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O dano existencial na responsabilidade civil

Marco Aurélio Bezerra de Melo

Marco Aurélio Bezerra de Melo

05/02/2016

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O dano existencial, espécie de dano extra patrimonial ou imaterial, pode ser identificado como a perda da qualidade de vida do indivíduo que a partir da lesão sofrida altera ou até mesmo perde a possibilidade de manter as suas atividades cotidianas. Por ele, perde o ofendido a possibilidade de gozar os prazeres que a vida poderia proporcionar. Pode ser subdividido em dano à vida de relação e dano ao projeto de vida. Na primeira manifestação, o ofendido perde algo que já estava incorporado ao seu patrimônio como o hobby de fotógrafo subaquático que praticava há muito tempo ou o convívio com os amigos de longa data na “pelada” de domingo. Na segunda hipótese, o ofendido vê frustrado as expectativas que tinha acerca de seu futuro como, por exemplo, ser pintor de paredes, mecânico, odontólogo, dentre outras atividades que se tornaram impossível para quem perdeu com o acidente as duas mãos. Em ambos os casos, o sentido que o lesado tinha de sua vida foi modificado pelo dano injusto perpetrado por alguém, ou seja, trata-se de um dano que protrai seus efeitos para o futuro, mas que pela análise feita, mostra-se como certo.

Matilde Zavala de Gonzalez[1] define dano à vida de relação como aquele em que há impossibilidade ou dificuldade do sujeito atingido em sua integridade de reinserir-se nas relações sociais ou de mantê-las em um nível de normalidade. O dano ao projeto de vida atinge legítimas expectativas que a pessoa tinha com relação a própria existência, variando de uma frustração de menor alcance até a própria perda de sentido pela vida.

Gravíssimo exemplo de dano existencial pode ser trazido à memória por aqueles que sobreviveram às torturas físicas e psicológicas nos campos de concentração instalados pelos nazistas contra a população judia da Europa, pois nesse deplorável momento da humanidade ressaem as mais bárbaras e inimagináveis formas de atentado à pessoa como morte, lesões, dano psíquico, dano estético, dano ao projeto de vida e dano à vida de relação, dentre outros. Na obra “Em Busca de Sentido”, o psiquiatra Viktor Frankl, um dos sobreviventes de Auschwitz (nº 119.104), trata exatamente desse dano existencial, narrando o que eram os judeus que chegaram ao campo de concentração e no que eles se tornaram na vida de relação dentro dessa prisão. Também exemplifica danos ao projeto de vida de inúmeras pessoas que viram ceifados os seus sonhos existenciais.

Um momento extraído do livro pode nos ser útil para sentir um dano existencial visceral, intenso. O exercício pode ser importante, pois ao sentirmos, adquirimos maiores condições para nos posicionar sobre a natureza desse tipo de dano a fim de percebê-lo como mais um tipo de dano imaterial autônomo ou enquanto critério a ser observado na fixação do valor justo para o dano moral, como se verá. Assim é que após ter recebido duas bordoadas de cassetete sem razão alguma, Viktor Frankl[2] narra que a dor física não é o mais importante. O que realmente dói é a dor psicológica. “Exemplo: certa vez, estive trabalhando numa estrada de ferro, em plena tempestade de neve. Nem a tempestade seria razão suficiente para interromper o trabalho; e para não sentir muito frio, aplico todo o ímpeto em “entupir” com pedras os espaços debaixo dos trilhos. Paro por um momento, a fim de tomar fôlego, e me apoio na ferramenta. Por infelicidade, no mesmo instante o guarda se vira em minha direção e pensa naturalmente que estou vadiando. O que me dói agora, apesar de tudo e a despeito da insensibilidade crescente, é sim o fato de que para aquele guarda essa figura decrépita e esfarrapada, que só de longe lembra vagamente um ser humano, não merece sequer um insulto. Ao invés, ele não faz mais do que levantar uma pedra do chão e, como se estivesse brincando, atira-a em minha direção. Desse jeito – foi o que senti – chama-se a atenção de um bicho qualquer, assim se adverte o animal doméstico de seu “dever”, o animal com que se tem uma relação tão superficial que “nem” se chega a castigá-lo.”

A despeito de ainda existir opiniões em contrário como é o caso de Sérgio Cavalieri Filho[3], a autonomia do dano estético com relação ao dano moral já se encontra majoritária na doutrina[4] e jurisprudência, como se pode perceber dos verbetes sumulares 96 da Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e 387 do Superior Tribunal de Justiça (É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.). A propósito, Teresa Ancona Lopez[5] nos ensina que “ao apreciar um prejuízo estético deve-se ter em mira a modificação sofrida pela pessoa em relação ao que ela era (mudança de imagem)”, definindo “dano estético como qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa, modificação esta que lhe acarreta “enfeamento” e lhe causa humilhações e desgostos, dando origem, portanto, a uma dor moral.”

