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Filosofia do Direito

ARTIGOS

FILOSOFIA DO DIREITO

O Direito e sua Filosofia: Positivismo, Ordem, Historicismo Dialético e Ocupação Social

ALI EXISTE CAMINHO

ARISTÓTELES

AUSTIN

DIREITO

DIREITO POSITIVO

GURVITCH

HERMENÊUTICA

HISTORICISMO DIALÉTICO

KELSEN

LÉVY-BRUHL

José Manuel de Sacadura Rocha

José Manuel de Sacadura Rocha

10/11/2015

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Resumo

Este artigo dedica-se à Filosofia do Direito a partir das características sociológicas do Positivismo Jurídico e do Materialismo Histórico Dialético. Atualiza o Direito quanto às inexoráveis intervenções dos grupos sociais a partir das relações sociais de produção e sociais gerais. Estuda o Ordenamento Jurídico e os sistemas de justiça a partir da antinomia entre “ordem” e “ocupação” social, propondo, nos movimentos de ocupação e coletivos sociais a reintegração do Direito com sua base social e a aproximação com as demandas de justiça, igualdade e liberdade ainda a serem conquistadas pelas sociedades atuais. Que o Direito não seja mais um instrumento de controle estatal e uma maquinaria de domesticação dos indivíduos.

Palavras-chave

Positivismo Jurídico, Historicismo Dialético, Controle Social, Ocupação Social

Sumário

Introdução. 1. Direito e Sociologia – Positivismo. 2. O Direito Positivo em Kelsen. 3. O Direito e o Historicismo Dialético. 4. A contribuição Sociológica de Poud, Lévy-Bruhl e Gurvitch. Conclusões. Referências

Introdução

“Onde há vontade, ali existe caminho”(Schopenhauer)

A Filosofia do Direito, por mais vasta e complexa que seja, continua sendo um ramo específico da Filosofia, destarte a tentativa de lhe dar objetividade própria (Montesquieu, Austin, Kelsen) e se constituir como disciplina autônoma. O Direito, por mais que tenha sido objeto de estudo desde a Antiguidade Clássica (Aristóteles), é ciência moderna e empresta sua efetiva dimensão e importância à modernidade. Como as demais ciências sociais, só a partir da constituição dos Estados-nacionais e da realização do regime da soberania popular, ou seja, quando o povo é entendido como origem do poder e é objeto de ação do governo, que o Direito ultrapassa a esfera exclusiva da Filosofia. Mas, a rigor, o Direito só pode ser eficientemente compreendido dentro de sua relação intrinsecamente humana, daí que é a partir da virada do século XVIII para XIX, quando o homem-cidadão passa a ser estudado como detentor de direitos, que o Direito se vê obrigado, do ponto de vista de uma filosofia, a ser enriquecido com outras áreas do conhecimento humano, tais como Antropologia, Sociologia, Economia, Política, Linguística e Hermenêutica, entre outras. Esta é a ideia que perpassa este estudo, uma abordagem multidisciplinar. É na interdisciplinaridade de conhecimentos que repousa uma compreensão das formulações filosóficas mais importantes para o Direito.

No entanto, parece-nos que, mais importante do que efetuar uma crítica ao pensamento já construído na área, e com raras exceções (Rui Portanova, Pedro Scuro Neto, Antônio Carlos Wolkmer) acaba incorporando o Positivismo de Auguste Comte (1798-1857) como essência de sua construção filosófica, é introduzir outras possibilidades de enxergar o Direito como ciência e prática, uma forma que revele a práxis como fundamento, e contribua, a partir dela, para uma ciência efetivamente democrática e justa.

Neste estudo procurar-se-á mostrar implicações filosóficas da Sociologia na compreensão do Direito e sua dinâmica, mostrando-se conexões pertinentes entre vários conhecimentos das Ciências Sociais e suas consequências para as visões determinadas mais estudadas, especificamente demonstrar como o Historicismo Dialético é um contraponto teórico viável ao Positivismo no Direito; infelizmente é com base neste último que os profissionais do ramo têm sistematicamente se formado e, inevitavelmente, levado à prática judiciária ortodoxa desatualizada, socialmente ineficaz e bastante onerosa, desacreditando e afastando a justiça da sociedade e daqueles que mais acalentam esperanças nela. Muito da incompreensão atual entre a dinâmica do Direito e a dinâmica dos movimentos sociais populares, remete sintomaticamente à falta de conhecimento teórico-cientifico de parte a parte.

Por sua complexidade e por sua dimensão, o assunto não pode se esgotar neste trabalho, que pretende somente, e de forma inicial, introdutória e filosófica, ser apenas uma contribuição para o debate dentro deste possível antagonismo, que se deve tanto à fragilidade do arcabouço teórico como à ortodoxia ideológica da jusfilosofia brasileira. Pretende-se afirmar que o Direito só pode efetivamente resgatar a sua nobre função, contribuir para o ordenamento do convívio social de forma equânime e democrática, se respeitar a pluralidade de valores de um País continental e plástico como o Brasil, e se perceber que seu valor último, a justiça, só será se levar em consideração a existência real dos agentes sociais em movimento que lhe dão objeto e substância prático-filosófica.

  1. Direito e Sociologia – O Positivismo

Sem dúvida, a maior contribuição da Sociologia para o Direito foi o Positivismo. Inaugurado por Auguste Comte no início do século XIX, em meio à necessidade de organizar teoricamente a sociedade europeia desconstruída nos valores e na prática pelas duas grandes revoluções do século XVIII – Revolução Industrial e Revolução Francesa. A filosofia positiva aparece como uma tábua de salvação, no plano teórico e prático, à classe burguesa que pretende consolidar o sistema capitalista de produção. Nas palavras de seu fundador, Auguste Comte, o Positivismo era a forma superior e final de uma concepção histórica do devir humano, cuja evolução deixara para trás a Teologia e a Metafísica (Discurso Sobre o Espírito Positivo). Para a classe burguesa, no entanto, foi o instrumento filosófico necessário a uma prática que ordenasse coerentemente um sistema de produção cujo fundamento é a sociedade de mercado, a hipérbole do trabalho humano, a propriedade e a acumulação privadas.

