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Seminário da Feiticeira

SEMINÁRIO DA FEITICEIRA

Corrupção: Democracia e Direito – Tercio Sampaio Ferraz Junior

CORRUPÇÃO

DEMOCRACIA

DIREITO

Seminário da Feiticeira

Seminário da Feiticeira

01/03/2016

Recebi de um amigo alemão o seguinte e-mail a propósito deste seminário:

Eu, Ingo Maehrlein, sou conselheiro internacional em matéria de boa governança local. Aconselho municípios em Madagascar, também em questões de corrupção.

Faz parte da boa governança combater a corrupção. Digo assim aos prefeitos em Madagascar, que eles devem agir contra a corrupção, porque ela é danosa. A isso eles abanam a cabeça, concordando. Mas me olham com olhos arregalados e amistosos e pensam: como é possível que esses alemães que só têm farofa no cérebro consigam, apesar disso, fazer automóveis tão espetaculares.

Perguntam-me, então, o que devem fazer contra a corrupção. Eu respondo que corrupção não é um problema de dinheiro, mas de “falta de dinheiro”. E explico: quem paga com bananas deve trabalhar com macacos. De novo abanam a cabeça, concordando, e refletem: como poderiam conseguir bananas para pagar seu pessoal…

Que é corrupção, prezados amigos filósofos? Como fazer para explicar a essa gente, nesses países, que não se deva ajudar aos amigos? Corrupção, mesmo para alguém da terra de Kant, é algo difícil de definir. Corrupção é um daqueles conceitos, que surgem do nada. Como alergia ao pó de velhos arquivos. Ninguém é capaz de dizer exatamente o que ela é. Mas, quando ela aparece, qualquer um sabe do que se trata.

As observações aí contidas servem para iniciar uma reflexão.

Delas destaco: (1) a dificuldade de um conceito geral; (2) a relação/diferenciação entre corrupção e preferência clientelística; (3) corrupção e distinção entre progresso e atraso (desenvolvido/subdesenvolvido).

Embora, nos dias de hoje, corrupção seja um tema corrente, tratado na legislação e verberado moralmente, é possível dizer que talvez não se trate propriamente de um problema jurídico nem mesmo, em sua essência, de um problema ético, mas de um mito político. Não mito no sentido de fabulação, mas de um componente estrutural de nossa percepção das coisas. Nesse sentido, algo que não pode ser eliminado, não porque o homem seja moralmente fraco, mas porque nossa concepção de corrupção não permite sua eliminação.

Não se trataria, assim, de um conceito descritivo, mas de um conceito valorativo: é impossível separar com nitidez o fato da corrupção da indignação que ela provoca. Nessa linha, a conhecida classificação, popularizada por Arnold Heidenheimer (Perspectives on the Perception of Corruption em Political Corruption. A Handbook, ed. Heidenheimer, Johnson, LeVine, Londres, 1993), entre corrupção negra, cinzenta e branca, sendo a primeira aquela que existe no consenso das elites e da opinião pública na reprovação de um determinado ato ou comportamento como merecedor de um castigo (suborno da autoridade para obter um benefício), a segunda, quando há alguns grupos da elite veem certos comportamento como reprováveis, enquanto a opinião pública mantém uma posição ambígua (por exemplo, o pagamento de transporte para eleitores dispostos a sufragar determinado candidato ou partido), a terceira, quando a maioria das elites e da opinião pública consideram certos comportamentos corruptos como toleráveis, como fazer uso de despachantes para obter serviços, sem perguntar como os conseguem.

Há, assim, uma espécie de jogo dialético entre corrupção e crítica da corrupção, do qual emergem conceitos de corrupção.  Mostrada no e-mail que reproduzi, essa equação dialética desponta nessa dificuldade de julgar certos comportamentos: seria um caso de corrupção os brindes que alguém, como comprador, recebe por sua fidelidade ao vendedor em detrimento dos demais?

Isso seria, por sua vez, um possível motivo a explicar a dificuldade de uma definição geral de corrupção, o que não exclui a possibilidade de elegermos algumas conhecidas práticas como sinais óbvios de corrupção: suborno, propina, favorecimento, não obstante seja inseguro às vezes falar de corrupção quando pensamos em incentivo, prêmio, reconhecimento, gratidão.