A mesma autonomia com o dano psíquico que diferentemente do dano moral, não se verifica in re ipsa. O dano psíquico depende de prova que defina a relação de causalidade entre a patologia mental contraída e o comportamento da pessoa apontada como lesante. Diante dessa avaliação médica é que o juiz se sentirá seguro para arbitrar uma verba específica para o dano psíquico. Nesse sentido, afirma Fernando Noronha[6] que o dano corporal que afeta a integridade física e psíquica corresponde a um estado patológico que deve ser constatado por uma avaliação médica, enquanto que “o dano moral, afetando sentimentos, é essencialmente subjetivo, devendo o julgador, em seu prudente arbítrio, começar por apreciar da respectiva existência, intensidade e duração, para só depois passar à determinação da forma de reparação.”

Voltando ao dano existencial, duas correntes se impõem de plano para a análise. A primeira defende que à semelhança do que sucede com o dano estético e psíquico, o dano existencial também gozaria de autonomia em relação ao dano moral. Seria um novo tipo de dano imaterial, justificando, portanto, uma reparação diferenciada em relação ao dano moral. A pessoa que se tornou sexualmente impotente com a lesão faria jus a uma verba a título de dano moral pela agressão ao direito da personalidade aqui exemplificado no dano ao corpo, além de um valor fixado pelo dano existencial de não poder mais manter as relações sexuais com o cônjuge.

Adepta da primeira corrente, Flaviana Rampazzo Soares[7] define com maior abrangência o dano existencial como a “lesão ao complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade do sujeito, abrangendo a ordem pessoal ou a ordem social. É uma afetação negativa, total ou parcial, permanente ou temporária, seja a uma atividade ou a um conjunto de atividades que a vítima do dano, normalmente, tinha como incorporado ao seu cotidiano e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de realização, ou mesmo suprimir de sua rotina.”

Defendendo também a autonomia do dano à vida de relação e apontando como tendência acompanharmos o direito comparado, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino[8], baseado no direito francês, divide-o em prejuízo de lazer (préjudice d’agrement), prejuízo sexual (damnum sexuale ou pretium sexuale) e prejuízo juvenil (préjudice juvénile ou pretium juventutis). Esclarece Flaviana Rampazzo Soares[9] que “o dano existencial é uma versão do préjudice d’agrement, porém, não é, de certa forma, “segmentado”, como fazem os franceses.”

No início dos anos noventa, Clóvis do Couto e Silva[10] referiu-se ao instituto dizendo que o préjudice d’agrement, em sua concepção mais estrita, é o dano pela perda do que normalmente se pratica como lazer, como a impossibilidade de realizar atividades esportivas e culturais. Não é fácil separar, em alguns casos, essa indenização do pretium doloris e até mesmo do dano estético, podendo até mesmo o préjudice d’agrement abranger a perda do gosto, do olfato, quando considerado no seu sentido amplo.”

O prejuízo de lazer é tomado hoje em um sentido amplo a abarcar desde a privação de atividades artísticas, esportivas e culturais, passando pela perda de sentido vital como a visão ou a audição, por exemplo, até os hábitos mais simples como caminhar três vezes por semana no calçadão de Copacabana. Diz Sanseverino[11] que isto se deu na França, após 1973, em que a Corte de Cassação adotou concepção mais extensiva para o préjudice d’agrement, incluindo “a privação dos momentos de lazer em geral comuns da vida de uma pessoa normal, passando a abranger os hábitos sociais, as alegrias e os prazeres cotidianos.”

O prejuízo sexual inclui a impotência para o coito pelo homem ou pela mulher (impotentia couendi) e a impotência para gerar filhos (impotentia generandi). Lembra Sanseverino[12] que aqui poderá também haver dano reflexo ou em ricochete em favor de quem demonstrar que de modo estável desfrutava do deleite sexual com a vítima.

O prejuízo juvenil é a perda por parte da criança ou do adolescente das possibilidades inerentes à sua condição de pessoa em formação como brincar e aproveitar a vitalidade que em regra acompanha essa faixa etária. Flaviana Rampazzo Soares[13] estende essa investigação ao dizer que “o prejuízo juvenil corresponde às consequências maléficas que incidem sobre um jovem que deixa de gozar os benefícios da sua juventude, o seu vigor físico e mental e as experiências únicas juvenis.” O artigo 3º da lei 8069/90, fundamentado no artigo 227 da Constituição da República, estabelece que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”. Assim, para o direito brasileiro não resta dúvidas acerca do relevo constitucional que é conferido ao dano causado à pessoa em formação.