Por que a burguesia como classe viu no Positivismo um instrumento eficiente na consolidação da nova ordem econômica, política e social? Vejamos. O Positivismo filosófico pode ser assim resumido:

  1. Ordem e Progresso – é necessário instituir um ordenamento à sociedade de tal forma que a ordem, a estabilidade, seja a condição maior para o desenvolvimento e progresso material. Não é o progresso material, o desenvolvimento econômico e social (distribuição dos produtos desse desenvolvimento e riqueza), que importa em primeira instância, mas a ordem, que em primeiro lugar deve ser conquistada de toda a forma como condição sine qua non para esse progresso e desenvolvimento, que Comte via de forma extraordinária na implantação da grande manufatura;
  2. Leis Universais – O Universo e tudo que rodeia o homem são compostos de leis imutáveis e propriedades fixas; cabe aos homens entenderem essas leis e propriedades constantes, mas não cabe a eles questionar suas causas nem tão pouco derivar novas circunstâncias a partir desse entendimento;
  3. Objetividade – os fenômenos sociais, mais tarde denominados Fatos Sociais por Émile Durkheim (1858-1917), em As Regras do Método Sociológico, no final do século XIX, discípulo de Comte, devem ser tratados como “coisas”; essa “coisificação” da sociedade, de suas relações sociais, procura conferir ao tecido social uma objetividade física e material, da mesma forma que as ciências naturais, físicas e biológicas tratam cientificamente de seus objetos de estudo, por exemplo, o comportamento dos átomos ou um inseto num laboratório de biologia. Não foi por acaso que Comte se referiu inicialmente ao Positivismo como “Física da Sociedade”; 4. Neutralidade – como princípio científico o pesquisador, o cientista social, o estudioso deve se dirigir à sociedade de forma isenta e analisar seus fenômenos com total e absoluta neutralidade, em razão, claro está, de “não comprometer” com suas prenoções e valores os resultados de suas análises, deduções e induções.

Eis, de forma sucinta, os fundamentos da filosofia positiva. Em seu contexto geral, ainda que pese a seu favor a intenção dos autores em fundar uma ciência da sociedade com objeto próprio e consolidá-la nos meios científicos, a “coisificação” do tecido social, a objetividade conferida por leis imutáveis e propriedades fixas, a neutralidade do pesquisador-cientista, aliadas à noção primeira da ordem social, só pode produzir uma filosofia passiva que, quando aplicada aos vários ramos das ciências sociais acabam por redundar em conhecimentos estéreis e apáticos. E o Direito não fica à margem desta determinação nefasta.

Invariavelmente, o maior perigo na produção científica, é deixar-se levar por conceitos e afirmações intuitivas, à primeira vista irrefutáveis. O Positivismo está cheio delas. Quem pode duvidar da neutralidade do pesquisador-cientista, de sua objetividade, da necessidade de organizar e colocar ordem na sociedade? No entanto, que cidadão gostaria de ter um “defensor neutro”? O comportamento social não é um objeto de estudo passível de ser reduzido a algo com características imutáveis, um objeto formado por propriedades constantes; a sociedade no seu todo é um sistema vivo, uma rede multideterminada e, ao mesmo tempo, multideterminante pelo dinamismo inexorável de seus agentes.

Ora, se aplicamos esta imobilidade, este determinismo quase religioso (afinal de onde vêm essas leis imutáveis e esse Universo com propriedades fixas?) ao Direito, vamos acabar por aceitar um conjunto de normas tão imutáveis e “divinamente” superiores que, evidente está, não poderão se basear no dinamismo social real e muito menos acompanhar a mutabilidade intrínseca dos comportamentos sociais. Portanto, é uma filosofia falseante e afastada do fundamento que lhe é superior: o corpo social. Dai, a norma jurídica, a lei, exercida nestas condições, quando totalmente divorciada do dinamismo multifacetado do corpo social, ao se impor sobre a realidade que procura ordenar só o faz, de fato, através do autoritarismo institucional que lhe dá suporte. Ainda assim, mesmo de um ponto de vista absolutamente institucional, dos organismos que dão sustentação ao Direito Positivo, essa sustentação só pode ser relativamente bem sucedida e duradoura se houver uma coerência interna; neste caso, a coerência está na aceitação social mais geral de que efetivamente a “Ordem” precede determinada configuração social seja qual for o contexto e momento de sua organização. De fato, em última instância, é essa reciprocidade, como diria Max Weber (1864-1920), que sustenta o Direito Positivo no Brasil: a crença na “Ordem” como fenômeno social superior e divinizado (afinal está em nossa bandeira desde a instauração da República!), incorporado como “consciência coletiva” na sociedade brasileira pelo Estado e por seu par o Direito Positivo, que, num movimento recíproco, a própria sociedade acaba reforçando, instaurando o arbítrio da lei que pouco representa a realidade da vida social, se apresenta mais como uma representação, idealização de sua existência material, na verdade, como a ideologia dos grupos de poder.

Neste ínterim, é preciso lembrar que manifestantes – neste caso, o discurso oficial traduz todos por “vândalos” –, estão sendo processados com a aplicação da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), que traz uma gramática já conhecida de outrora, ao tipificar “organizações políticas ou subversivas” em seu artigo 20º; ou ainda a Lei de Organização Criminosa de 2013 (Lei 12.850/2013), penalizadora, criminalizadora, arbitrária, que modificou o Art. 288 do CP – “Associação Criminosa” para pior, ambas, afrontando muitos dos direitos e garantias constitucionais. Ocorre que esse processo de endurecimento penal e repressivo vai se generalizando e passa a selecionar quando quiser e pior, quem quiser, diga-se, quando necessário a interesses outros e arbitrários, se um cidadão é um “manifestante pacífico” ou um “vândalo”.

Em tal situação, o paradigma da objetividade e neutralidade no Direito pode ser mais nocivo à sociedade e à preposição de fazer justiça do que de forma superficial se pode supor. A objetividade que coloca em situação de inferioridade o homem em relação ao seu ambiente social e à história, na medida em que apenas deve interpretar o universo imutável e de movimento perene, sem possibilidade de questionamento das causas e consequências desse movimento, e de seus fenômenos constituintes, e a neutralidade em relação a esses acontecimentos, mais do que contribuir para a ordem jurídica incorruptível e a segurança, acaba, de fato, construindo um Direito passivo, estéril e dolente, quando não, injusto e desproporcionalmente punitivo, em relação à situação real de um contingente majoritário da população brasileira: os explorados, os excluídos, os marginalizados, os pobres e todos aqueles que anseiam com propriedade, constitucional por sinal, por justiça, igualdade, cidadania e condições mais satisfatórias de realização da condição humana.

