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Usucapião Familiar

ABANDONO DO LAR

ART. 1.240-A

CÓDIGO CIVIL

CÔNJUGE

ESTATUTO DA CIDADE

IMÓVEL URBANO

INTERESSE SOCIAL

LEI 11.977/2011

LEI 12.424/2011

PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA

Marco Aurélio Bezerra de Melo

Marco Aurélio Bezerra de Melo

09/12/2015

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A lei 12.424/2011 fez importantes alterações no Programa Minha Casa Minha Vida introduzido pela lei 11.977/2011 e modificou também o Código Civil, introduzindo o artigo 1.240-A com a seguinte redação: “Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1o  O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.”.

O dispositivo legal, em primeira análise, está ligado a duas questões básicas. A primeira é a de que ele se vincula à usucapião especial urbana que objetiva proteger o direito à moradia de pessoas que, ocupando informalmente e por cinco anos ou mais determinada gleba de terras urbanas de até 250 m2, consoante preconiza os artigos 183 da Constituição Federal, 1.240 do Código Civil e 9º do Estatuto da Cidade. A segunda questão é que esta novel figura jurídica vincula-se à proteção da família que permanece no imóvel após a ruptura do vínculo matrimonial ou convivencial por abandono do lar.

Parece-nos que a concepção que anima a usucapião familiar é a mesma que levou o legislador do Programa Minha Casa Minha Vida a estabelecer como princípio e regra da regularização fundiária de assentamentos urbanos de interesse social e interesse específico a concessão do título de legitimação de posse preferencialmente para a mulher (arts. 48, V e 58, § 2º da lei 11.977/2009), além de excepcionar a regra do artigo 1.647 do Código Civil e dizer que nos contratos de financiamento envolvendo gravame real com recursos do FGTS é desnecessária a outorga marital na hipótese em que a mulher seja chefe de família (art. 73-A). Ainda que pareça exdrúxula a ideia de chefe de família quando comparada a previsão com o artigo 5º e 226, § 5º, da Constituição Federal, o fato é que há na norma um objetivo importante e que merece reflexão acurada.

Não há na usucapião familiar o reconhecimento estatal de uma presunção relativa de debilidade da mulher frente ao homem semelhante ao artigo 100, I, do Código de Processo Civil que prevê como competente o local do domicílio da mulher para o julgamento de questões de divórcio e anulação de casamento. É sabido que neste caso não há ofensa ao princípio da isonomia, posto que a lei cria essa presunção por razões históricas que remontam ao superado período da sociedade patriarcal secular que no Brasil somente começou a, felizmente, perder espaço com o Estatuto da Mulher Casada (lei 4121) em 1962 e se consumou, ao menos juridicamente, com a Constituição de 1988 com a isonomia entre homem e mulher alçada ao patamar de garantia fundamental e princípio constitucional do direito de família. Tal presunção, é sabido, cede ante à prova em sentido contrário e não poderia ser diferente em uma País em que a chefe do Poder Executivo Federal atualmente é do sexo feminino.

Além dos pressupostos genéricos da usucapião pro moradia, esta nova modalidade de prescrição aquisitiva estabelece como requisitos específicos que o ex-cônjuge ou ex-companheiro exerça posse com exclusividade durante dois anos sobre imóvel que tenha em condomínio com o ex-consorte que abandonando o lar conjugal acabará por possibilitar que o abandonado adquira a propriedade na sua integralidade.

Assinala corretamente o enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal/STJ que “a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas”. Em outras palavras, somente terá cabimento a usucapião familiar se os cônjuges forem condôminos.

Em se tratando de modalidade nova de usucapião, a fim de evitar que o proprietário dormidor seja surpreendido injustamente pela lei nova, à semelhança do que ocorrera com a entrada em vigor da usucapião especial urbana por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, “a fluência do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n.12.424/2011.”, conforme assentou o enunciado 498 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal/STJ.

A possibilidade de usucapião entre cônjuges, tendo por objeto a meação do imóvel comum excepciona a regra geral de que não corre prescrição entre cônjuges durante a sociedade cônjugal aplicável à usucapião por força do disposto no artigo 1244 do Código Civil que estabelece a extensão ao “possuidor do disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”. Com efeito, a lei atribuiu ao abandono do lar uma causa segundo a qual a prescrição aquisitiva passa a correr e não a partir da ruptura da sociedade conjugal como prevê o artigo 197, I, do Código Civil. É bem verdade que a prescrição não corre entre cônjuges e companheiros como meio de evitar incluir mais um elemento de instabilidade no casamento ou na união estável e aqui se está falando de relação afetiva já dissolvida, mas trata-se de uma inovação que merece ser pensada. De certa maneira, a jurisprudência já vinha entendendo que uma separação de fato com tempo considerável seria o suficiente para possibilitar o início do curso da prescrição.

Parece-nos que fundamenta a usucapião familiar a proteção da família, independentemente de gênero, pois a lei fala indiscriminadamente em ex-cônjuge ou ex-companheiro, mas em razão da interpretação sistemática com os dispositivos do Programa Minha Casa Minha Vida acima citados, sentimo-nos confortáveis para dizer que há uma premissa na legislação de que nos assentamentos humanos populares é a mulher que resiste com maior estoicismo às dificuldades da vida, não abandonando a sua prole. Desnecessário dizer que há várias demonstrações em contrário, mas a experiência profissional desse autor, acumulada no trabalho junto à Defensoria Pública fluminense, permite afirmar que a regra nessas rupturas convivenciais é a permanência da mulher com a família que ajudou a criar.