Com as vênias de estilo, concordamos com Fernando Noronha[14] quando diz da necessária consideração dos danos existenciais, mas que estes não representam categoria autônoma, sendo este apenas mais um tipo de dano anímico que é possível distinguir. De fato, o direito brasileiro abraça com entusiasmo a proteção aos direitos da personalidade, colocando-os em uma dimensão aberta no parágrafo segundo do artigo 5º da lei maior. Qual seria então a utilidade do reconhecimento dos danos existenciais como categoria autônoma se os direitos da personalidade integram o direito ao corpo, vida, partes do corpo, imagem, nome, honra, vida privada, liberdade, intimidade, ser diferente, procriação consciente, liberdade religiosa, designação e redesignação sexual, dentre tantos outros? O nosso ordenamento é tão fértil na proteção dos direitos da personalidade que todas as hipóteses apontadas como dano existencial já estariam inseridas na violação de algum dos direitos da personalidade. Importa sim que se reconheça o dano existencial para mensurar com mais precisão a extensão do dano sofrido. Deverá o magistrado aferir não apenas os efeitos psicofísicos sofridos pelo lesado, mas também apreciar se o fato danoso perturbou a normalidade da vida social da vítima, como bem salienta Matilde Zavala de Gonzalez[15].

Partidário da tese de inexistência de uma categoria nova de danos imateriais, Antonio Jeová Santos[16] argumenta pela necessidade de a petição inicial descrever a alteração da vida de relação experimentada pela vítima, exemplificando a narrativa: “com os dois braços quebrados o ofendido não reuniu condições de ter uma vida normal, de frequentar os mesmos lugares, de praticar o esporte que mais gostava, etc.” Com a descrição minuciosa da nova situação de vida imposta à vítima, poder-se-á atribuir um valor mais justo para o dano moral.

Na jurisprudência brasileira, tais danos não são considerados autônomos em relação ao dano moral, mas já se percebe nas decisões judiciais a referência aos danos existenciais como fundamento para que o dano moral seja mais elevado. Apenas a guisa de fixação do conteúdo, trazemos a lume julgado do Superior Tribunal de Justiça em que o eminente Relator, Ministro Marco Buzzi, (REsp 1.281.742/SP, Quarta Turma, julg. 13/11/2012) manteve o valor de 1000 salários mínimos em favor de uma vítima de acidente de consumo, em dano ocasionado por defeito de fabricação do pneu do veículo, causando a tetraplegia do motorista. Em significativo trecho da decisão, vê-se com clareza a referência ao dano à vida de relação, espécie de dano existencial, verbis: “A tetraplegia causada ao aposentado em razão do acidente automobilístico, que transformou inteiramente sua vida e o priva da capacidade para sozinho, praticar atos simples da vida, cuida-se de seríssima lesão aos direitos de personalidade do indivíduo. A indenização fixada para tais hipóteses não encontra parâmetro ou paradigma em relação aos casos de morte de entes queridos.” Releve-se que aquela Corte insere corretamente o dano à vida de relação como ofensa aos direitos da personalidade da vítima.

Concluindo, temos que os chamados danos existenciais se subsumem no dano moral sofrido pela vítima. Diante do subjetivismo que o caracteriza, não possui a mesma autonomia do dano psíquico e estético que podem ser aquilatados objetiva e autonomamente em relação ao dano moral, inclusive mediante prova pericial. Por outro lado, não vemos utilidade para esse reconhecimento, tendo em vista a amplitude que nossa Constituição confere à proteção dos direitos da personalidade. Desta forma, tais danos merecem debate judicial, municiando o magistrado de fundamentos para aquilatar com mais completude a extensão do dano à personalidade sofrido pelo ofendido a fim de se assegurar ao lesado a efetiva reparação integral do dano (art. 5º, V e X, da CRFB e 944, CC).


[1] ZAVALA DE GONZALEZ, Matilde. Resarcimiento de daños. 2ª.  Daños a las personas (integridade sicofisica). 2 ed. Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1996, p. 462.
[2] FRANKL, Viktor. Em Busca de Sentido. 32 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2012, p. 39.
[3] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2012, PP. 113/114.
[4] ANCONA LOPEZ, Teresa. O Dano Estético. 3ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2004, pp. 163/167.
[5] ANCONA LOPEZ, Teresa. Obra cit. ant., pp. 46/48.
[6] NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. Vol. I. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 561.
[7] RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Responsabilidade Civil por Dano Existencial. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009, p. 44.
[8] SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011 pp. 301/307.
[9] RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Obra cit. ant. p. 49.
[10] COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo. O Conceito de Dano no Direito Brasileiro e Comparado, in O Direito Privado na visão de Clóvis do Couto e Silva, org. Vera Maria Jacob de Fradera. Ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 1997, p. 233.
[11] SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Obra cit. ant., p. 304.
[12] SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Obra cit. ant., p. 304.
[13] RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Obra cit. ant. p. 48.
[14] NORONHA, Fernando. Obra cit. ant., p. 564.
[15] ZAVALA DE GONZALEZ, Matilde. Obra cit. ant., p. 464.
[16] SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. 4ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 104.

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