Ainda que a produção da ciência só fosse inquestionavelmente possível pela objetividade e neutralidade, o que não é sequer um fato aceitável mesmo para a própria ciência (Rubens Alves), ainda assim, tem que se perguntar que ciência é essa que se diz legítima e verdadeira exatamente quando abandona a verdade que lhe deve sustentar o entendimento, qual seja, as condições históricas e concretas de vida dos indivíduos homens? Que Direito é este que procura a justiça por um ordenamento divorciado e viciado na sua superioridade legalista pretensiosa em relação ao detentor, em última instância, de sua própria legitimidade e força, o cidadão?

  1. O Direito Positivo em Kelsen

A Filosofia do Direito Positivo tem na modernidade o expoente máximo em Hans Kelsen (1881-1973). De forma bastante resumida, introduzimos neste estudo alguns de seus conceitos fundamentais, principalmente a partir da obra Teoria Pura do Direito, à guisa de exemplo do que trata hodiernamente o Direito Positivo no plano filosófico, transformando-se, mais propriamente, em Positivismo Jurídico.

Em primeiro lugar, deve-se lembrar do propósito inicial de Kelsen em procurar aquilo que ele mesmo denominou de o «princípio da pureza», segundo o qual o enfoque de uma ciência propriamente jurídica deveria partir da «Norma». Desta forma, para o jurista, o Direito deveria ser visto “cientificamente” como norma, não como fato social, valores ou costumes (a não ser com relação à “Norma Fundamental”, esta, contudo, não uma Lei!). Ainda que se possa defender a intenção do cientista na procura de um modelo que conferisse ao Direito uma autonomia em relação a outros aspectos do conhecimento, o fato é que na visão de Kelsen o Direito enquanto ciência se explicaria pela norma em si mesma, e constituiria em princípio um sistema hermético, fechado.

Assim, a norma parece não ter sintonia com o corpo social, nem com seus costumes e nem se constitui naturalissimamente, mas, constitui uma legalidade cuja validade está simplesmente na relação, obrigatória, entre as várias normas elaboradas em cascata. Esta, aliás, é uma premissa que distingue o Direito positivo: não ser natural, mas produto do conjunto formal de normas instituídas de forma lógica pelo arbítrio humano; uma abstração formal necessária e construída em algum momento para regular a sociedade desorganizada. Para os contratualistas, Hobbes, Locke e Rousseau, é essa necessidade de se organizar que cria o pacto social, um contrato que resgata o homem de seu «estado de natureza» e o coloca numa sociedade política, quer dizer, jurídica, onde então as normas formais, as Leis, que podem regular e controlar os indivíduos em sociedade, salvaguardando, em princípio, e essa é a contrapartida de uma certa perda de soberania, ora os direitos individuais, ora o bem estar da comunidade. O problema desta visão é que, não sendo a norma um produto imanente do social, ela pode, claro está, se auto intitular na fazedora suprema da «Ordem». Este é o motivo pelo qual o Positivismo Jurídico precisou lançar mão da Hermenêutica quando estabeleceu critérios hierárquicos para a efetivação normativa quando o fato social sub judice não encontra respaldo de forma satisfatória na Lei, quando das chamadas “lacunas normativas”, a saber: a) harmonizar os textos; b) normas de hierarquia distinta prevalece a superior; c) a norma principal prevalece sobre a acessória; d) norma cogente prevalece sobre a dispositiva; d) norma posterior prevalece sobre a anterior.

Como a norma tem que ter validade – embora em sua concepção positivista, não necessariamente legitimidade –, Hans Kelsen vai buscar essa condição em norma precedente e assim sucessivamente até à “Norma Fundamental”, que, como observado, possivelmente encontra sua natureza nos costumes, portanto, fora da própria cascata de normas, sendo mais um pressuposto conceitual “apolítico” a aferir coerência interna ao sistema de validade normativa.

Menciona o referido filósofo jurista em seu clássico Teoria Pura do Direito (1994, p. 221 – grifos nossos):

A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material que, por seu conteúdo ser havido como imediatamente evidente, seja pressuposta como a norma mais elevada da qual possam ser deduzidas – como o particular do geral – normas de conduta humana através de uma operação lógica. As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação. São normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva. Se por Constituição de uma comunidade se entende a norma ou as normas que determinam como, isto é, por que órgãos e através de que processos – através de uma criação consciente do Direito, especialmente o processo legislativo, ou através do costume – devem ser produzidas as normas gerais da ordem jurídica que constitui a comunidade, a norma fundamental é aquela norma que é pressuposta quando o costume, através do qual a Constituição surgiu, ou quando o ato constituinte (produtor da Constituição) posto conscientemente por determinados indivíduos são objetivamente interpretados como fatos produtores de normas […]

Mais à frente Kelsen parece nos esclarecer melhor o que seja a “Norma Fundamental” nos seguintes termos (idem, p. 242 – grifos nossos):

Dado que – como se mostrou – a norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas a condição lógico–transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer função ético-política mas tão-só uma função teorética gnoseológica.

Por aqui também se percebe nitidamente que a Constituição não é a “Norma Fundamental” para Kelsen, como tantas vezes se tem confundido. Ainda, como a norma é prescritiva, isto é, ela confere ao comportamento humano um sentido que deve ser cumprido, a norma é em si mesma jurídica e válida por ter prescrições que podem ser encontradas na “Norma Fundamental”, desde que posteriormente a esta, todas as outras sejam criadas e colocadas por um “poder especial”, mas de acordo com uma lógica e silogismo que obriga a uma relação irremediável entre a norma posterior e a anterior. Por isso, em última análise, a legitimidade e validade da norma nada têm a ver com conceito de justiça, pois sua validade deriva exclusivamente da correspondência que encontra em outra norma, ainda que o legislador esteja “obrigado” a efetuar tal correspondência e “justificar” tal silogismo. Como não interessa investigar as “causas” da norma, nem tão pouco a origem da “Norma Fundamental”, igualmente as suas consequências, o Direito como ciência em si mesmo simplesmente “é” e a juridicidade “é” válida independente da possibilidade da brutalidade, desumanidade, opressão, tirania originários de ato jurídico normativo mesmo que decorrente de outra norma, independente de uma direta e sequencial lógica correspondente, pois não está dito que a norma “subsequente” deve estar relacionada à norma imediatamente “antecedente”, mas apenas a uma delas.