Assim, identificada a mens legis, resta saber se a regra como se encontra disposta atende a seus fins. Parece-nos que dificilmente logrará alcançá-los.

O primeiro entrave é o de que pelo risco da perda patrimonial de metade do imóvel, seja forçada uma litigiosidade precoce entre os cônjuges ou companheiros que em um primeiro momento apenas resolveram se separar fisicamente, mas que poderiam tranquilamente deixar de lado a questão patrimonial ou tentar resolvê-la bem mais tarde, quando, por exemplo, os filhos já tivessem atingido a emancipação pessoal, constituindo os seus próprios núcleos familiares. Agora, temeroso pela usucapião com um prazo tão ínfimo, o ex-cônjuge vai querer partilhar o bem, o que pode ser desastroso para a família. Se com o imóvel inteiro, já é difícil para o homem médio manter a sua família, o que se dirá quando o ex-parceiro contar com apenas metade desse patrimônio alienado às pressas quando não em alienação judicial que notoriamente traz prejuízos financeiros para quem tem o seu bem vendido nessas condições?

Há ainda que se perguntar o sentido técnico-jurídico dos vocábulos legais ex-cônjuge e ex-companheiro. Na primeira hipótese, ex-cônjuge é aquele que se encontra divorciado. Na segunda, como a união estável é fática, apenas a análise do caso concreto é que vai fornecer dados suficientes para o convencimento do fim ou não da convivência. Ocorre que a lei emprestou outro significado ao dizer que para fins de usucapião ex-cônjuge é aquele que abandonou o lar. Destarte, a norma traz consigo também um viés de penalidade para aquele que abandona a família e isto recrudesce a vetusta e equivocada percepção da importância de imputar culpa a alguém pelo fim de um relacionamento afetivo. A Emenda Constitucional nº 66 que dispensou qualquer requisito prévio para o divórcio representou um avanço, permitindo que o término da relação coincida com o fim do afeto entre o casal, desatrelando esta questão, a propósito, das influências religiosas.

Nessa linha de raciocínio, a presente modalidade de usucapião parece realmente representar um retrocesso. Na tentativa de apresentar ao intérprete critérios mais justos para a configuração da usucapião, com muita felicidade, o enunciado 499 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal/STJ alvitrou conferir uma interpretação mais cautelosa ao abandono de lar previsto no texto legal ao dizer que há a necessidade de que o afastamento do lar conjugal represente “descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião.”. Contudo, na VII Jornada de Direito Civil realizada em 2015 a Comissão de Direito de Família houve por bem revogar o referido enunciado para o fim de reforçar ainda mais a necessidade de uma interpretação funcional do “abandono do lar” ao dizer que “O requisito do ‘abandono do lar’ deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel, somando à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499”.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[1]  trazem à baila ainda o risco de a usucapião familiar derrogar até mesmo o regime de bens escolhido pelo casal. Pratica comum nos juízos de família era assegurar ao cônjuge que permanecia com a prole a posse do imóvel, preservando o condomínio e tal situação refletia, inclusive, no cálculo da verba alimentar que poderia ser substituída ou pelo menos minorada. Arrematam os autores dizendo que “agora, contudo, convivem dois sistemas: um objetivamente definido a partir do artigo 1639 do CC, com relação aos bens particulares que cada consorte trouxer à união, bem como com relação ao patrimônio constituído na constância da convivência. E um regime subjetivamente definido pela causa da extinção do vínculo. Há um patrimônio geral – cuja sorte seguirá a autonomia privada do casal ao tempo da união – e um patrimônio afetado ao acaso, quer dizer, o bem imóvel de moradia do casal, reservado ao convivente inocente, derrogando-se o regime livremente eleito pelos consortes.”. A lição é grave e vale a pena ser refletida com seriedade.

Algumas situações podem evitar a usucapião para o cônjuge que sai do lar. Uma delas é a propositura de ação cautelar de separação de corpos em que se demonstrará a seriedade da intenção futura do divórcio. Se for o caso, convém também oferecer alimentos. Em ambos os casos, não há que se falar em abandono do lar. Outra situação que pode ocorrer é o cônjuge que saiu do lar demonstrar que durante os dois anos se encontrava discutindo com o ex-cônjuge o destino do imóvel do casal. A configuração dessa situação provoca o reconhecimento recíproco do direito de propriedade sobre o bem, o que se consubstancia em causa interruptiva da prescrição e por outro lado demonstra a presença da oposição séria a posse do ex-consorte, afastando a usucapião daquele que ficou com a posse exclusiva, pois como sabido a posse ad usucapionem deve ser mansa e pacífica, isto é, sem oposição. No mais, obviamente, não terá cabimento da usucapião sendo feito o divórcio ou uma notificação judicial para fins de interrupção da prescrição (art. 202, V, CC), o que, como dito antes, pode acarretar mais uma situação desconfortável para o casal que está rompendo o vínculo afetivo.

No mais, resta-nos aguardar que a jurisprudência seja rigorosa na configuração dessa modalidade de usucapião a fim de que a ideia central de justiça social não se converta em flagrante injustiça concreta e individual.


[1]Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.Direitos Reais. 8ª ed. Salvador: Ed. Juspodium, 2012, p. 467.

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