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A criminalização do doping e a fórmula omissiva

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Paulo César Busato

Paulo César Busato

19/01/2016

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Seguindo uma tendência mundial, dificilmente o Brasil conseguirá passar incólume pela onda de incriminação das situações de doping em competições desportivas eis que há um consenso internacional no sentido punitivo. A primeira opção político-criminal a respeito do tema seria afastá-lo da seara penal, no entanto, parece provável ou até inevitável que surja uma incriminação a respeito do doping também no Brasil.

Porém, ao contrário de reagir a uma legislação já posta, desta vez é possível a análise crítica antecipada, com base na legislação firmada em outros países, visando propor uma intervenção penal tão minimizada quanto possível.

Os precedentes incriminatórios estrangeiros apontam uma situação técnico-dogmática indefinida a respeito do que é doping, de que bem jurídico se pretende resguardar a partir de sua incriminação e do alcance que deve ter a incriminação. Por exemplo, o direito alemão trata do tema a partir do interesse na saúde, usando da técnica dos crimes de perigo para alcançar a mera posse dos produtos potencialmente danosos. Contudo, os esportes de alto rendimento não pretendem promover a saúde; os resultados de dano à saúde quase invariavelmente só surgem após longo tempo e também, afligem o próprio atleta, consistindo em hipótese de autolesão que, em princípio, seria impune. Finalmente, no caso do heterodoping, o caso seria de heterocolocação em perigo consentida.

Outra opção que recebe acolhida na doutrina alemã, relaciona o doping com a concorrência desleal na competição desportiva. Neste caso, o foco é a competição, a vantagem obtida em uma vitória viciada pela interferência do doping. Esta distorção de resultado é o que justificaria – em tese – o ingresso do controle social exercido pela instância penal. Aqui também aparecem problemas: a legitimação da intervenção conduziria a admitir a punição também do doping em animais que participam de competições ou da manipulação de automóveis de competição, já que eles também afetam o resultado tanto quanto o doping do atleta, e todos têm igual relevância econômica; o risco de perda financeira poderia derivar não só da violação das regras constitutivas do esporte, mas também das próprias faltas desportivas; é turva a fronteira entre as regras constitutivas do jogo e as regras de execução do jogo, a ponto de oferecer um limite de incriminação e, finalmente, as regras constitutivas de um esporte são definidas pelas próprias entidades organizadoras.

Parece que a incriminação vem respondendo a um anseio equivocado. Há um distanciamento da perspectiva do que realmente importa nos casos de doping.

No mundo hedonista da sociedade pós-moderna, é certo que não existe qualquer interesse na condição pessoal de saúde do atleta. Nem de parte da mídia, nem de nenhuma outra pessoa, salvo os entes queridos, amigos e parentes e, de modo secundário, ao empresário, ao organizador e à equipe à qual pertença o atleta. Sua saúde só interessa, ademais, pelo que ele representa financeiramente e em termos de imagem. Existe muito mais atenção no resultado do que na lealdade da competição. Logo, os interesses não tem qualquer relação nem com uma coisa, nem com outra. O certo é que a competição desportiva tem um interesse social, mas este está relacionado à exploração comercial e midiática do evento desportivo, da figura do atleta, da associação entre sua atitude e determinada marca. Esta é a questão central. Assim, a preocupação deveria ser com a produção do resultado de prejuízo para a competição desde um ponto de vista da fraude do resultado ou da perda do caráter sério da competição, em função da burla derivada do doping.

O centro da discussão não é a ocorrência do evento doping, mas sim, a existência de um controle efetivo e da realização das regras de fiscalização anti-dopagem estabelecidas, de modo a permitir que a imagem do esporte seja isenta.

Isto mostra que as dificuldades de imputação estão situadas menos no bem jurídico e mais na figura do autor do crime. Parece mal dirigida a incriminação, quando voltada à punição do atleta. Parte-se do dado fático de que um atleta se dopa ou anui de algum modo com que um treinador, um preparador ou um médico lhe proporcione ou ministre a substância dopante e que este evento, em si, deve ser o fato incriminado. A histeria da punibilidade do doping pretende dar vazão a uma situação de punição do atleta que se dopa ou que conscientemente anui em ser dopado. Aparentemente, já existe uma identidade clara a respeito de quem se quer punir: o atleta. O esforço é apenas no sentido de encontrar uma razão tecnicamente sustentável para isso.