Por exemplo, a Constituição de 1988 é decorrente da Emenda Constitucional Nº. 01, promulgada pela junta militar em 1969, que por sua vez autorizou juridicamente a Emenda Constitucional no.26 de 1985, feita à Constituição de 1967, pela qual se convocou a Assembleia Nacional Constituinte daquele ano. Mas, a Emenda Constitucional No 01 de 1969, tem origem no Ato Institucional No 05, promulgado arbitrariamente e pela força pelos militares no golpe de 1964, que dava poderes ao Executivo para legislar quando do “fechamento” do Congresso Nacional, decretado pelos mesmos. Daí para trás não existe nenhuma norma jurídica capaz de justificar a concentração de poderes no Presidente da República para baixar o Ato Institucional No 05 (Coelho: 1999, p.30-32). O Positivismo Jurídico releva, a rigor, este fato, de que a Constituição de 1969 seja produto de um golpe político, de um Ato Institucional de um estado de exceção forjado por uma elite e consumado por forças militares, e desconhece a ilegalidade e a agressão ao Estado legítimo de direito existente em 1964 e exercido pelo voto popular do presidente João Goulart.

Por fim, em Kelsen a neutralidade científica aplicada à ciência jurídica, separa o jurídico do moral e do político como explica Técio Sampaio Ferraz Jr. (In: Coelho: idem, prólogo):

À ciência do direito não caberia fazer julgamentos morais nem avaliações políticas sobre o direito vigente. […] com sua norma fundamental neutra (Kelsen) era obrigado a reconhecer, como de fato o fez ao chegar para o exílio nos EUA, que o direito nazista, por injusto e imoral que o considerasse, ainda assim era direito válido e legítimo.

Ainda que não se possa culpar Hans Kelsen pelos “oportunismos” políticos dos governos (não se deve esquecer que Kelsen teve que deixar a Alemanha nazista!), na ânsia de dar ao Direito o status de ciência, seu positivismo jurídico e centralismo normativo desviou a Filosofia do Direito para uma perspectiva técnica que acaba se rebelando contra a sociedade e contra as populações que utilizam a justiça. Exemplo disso é o furor arrecadatório do Estado brasileiro, destarte toda a proteção e a construção principiológica do Art. 150º da CF/88 (princípios da legalidade, isonomia, capacidade contributiva, vedação ao confisco etc), afrontados diretamente e cuja legalidade é sempre justificada tecnicamente por nossos governantes.

  1. O Direito e o Historicismo Dialético

Outra possibilidade de análise da Filosofia do Direito é aquela que parte dos grupos humanos, resgata e afirma a vida concreta dos indivíduos na produção de sua existência. Remonta aos primórdios da filosofia, na Grécia arcaica (séc. VII e VI a. C.), a “vida política” do Direito, quando, por exemplo, Heráclito de Éfeso diz que “É preciso que o povo lute pela lei, tal como pelas muralhas” (In Sacadura Rocha: 2013, p.22). Heráclito é importante por seu pioneirismo em afirmar o “movimento” e a “complementaridade” de todas as coisas na natureza e, por extensão, na vida social, portanto, Heráclito foi o pai do materialismo-dialético e igualmente da teoria dos sistemas (muito antes de Ludwig Von Bertalanffy (1901-1972)). Ele está na origem do pensamento atomista-materialista de Demócrito de Abdera e do materialismo-dialético de Epicuro de Samos. Mas foi só no século XIX que o materialismo- dialético se uniu ao historicismo social de forma metodológica consistente, através do trabalho de Karl Marx e Friedrich Engels, os pais do Materialismo Histórico Dialético moderno.

O que é esta filosofia? Uma existência, em primeiro lugar, material, quer dizer, a forma real como os homens produzem os bens necessários à sua subsistência, posto que qualquer filosofia só possa habitar seres pensantes vivos. Assim, a condição primeira da possibilidade de filosofar e de criar ciência, notadamente a ciência jurídica, é permanecer vivo o ser humano. Para tal, ele precisa trabalhar, criar as condições de sobrevivência, que, diante da natureza inóspita, lhe suscita uma quantidade considerável de necessidades básicas: alimentar-se, vestir-se, proteger–se, procriar-se em condições propícias, entre outras.

O trabalho humano, a rigor, não é uma opção que os indivíduos possam fazer, mas uma necessidade de sobrevivência. E esta não opção exige dele, de um lado, o desenvolvimento de seu ser como tal (transformação do corpo e da inteligência), de outro, o desenvolvimento de tecnologias capazes de suprirem por seu trabalho aquelas necessidades. Como essas necessidades só fazem crescer no processo mesmo de seu desenvolvimento (quero e preciso de novos bens), de sua sobrevivência como espécie (o grupo humano cresce pela procriação) e das dificuldades encontradas diante da natureza (para usufruir dela e das intempéries que lhe são próprias), então só existe uma alternativa para esse homem: criar e recriar permanentemente, de forma quantitativa, mas, sobretudo, de forma qualitativa, as condições de sua sobrevivência material, ao mesmo tempo intelectuais e fisiológicas. Novas necessidades geram novos problemas, que geram novas soluções, que geram novos problemas e assim infinitamente. Não por acaso que a Carta Maior de nosso país afirma em seu Art. 170º: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF/88).

De tal forma este ciclo virtuoso se repete que, pelo trabalho, o ser humano desenvolve-se como tal, física e intelectualmente, e desenvolve junto todas as condições materiais, econômicas e políticas, de sua existência real, tal como ela é numa determinada relação histórica, primeiro com o ambiente natural que o circunda, segundo com os seus semelhantes. Na relação com a natureza se apropria dela e a transforma em produtos de sua sobrevivência, desenvolve os instrumentos e seus processos de trabalho; na relação com seus semelhantes desenvolve as relações sociais de produção, que juntamente com aqueles instrumentos e processos de trabalho, constituem as forças produtivas humanizantes. Então, esta humanização se dá, de forma concomitante, por duas razões: pelo desenvolvimento intelectual e físico necessário para um trabalho materialmente exequível, e pelo desenvolvimento das relações sociais estabelecidas a partir já desta mesma produção e suas formas específicas. Como todo este ciclo virtuoso de desenvolvimento se verifica na construção da existência material, pelo trabalho e pelas forças produtivas e relações sociais daí decorrentes, pode-se afirmar que é na práxis (Aristóteles) que o ser humano se constitui como tal. A práxis é, portanto, um conceito histórico e dialético (Karel Kosik).

