processos iniciados sob a vigência do CPC-2015. Solução digna de elogios, na medida em que a coisa julgada sobre prejudiciais (chamada por alguns de “coisa julgada excepcional”)[5]exige, entre outros requisitos, que tenha havido contraditório prévio e efetivo, não podendo as partes serem surpreendidas com um novo regime para a coisa julgada que sobrevenha para as causas pendentes.

e) 1.056: segundo esta regra, será considerada como termo inicial do prazo da prescrição intercorrente (art. 924, V), inclusive para as execuções em curso, a data de vigência do CPC-2015. Sob o aspecto estritamente do direito intertemporal, nenhuma crítica. Causa estranheza, contudo, a impressão de que, para o legislador, não existiria prescrição intercorrente na execução (fora do âmbito das execuções fiscais) ao tempo do CPC-1973, o que contraria diversos precedentes sobre a matéria, que já reconhecem a figura da prescrição intercorrente, mesmo não estando tal figura expressamente prevista no código processual civil de 1973.

Uma interpretação adequada para essa regra estaria na sua conjugação com o art. 921, § 4º, segundo o qual, decorrido o prazo de um ano de suspensão da execução por não ter sido localizado o executado ou não terem sido encontrados bens penhoráveis, começa a correr o prazo de prescrição intercorrente.

Observe-se que tal prazo começa a fluir independentemente de intimação do exequente, afastando consolidada orientação do STJ, segundo a qual somente haveria prescrição intercorrente se o exequente antes fosse intimado pessoalmente para dar prosseguimento ao feito.[6] Trata-se, assim, de regra que modifica jurisprudência sedimentada, de modo que o art. 1.056 consubstancia, em sede legislativa, a proteção da tutela da confiança do jurisdicionado e da segurança jurídica (art. 927, § 4º, CPC-2015).

f) 1.057: no CPC-2015, nem todo título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo STF poderá ser considerado inexigível por simples impugnação ao cumprimento de sentença. Tal regime apenas se mantém caso a decisão do STF seja anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda (arts. 525, § 14 e 535, § 7º). Caso esta seja posterior, deverá a parte interessada lançar mão da ação rescisória (arts. 525, § 15 e 535, § 8º), cujo prazo, de forma bastante criticável, se inicia apenas com o trânsito em julgado da decisão do STF[7] – que pode se dar muitos anos após a decisão exequenda, traduzindo intolerável insegurança jurídica.[8]

O fato é que esse novo regime de inexigibilidade da “coisa julgada inconstitucional” conta com uma regra de direito intertemporal específica. Nos termos do art. 1.057, a dualidade de vias processuais (impugnação ou rescisória) apenas se aplica às decisões exequendas transitadas em julgado sob a vigência do CPC-2015. Caso o trânsito tenha ocorrido no regime do CPC-1973, deverá a parte se valer da impugnação em qualquer caso, independentemente da data em que proferida a decisão do STF.
Há que se destacar um ponto importante sobre esta regra do art. 1.057: embora, sob o aspecto do direito intertemporal, a solução encontrada pelo CPC-2015 seja adequada, o dispositivo padece de inconstitucionalidade formal. Isso porque, durante o processo legislativo, aludida regra não foi submetida à votação pelo Plenário no Senado Federal, tendo sido – indevidamente – incorporada ao texto legislativo na fase de revisão formal, como já demonstrado em texto anterior nesta coluna.[9]

*   *   *

A (aparente) tranquilidade das respostas em termos de direito intertemporal acaba por aqui. No próximo texto em que voltaremos a esse assunto, buscaremos enfrentar os casos em que o legislador não se atreveu a indicar respostas objetivas. Quais serão as premissas mais adequadas? E as dificuldades a serem enfrentadas?

Acreditem, a espera pelo próximo texto, em que buscaremos responder às perguntas que colocamos no início, não será tempo perdido. Até logo!


[1] V. Lucas Buril de Macêdo, Ravi Paixoto, Alexandre Freire. Procedimentos especiais, Tutela Provisória e Direito Transitório (Coleção novo CPC – Doutrina selecionada). Salvador: Juspodivm, 2015.

[2] Como apontado por Marcelo Pacheco Machado, NCPC: Ideologia e museu de grandes novidades, Jota, https://www.jota.info/cazuza-novo-cpc-contradicoes-ideologias-museus-e-musica-classica, publicado em 12.1.2015.

[3] Ressalve-se que tal sistemática, relativa ao juízo de admissibilidade do Recurso Especial, ainda pode ser alterada antes mesmo de o CPC-2015 entrar em vigor, existindo projeto de lei no Congresso que busca restabelecer o atual regime de juízo de admissibilidade desdobrado (no tribunal de origem e no tribunal superior). Sobre o assunto, v. Luiz Dellore, Novo CPC: já a reforma da reforma? Jota, https://www.jota.info/novo-cpc-ja-a-reforma-da-reforma, publicado em 27.7.2015.

[4] E não sabemos nem mesmo em que data o novo CPC entrará em vigor, havendo três correntes a esse respeito: 16, 17 ou 18 de março de 2016. Trata-se de questão preliminar, com evidentes repercussões sobre o direito intertemporal. Sobre essa discussão, de forma mais ampla, v. Fabiano Carvalho. Divergência doutrinária sobre a entrada em vigor do Novo CPC e propostas de solução. Justificando, http://justificando.com/2015/06/19/divergencia-doutrinaria-sobre-a-entrada-em-vigor-do-novo-cpc-e-propostas-de-solucao/, publicado em 19.6.2015; Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha e Ravi Peixoto. Sobre o início da vigência do CPC/2015, Portal processual, http://portalprocessual.com/sobre-o-inicio-da-vigencia-do-cpc2015/, publicado em 9.7.2015.

[5] V. Marcelo Pacheco Machado, Novo CPC: que coisa julgada é esta? Jota, https://www.jota.info/novo-cpc-que-coisa-julgada-e-essa, publicado em 16.2.2015.

[6] Entre outros: “De acordo com precedentes do STJ, a prescrição intercorrente só poderá ser reconhecida no processo executivo se, após a intimação pessoal da parte exequente para dar andamento ao feito, a mesma permanece inerte” (AgRg no AREsp 57.131, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, julg. 23.10.2012).

[7] V., para um exame mais amplo, Luiz Dellore. O fim da relativização da coisa julgada no Novo CPC. Jota, https://www.jota.info/o-fim-da-relativizacao-da-coisa-julgada-no-novo-cpc, publicado em 31.8.2015.

[8] Tal previsão é, por isso mesmo, inconstitucional. Não se pode admitir, por exemplo, que decisão transitada em julgado venha a ser questionada dez anos depois porque sobreveio decisão do STF nesse sentido. Ainda que o controle exercido pela Suprema Corte represente a última palavra em matéria constitucional, não se pode sacrificar a garantia constitucional da coisa julgada em termos tão indiscriminados.

[9] V. Andre Vasconcelos Roque; Fernando da Fonseca Gajardoni; Luiz Dellore; Zulmar Duarte de Oliveira Jr., Novo CPC: A “revisão” final, https://www.jota.info/novo-cpc-a-revisao-final, publicado em 13.3.2015.


VEJA AQUI OUTROS TEXTOS DA SÉRIE CPC 2015

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