Mas não é este o centro de incriminação adequado, se é que se pode falar em algum. As condutas penalmente relevantes são as que dizem respeito à realização do controle antidoping. Este deslocamento da discussão põe em evidência algo que a tipificação do acontecimento ontológico da dopagem mascara: não é o fato de que um atleta tome esteróides anabolizantes o que exige atenção jurídica, mas sim, o fato de que isso ocorra em um âmbito desportivo em que tal uso seja proibido e o fato seja detectado por um mecanismo de controle de dopagem. O interesse está em que este controle se realize e realmente seja sério, de modo a promover a desclassificação, na instância desportiva, do atleta que violou as regras anti-doping do desporto.

Se o controle de anti-dopagem se realiza com regularidade em face das regras estabelecidas para o esporte em questão e algum atleta dopado é identificado, as conseqüências desportivas esgotam certamente todo e qualquer interesse no caso, não remanescendo nenhuma questão que possa ser de ultima ratio, capaz de demandar interesse penal. Por outro lado, a descoberta tardia de situação de doping, em um esporte de interesse midiático e econômico, onde tenha havido um mecanismo de controle antidoping burlado, certamente demanda interesse, especialmente de patrocinadores, promotores do evento, organizadores, apostadores e torcedores. A existência de uma competição cujas regras anti-dopagem sejam efetivamente cumpridas, não impede que efetivamente haja fraude, mas isto faz parte dos riscos incorporados por aquele que vincula seu nome ou sua marca a um competidor ou um evento.

Daí resulta claro que o único interesse que pode ser demandado dentro do campo do Direito penal, é que seja realizado um controle sério e ajustado a respeito do doping por parte dos organizadores do evento desportivo.

Portanto, a incriminação somente poderia partir da existência de um dever jurídico, voltado para os organizadores do evento, a quem compete diligenciar para que haja controle de dopagem sério e organizado, capaz de garantir um resultado isento para a competição. A omissão deste dever é que terá um conteúdo axiológico penalmente relevante. A eventual falta de cumprimento do dever de realização do controle antidopagem poderá transformar-se em uma questão de interesse penal, se os organizadores levaram a cabo um simulacro de competição, ou uma competição cujo resultado foi viciado pela incidência do doping, com prejuízo de todos os interessados na realização do evento. Aos eventuais beneficiados pelo descumprimento do dever por parte do organizador, bastam as conseqüências desportivas pertinentes, aos organizadores, é possível imputar mais.

A fórmula de técnica de tipificação mais adequada para a hipótese, portanto, seria a omissiva própria, com referência expressa à identificação de uma classe específica de autor: o organizador de competição desportiva em que o doping seja proibido ou o responsável pela realização do controle antidoping, também contendo referência específica, mas aberta, à necessidade de cumprimento das regras de controle antidoping  próprias de cada modalidade desportiva, nesse sentido, constituindo lei penal em branco.

Daí derivam vantagens em face das incriminações precedentes, havidas na legislação européia: a exclusão da figura do autodoping, o ajuste aos interesses externos à seara desportiva, o alcance das manipulações de resultados, a preservação da autonomia da instância desportiva, uma redução do âmbito de incriminação, afastando-se do atleta, do preparador/treinador/médico/nutricionista, centrando fogo apenas na figura do organizador da competição, um foco de incriminação voltado para aquele que participa das instâncias de poder decisório a respeito da questão do doping, convertendo o tipo em uma incriminação do colarinho branco, e finalmente a salvação dos inconvenientes que a aproximação com as lesões corporais – pelo ponto de vista da saúde pública – e com o estelionato – pelo ponto de vista do fair-play – poderiam gerar dogmaticamente.

Portanto, diante do panorama que se avizinha, não sendo possível o afastamento das pretensões de controle jurídico penal do doping, a opção menos aflitiva, desde considerações tanto criminológicas quanto dogmáticas e político criminais, é a opção por uma incriminação omissiva, relacionada com o controle de dopagem por parte dos dirigentes ou organizadores da competição, sempre e quando esta seja dotada de relevância econômica.


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