Primeiro, é histórico porque concebe uma multiplicidade de condições diante das quais cada geração de seres humanos se depara, isto é, condições que não são as mesmas a cada momento e em cada lugar. Em segundo lugar, porque o homem agora não é apenas agente passivo, não apenas interpreta as leis imutáveis do Universo e de tudo nele, mas participa ativamente do processo de construção de sua vida material, que como se disse, é impulsionado por necessidades crescentes que objetivamente precisam ser supridas. Assim, pode-se dizer que a história da humanidade é, em última instância, a história do engenho humano na superação das dificuldades e problemas que sua própria existência recoloca inexoravelmente. De certa forma, a história é a história da produção qualitativa, do desenvolvimento qualitativo dos meios e formas de produção, de onde todas as relações sociais são oriundas. A práxis é a própria história humana.

Ao mesmo tempo, a práxis é dialética na medida em que parte de contradições constantes e inerentes ao devir humano. Contradição entre a natureza e a sobrevivência humana, contradição entre necessidade e superação, entre problema e resolução, formas e meios de produção de um lado e relações sociais de produção de outro, vida material e intelectual, individual e coletivo, economia e filosofia, solidariedade e classes sociais antagônicas, emancipação e regulação, norma e individualidade, democracia e tirania, Estado e liberdade, Direito Positivo e Direito Histórico Dialético. No embate entre os opostos, permanentemente se reforma situações anteriores, ideias que pareciam petrificadas, dogmas inquestionáveis, formas de trabalho incompatíveis com relações sociais, e vice-versa, formas jurídicas incompatíveis com relações sociais reais. O movimento está por toda a parte, um movimento humano, que da contradição se complementa em práticas e pensamentos novos, para logo ficarem velhos, e darem lugar a novos comportamentos e reflexões sobre a existência. O trabalho gera a filosofia no humano e a Filosofia gera a intervenção dos agentes sociais.

O Estado e o Direito são superestrutura social, a dimensão decorrente e no topo da estratificação social criada por Marx. A estrutura é a produção material, as forças produtivas e suas relações sociais de produção, logo, localizada na “base” da sociedade. Entre a “base” – a produção material e as relações sociais correspondentes, a estrutura –, e a colossal institucionalização do Estado e do Direito que o legaliza, o aparato jurídico social – a superestrutura –, interpõe-se a produção filosófica dos homens, que interpretando as suas condições e relações materiais de produção, desenvolvem intelectualmente a compreensão e explicação dessa produção e dessas relações, como a vida concreta. É essa vida concreta que os homens pretendem organizar e controlar através do aparato jurídico-político, o Estado de Direito.

Deste ponto de vista, o Direito é consequência da existência material dos homens; não uma visão idealizada dessa existência. Mesmo quando pretende ordenar o comportamento e convívios sociais, o Direito só poderá fazê-lo legitimamente, de verdade, a partir dessas condições concretas da produção da existência dos seres humanos, de suas formas específicas e históricas de produção e das relações sociais que delas derivam. Ao mesmo tempo, o faz através de um processo de compreensão e racionalidade derivado dessa mesma produção e suas relações, o que implica admitir logicamente que a filosofia que possa estar por trás do Direito, passou antes por uma concepção “matizada” advinda dessa estrutura socialmente produtiva.

Eis a passagem clássica de Marx que sintetiza perfeitamente a relação entre estrutura e superestrutura (Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, 1983, p.233):

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência.

A rigor, pois, o Direito vai sempre refletir como ultima ratio, como produto de uma racionalidade filosófica determinada, os meios e formas de existência material dos agentes sociais e das relações que estabelecem a cada momento de forma complementar na produção. Mais, a própria Filosofia, só pode refletir, de forma lícita, essas mesmas condições e relações produtivas. Daí deriva, claro está, a inversão que o Direito Histórico faz em relação à Filosofia Positiva: não é a norma que determina a conduta social, mas sim a forma de produção social que determina a norma. Não é também uma visão filosoficamente estéril do Direito que o faz mais coerente e mais verossímil, que, evidente, só pode criar conceitos e axiomas cuja última explicação é o imponderável, hipóteses não refutáveis pela realidade da vida dos homens, porque nada têm a ver com ela.

O que pode dar à Ciência Jurídica um caráter verdadeiro e legítimo é uma filosofia que, por princípio, já nasce presente, concreta, “refutável” em tese pelo fato de fazer a opção pela realidade, pela vida dos homens como ela é, dinâmica. A Filosofia do Direito, neste sentido, só consegue ajudar o Direito a fazer ciência, na medida em que busca a razão da regulação e da norma, da lei e de seu caráter prescritivo, numa racionalidade presa incontinente da vida real e de sua complexidade nas estratégias de sobrevivência e na agenda que estas estratégias engendram na práxis humana, matéria e espírito num todo, construído dialeticamente na sobrevivência humana. Se se quer encontrar a “Norma Fundamental” tem-se que a procurar na existência dos homens como eles a produzem e a racionalizam. Ali, onde homens concretos se fazem, ali fazem as normas, as regras, os costumes; ali “amalgamam” a lei, o espaço jurídico-político que lhes ordenará e organizará o convívio e comportamento sociais. Ali, de acordo com o barro que usam, de acordo com o machado que fabricam, ali, de acordo com a divisão social do trabalho que criam.

A “Ordem”, desta feita, não é a coerência possível a uma normatividade não histórica. A “Ordem”, por assim dizer, se corporifica, torna-se inteligível como produto de uma normatividade que tem raízes, não na outra norma precedente, mas na vida humana, na produção humana, nas relações sociais da produção humana, na interpretação dessa realidade levada a cabo pelo filósofo. Não é a norma que faz a “Ordem”, mas uma “determinada ordem” que faz a norma se parecer com ela e sustentá-la – ainda que na consciência dos homens condicionados por ela (Ordem) isto lhes (a)pareça invertido.

Em decorrência, se a organização e a “Ordem” existente na vida concreta dos homens é do tipo classista, desigual e discriminatória, a norma correspondente tem tudo para sair de acordo com essa «fôrma». Isto é, a normatividade jurídica precisa fazer um esforço significativo para que enxergue além das relações e mecanismos sociais de produção da vida mesma, e possa efetuar uma critica à realidade material que lhe dá substância e forma – ou como em Nietzsche, a “Filosofia deve fazer a crítica de si mesma”.

Simplificando, a norma jurídica será produto das relações e mecanismos de produção material da vida dos homens; se estas relações e estes mecanismos não são justos, não primam pela igualdade de condições de vida e concretização equidistante das potencialidades humanas, por exemplo, se são de exploração do trabalho humano mercantilizado, o Direito será, em princípio, o «suprassumo» dessa realidade. A possibilidade de reverter esse quadro de ordenamento e controle social que preserva essas condições de desigualdade depende, em parte, e só em parte, do esforço para que a doutrina, o jurista, o bom-senso e racionalidade de defensores e juízes, aprimorem práticas e sistemas capazes de questionar e modificar substancialmente essas relações estruturais desiguais e perversa assimetria social.

Como, em última instância, são estas relações e mecanismos que impõem a filosofia oficial e a regulação do Direito, reproduzido assim no poder de Estado e seu aparato policial, e nas instituições ideológicas sociais, aos agentes sociais se impõe lutar primeiro para que as condições materiais de reprodução material da existência humana se modifiquem. Isto é, a rigor, mais importante: modificar primeiro os mecanismos de produção e as relações humanas que deles derivam, o que leva inexoravelmente à intervenção e ocupação social como tem-se visto, aparentemente na contramão das políticas públicas dos governos e dos sistemas jurídicos positivistas.

  1. A Contribuição Sociológica de Pound, Lévy-Bruhl e Gurvitch

Ainda que a visão sociológica do Materialismo Histórico Dialético seja obra maior de Marx e Engels, outros autores propuseram uma visão de Direito menos positivista e que “tangência” ora o historicismo ora a dialética em ciência jurídica.

Entre eles vale lembrar Roscoe Pound (1870-1964), Henri Lévy-Bruhl (1857-1939) e Georges Gurvitch (1894-1966).

Para Pound a ciência jurídica é interpretada de forma teleológica, sistêmica. Um conceito importante diz respeito à distinção entre “justiça sem lei”, sem regras determinadas, baseada na vontade e liberdade do corpo social, cujo resultado são as “sanções espontâneas” da comunidade, dos próprios agentes sociais como forma de repúdio a determinada conduta, e a “justiça com lei”, como aplicação geral, “fundamentada no pressuposto de igualdade e infalibilidade possíveis, graças à autoridade técnica que os desenvolve, persistindo o direito, apesar de todas as vicissitudes, como razão e não como vontade arbitrária” (Castro: 1999, p.201).

Este segundo tipo de justiça seria o equivalente da “sanção legal”, que apesar de ser geral, só pode, na visão de Pound, ser relativamente infalível e equânime, pressupondo uma racionalidade pragmática como se revela na ideia de que o “bem moral tem sua essência definida pela capacidade de satisfazer a uma necessidade” (Castro: idem, p.201). Ao mesmo tempo, ele opõe o direito rígido, normas, ao direito flexível, composto por princípios, concepções e padrões, enfatizando a doutrina como fundamento maior, no sentido que o Direito é impregnado de valores ideais que podem e devem ser usados como instrumento de justiça, mas que não pode prescindir da realidade particular e cultural de cada sociedade.

Em Bruhl os “costumes” apresentam uma posição de destaque, criticando a visão de que lei, costumes e jurisprudência fossem fenômenos jurídicos diferentes. Para ele, esses aspectos não são mais do que variações da expressão da vontade do grupo social, e todo “o Direito emana do grupo social; as normas jurídicas exprimem a maneira como esse grupo entende as relações sociais” (Bruhl: 1964, p.42). Além de recolocar as relações sociais e a vontade do grupo social como fundamento do Direito, a sua tese central é que o ordenamento e controle sociais não encontram primazia no Direito, contrariamente a Pound, que via no Estado a preeminência da consolidação técnica das normas, sendo que os costumes executam de forma essencialmente semelhante esse mesmo ordenamento e controle. Para Bruhl, contudo, o Direito deve ser gerenciado de forma técnica, e o processo de promulgação das Leis deveria ficar a critério de um órgão especializado, evitando a interferência política, aproximando-se assim da ideia de Max Weber e muito de Hans Kelsen.

Por outro lado, o relativismo de Bruhl leva-o a descrever o crime como um fenômeno normal na medida que se encontra genericamente em toda sociedade sem ser acidental (uma leitura próxima à de Durkheim), e cuja caracterização só é lícita a partir do juízo efetivado pela sociedade. Quanto mais o crime atingir a consciência coletiva (Durkheim) e atentar contra a ordem estabelecida, maior a sanção. Por exemplo, nas sociedades indígenas o maior crime punido com a pior das sanções é o atentado contra tabus, e não o atentado à vida, como nas sociedades complexas.

Além disso, para ele a pena tinha um duplo sentido: a de punir o crime e restabelecer a ordem, e em um tempo, sancionar o criminoso e reintegrá-lo na comunidade. Desta forma, o Direito é eminentemente “restaurativo”, centrado no controle da população e sua diversidade, reparar o dano a partir do agente, imputar o castigo de forma a manter o vínculo com a comunidade à qual pertence, com ênfase no diálogo e negociação e chamar a atenção para a responsabilidade social mais abrangente em construir a partir do ato marginal a prevenção futura que normalmente passa pela recuperação e reintegração do agente.

Portanto, Bruhl tem um papel importante na definição de um Direito a partir do grupo social, relativizando a forma como cada grupo preconiza o que é crime ou não, revitalizando os costumes como categoria da mesma essência da norma jurídica, e ainda uma predisposição de resgatar um direito formal que esteja mais preocupado com o crime do que com o criminoso, no sentido de restaurar a organização do grupo social e prevenir futuros atos semelhantes através da educação e reintegração do agente, em última instância uma falha na solidariedade social. Neste sentido pode-se pensar na pertinência da Lei de Execução Penal – LEP (7210/84), que afirma no Art. 1o: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, e no Art. 3o: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Parágrafo único: Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”.

Já Gurvitch usa o conceito de dialética como instrumento de antidogmatismo, a partir de suas características fundamentais de antinomia e complementaridade, antítese e síntese. Quando aplicado ao Direito, sua visão de dialética leva a acreditar que “representa uma tentativa para realizar, numa dada ambiência social, a ideia de justiça (que é, preliminar e essencialmente, a reconciliação e a variável dos valores espirituais em conflito, assimilados a certa estrutura social), através de um normativismo multilateral imperativo-atributivo baseado em laço determinado entre deveres e direitos” (Gurvitch: 1946, p.86).

Ainda que o objetivo do Direito seja a realização de justiça, derivada da oposição e complementaridade entre direitos e deveres, ele é uma tentativa de organizá-los num determinado ambiente histórico composto por antagonismos valorativos. Por isso, pode-se experimentar em sua filosofia a nítida percepção de uma realidade social fundamental na base do Direito, buscando a execução de um valor maior, a justiça, que, no entanto, não está acima dos homens em seus ambientes sociais determinados, mas produz-se a partir de oposições que se complementam mutuamente, tais como: opinião individual e opinião pública, patrão e empregado, norma e costume, justiça retributiva e restaurativa, consciência individual e consciência coletiva, positivo e dialético, Direito e justiça.

Conclusões

O Direito Positivo não é só inverossímil – no sentido em que não se pode estabelecer a validade e legalidade de uma norma prescritiva apenas por decorrência de uma outra anterior, e pelo fato irrefutável que a “Norma Fundamental” não se encontra, senão por mecanismos teológicos e metafísicos, além da realidade social concreta –, mas também é ideologicamente autocrático, na medida em que vai além da formalidade da norma, seja qual for seu embrião metodológico, prevalecendo a “Ordem” como fundamento do ordenamento jurídico, assim posto, sem estreita e sensível relação com os indivíduos sociais, política e materialmente definidos. Não é, pois, de estranhar que toda a arbitrariedade, exclusão e discriminação sejam sempre defendidas pelo Estado de exceção (ditaduras, tiranias, fascismos, nazismos, ditaduras do proletariado, totalitarismos culturais, fundamentalismos religiosos), como válidas e juridicamente legais.

É sempre a “Ordem”, com base na lei, que justifica a força bruta, a irracionalidade e o nonsense do poder de Estado, seja lá quem dele seja detentor. No fundo, é a omissão desse Positivismo Jurídico, a neutralidade e objetividade como recurso ideológico do poder, das elites e da tecnocracia despreparada, que incentiva a ilegitimidade e arbitrariedade de fato. Mais do que a formalização da norma, a norma acima do direito natural e dos costumes, mais do que uma visão política de sociedade e de uma necessidade de organização formal, a ciência jurídica, quando positivista, é um instrumento de opressão, objetivação e controle dos agentes sociais. Há que se discutir a origem desse Direito, dessa norma, dessa objetividade, dessa neutralidade, dessa visão de homem passivo diante da história que “só” pretende “entender para manipular”, mesmo quando diante das piores atrocidades cometidas contra a maioria dos indivíduos, nas nações mundo a fora. Eis que, diz Kelsen na Teoria Pura do Direito (1994, p.17): “Num sentido muito amplo, toda a conduta humana que é fixada num ordenamento normativo como pressuposto ou como consequência se pode considerar como autorizada por esse mesmo ordenamento e, neste sentido, como positivamente regulada.” Contudo, “positivamente regulada”, “num sentido muito amplo” não quer, necessariamente, dizer “autoritária e hermeticamente regulada”, mas, infelizmente o Direito da “Ordem” acima de tudo e de todos desconhece essa diferença. Logo, longe de “prevenir”, “educar”, “harmonizar”, “ser justo”, o Direito positivista realiza de fato a desigualdade socioeconômica, a domesticação das vontades e energias humanas e presta-se à “seleção” higienizadora das populações nos Estados, integrando as políticas públicas a partir do século XIX.

O Estado, do ponto de vista histórico dialético, como superestrutura jurídica, desenvolve-se a partir das condições econômicas e sociais de produção, portanto, o colossal aparato jurídico, normativo e de poder que cada sociedade determina a cada momento em seu devir histórico, está sempre enraizado não no idealismo filosófico do cientista, do doutrinador ou do juiz, mas nos homens do povo, nos cidadãos, nas divisões sociais e seus relacionamentos, tais como se verificam concretamente na produção de sua existência.

Em cada sociedade predomina um modelo de produção com características definidas que lhe dão um status de modelo coerente e acabado pelo qual se pode compreender a forma reguladora dos comportamentos humanos em sua generalidade e totalidade. São estas definições – “convenções” – que, por outro lado, possibilitam que os homens se organizem e estabeleçam vínculos, antes de subsistência material, depois de reprodução da vida cultural, finalmente da vida política com determinada configuração de poder. Por exemplo, o sistema de mercado não é uma idealização filosófica do cientista, do poder ou mesmo de uma classe social. O mercado é uma relação social específica de produção oriunda da dinâmica que os homens, determinados por suas condições materiais de vida, criaram na luta pela sobrevivência.

Da mesma forma, o Direito, como instituição do ordenamento normativo, não é a pura idealização do filósofo, mas apenas o aparato jurídico, com peso de lei, é verdade, que nascido dessas condições de vida e relações sociais adjacentes, cristaliza no aparato de Estado tais condições. Assim, o Direito tem uma substância, uma concretude, que são os homens em processo produtivo, tal como se dá na realidade. Portanto, existe sim uma História do Direito: é a história da vida dos homens reais na produção de sua vida.

O Direito tem uma essência: as relações sociais, materiais, originárias da produção, mas que agora já se espalham por todo o corpo social em todas as suas instituições. O Direito é dialético: as condições de vida e as relações sociais que a compõem apontam para uma diversidade contraditória que, de alguma forma, precisa se “complementar”, produzindo a síntese mais acabada da existência humana. O Direito tem filosofia sim, a filosofia da práxis, da luta entre o meio e a sobrevivência, da luta da sobrevivência e Deus, da luta entre a aparência e a essência, da luta oriunda da desigualdade, dominação, da opressão e exploração entre os homens, e já hodiernamente, da luta entre indivíduo e Estado. Por isso os movimentos sociais de ocupação e intervenção na coisa pública – leis, políticas, sistemas, gestão –, que envolvem a vida social e individual, é perene e irrefutável.

Neste sentido, a Filosofia – que intermeia a infraestrutura produtiva e a superestrutura jurídica, partindo da porção concreta, da base material de produção e subsistência –, precisa abstrair a norma e a lei como reflexo dessa concretude. O Direito é concreto e abstrato a um tempo: a rigor, o Direito é concreto pela sua base material, e abstrato na medida em que procura e precisa refletir, captar o sentido e doutrinar nessas condições materiais. O conjunto de normas jurídicas, por mais que se considere perfeito em sua organização, e por mais eficiente que seja na sua instrumentalização e praticidade – e isto é, efetivamente, necessário para que alcance autonomia como ciência e, principalmente, possa obter “força” a lei e ser legitimado pelos cidadãos –, precisa refletir adequadamente a realidade dos homens a cada momento histórico e determinado de suas condições de existência. Porém, ao fazer esta abstração, a transformação da relação social em norma, levará em seu bojo todas as circunstâncias de poder e objetivações existentes nessas relações sociais. O poder não é criado pela norma; a norma já é reflexa do poder existente nas relações entre os homens enquanto forma de vida. O Direito nunca está acabado!

Quando a norma estipula deveres e obrigações, estes já se encontram materializados na prática da existência social humana. Se temos a impressão de que a norma prescritiva está nos obrigando a fazer algo que não queremos ou achamos injusto, esta impressão advém muito mais do fato de não termos conhecimento da “essência” das coisas, do que de seu poder “inócuo” em ditar regras. O fato de a norma ser “justa” apenas para alguns, o fato da norma não ter a capacidade de acabar com a desigualdade e a exploração do homem pelo homem, o fato do ordenamento jurídico não ter condições por si só de acabar com a violência, advém de que a Filosofia, a doutrina na dimensão propriamente jurídica, que está por detrás da sua feitura, apenas reflete a injustiça, desigualdade e exploração, amoralidades e estéticas perversas de submissão encontradas no seio da própria sociedade, ao nível de sua própria reprodução material existencial.

E assim, também percebemos que a Filosofia usada na confecção da norma, e na cuidadosa organização do Direito como instituição, apenas se incomodou em adequar positivamente o aparato jurídico-político para que essas mesmas condições nonsense materiais de reprodução da vida sejam respeitadas a partir dos interesses já existentes. Daí que necessariamente há que perscrutar os caminhos e os elos que as relações sociais de produção engendram nos mecanismos estatais de controle ideológico e repressivo, e que “volta à base” as instituições jurídicas acabam por realizar e fortalecer nas maquinarias dos sistemas hodiernos de controle.

A práxis cotidiana dos homens pode e deverá, mais dia menos dia, de muitas formas, transformar as relações sociais de produção, depois as sociais gerais – e as está transformando devido aos avanços das próprias forças produtivas no âmbito das tecnologias cibernéticas, informacionais e telemáticas, às conquistas dos espaços e opções das minorias, ao reconhecimento dos direitos inalienáveis dos homens e das garantias políticas constitucionais dos cidadãos –, em “ocupações” e “coletivos” que inexoravelmente subverterão essa infraestrutura produtiva desumana e a superestrutura como mecanismo de controle, repressão e confinamento punitivos que degradam os homens e desautorizam os sistemas da justiça.

A partir dessas transformações, assim engendradas de “baixo para cima”, novas e promissoras relações sociais definirão os destinos da humanidade, em cada caso particular de forma particular, mas fortalecendo as consciências e autorizando a Filosofia a se voltar e rebelar contra si. A ciência jurídica, o ordenamento jurídico, o Direito, terão que mudar, porque se o não fizerem encontrarão revoluções sociais desestabilizadoras que, de uma forma ou de outra, instaurarão um novo modelo de Estado e um novo conjunto de leis que lhe darão sustentação.

Novas doutrinas, e novas práticas, novas jurisprudências e uma nova hermenêutica da vida e da vida jurídica nos batem à porta a todo o instante. A intervenção humana é fundamental, a ocupação e a coletivização serão doravante mais irrefutáveis e mais admitidas, e a partir de indicadores reais tendem a tomar consciência de sua importância agilizando e facilitando o caminho de resgate consistente rumo aos direitos universais do homem, à sua liberdade e a uma igualdade que desenvolva em cada sujeito o “sujeito-de-si-mesmo”. Afinal, ainda parece que a luta mais pertinente que a Revolução Francesa nos deixou, e que teima em não ser terminada, principalmente entre aqueles que estão na periferia dos sistemas de mercado globalizados como os mais frágeis, refere-se a este paradigma: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (Marx: Crítica ao Programa de Gotha, s/d, p. 215).

Neste sentido, o filósofo, o doutrinador, o legislador e o juiz, devem, a um tempo, visualizar as oportunidades concretas de um Direito posto como facilitador, motivador mesmo da justiça social, um “Direito Pedestre”. Isto é possível pela própria dimensão dialética: como o Estado e a lei têm que descer ao mundo real dos homens para exercerem seu papel de ordenamento e controle social, mexendo nas vontades e consciências, pode o Direito, neste “movimento complementar”, possibilitar uma intervenção que vá nesse sentido que dizemos “Direito Pedestre”. O Direito ainda é Filosofia! O que é a Filosofia senão a capacidade de abstrair, dos indicadores da realidade concreta dos homens, explicações de seu ser, de seu passado e seu devir? Principalmente, porque “onde há vontade, ali existe caminho”!

Referências

CASTRO, Celso A. Pinheiro de. Sociologia do Direito. 6a. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 3ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 1999.

COMTE, Auguste. Discurso sobre o Espírito Positivo. In: COMTE. Os pensadores. 2ª. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 17ª. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.

GURVITCH, George. Sociologia Jurídica. Rio de janeiro: Kosmos, 1946.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do Direito. São Paulo: Difel, 1964.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In: Karl Marx & Friedrich Engels – Obras Escolhidas. v. 2. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d.

___________. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. In: FERNANDES, Florestan (org.). Marx e Engels – História. São Paulo: Ática, 1983.

SCURO NETO, Pedro. Manual de Sociologia Jurídica. 3a. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.


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