Uma amostra dessa dificuldade está no princípio da troca de presentes, descrito como um tema fundamental da antropologia na obra de Marcel Mauss de 1923/24: Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques ( ver a édition électronique réalisée par Jean-Marie Tremblay, professeur de sociologie au Cégep de Chicoutimi, 17 février 2002). Trata-se da descrição do efeito vinculante que possui um presente na forma de criação de relações de compromisso: presentes devem ser retribuídos. Quem recebe assume uma espécie de débito que o põe numa posição assimétrica de inferioridade até que retribua com um presente maior, invertendo as posições. Trata-se de relações que não se regulam por medidas morais, como as que presidem a justiça comutativa e distributiva, nem podem ser reduzidas a questões de gratidão, muito menos reguladas por normas jurídicas.

No Código de Hammurabi (1711-1669 a.C) há punição para o juiz que muda sua decisão. Os intérpretes modernos dizem que a punição ocorre porque o juiz teria sido subornado. Daí o título dado pelos editores do Código a essa seção: “O juiz corrupto”. Essa interpretação etnocêntrica, contudo, passa por cima do fato do horror que seria para Hammurabi uma decisão levianamente inconstante. Tal inconstância ofenderia o deus Nunamnir, cujos comandos e decisões eram inalteráveis. Não é difícil dizer que dar presentes e recebê-los, mesmo por parte de um juiz, seria um comportamento usual. Punível, na verdade, seria a inconstância, a falta de firmeza. Donde uma certa inconsistência observada na tradução dos textos, podendo-se supor que o uso da palavra corrupção poderia apontar para um anacronismo do tradutor (John Noonan Jr. – Bribes, New York/London, 1984, p. 9 s.).

Na verdade, essa disputa interpretativa acaba por ser um indício de que corrupção não é termo facilmente generalizável na forma de um conceito universal, podendo ela ser vista antes como um problema estrutural de um modo de ser político. É o que se observa no uso que do tema corrupção se faz em nosso tempo, no quadro das democracias ocidentais.

Inicialmente, falar de um sentido moderno de corrupção significa distingui-lo do sentido que ela toma na antiguidade clássica. Corrupção das espécies, na Geração dos corpos é tema da bibliografia aristotélica, que faz pensar em corrupção como decomposição. Assim, o engendrado, aquilo que se gera e se corrompe, é fruto da metamorfose natural que se processa na microestrutura do ser.

Transportada para a ética, “corrupção”, entre os antigos, se referia à corrupção dos costumes. Sua manifestação patente era percebida quando uma pessoa – ou uma cidade – abandonava os valores “viris”, austeros, exigentes, para se “afeminar”, entregando-se ao luxo e à complacência. Disso é exemplo a acusação a Sócrates de que, sempre perguntando, sempre questionando, ele corromperia a juventude (corrupção, ??????, fthorás), no sentido de fazê-la perder a crença nos deuses da cidade.

Corrumpere é palavra usada por Cícero para acusar Oppianicus de ter dado bens a um juiz para decidir em favor de alguém contra o que é justo. Cícero não fala propriamente em suborno, propina, mas em “oferendas” (donum/dona e munus/munera). Mas fica evidente que receber presentes e oferendas não era um ato repudiável, salvo se para provocar uma injustiça, no sentido de um atentado contra os bons costumes. Até porque, embora, em latim, a palavra donum como a palavra munus possam ter uma conotação pejorativa, donum tem a ver com oferenda, como munus tem com encargo.

Contudo, certa dubiedade do termo corrumpere é percebida num texto atribuído ao próprio Cícero (sem que se conheça o contexto): “Dado que nada deva ser tão incorrupto em uma república do que o voto e o juízo, eu não entendo porque aquele que corrompe com dinheiro é merecedor de punição, mas aquele que os corrompe com eloquência é digno de mérito. Na verdade parece-me que aquele que corrompe o juiz com oratória faz mais mal do que corromper um juiz com dinheiro; pois ninguém pode corromper um homem prudente com dinheiro, mas pode pelo discurso” (cf. Noonam, p. 38. 45).

Esse uso moral (de mos/mores) sofre alguma alteração séculos depois.

Veja-se, por exemplo, que é muito diferente a condenação do filósofo Bacon no século XVII (Noonam, p. 334 ss.). Além de filósofo, Bacon foi político. Serviu ao rei Jaime I como ministro e dele recebeu o título de visconde. Em 1621, foi denunciado no Parlamento por corrupção, já num sentido moderno, ou seja, de apropriação de dinheiro público. Confessou ter recebido presentes das partes num tribunal que presidia, mas jurou que nenhum suborno afetou suas decisões. Foi perdoado, mas acabou aí sua carreira política.

Em breve síntese: a corrupção antiga afeta os costumes; a moderna, o Erário. Em que sentido?

O sentido é eminentemente político e afeta particularmente o exercício da democracia nos seus contornos liberais.

Encontra-se aí, aliás, um motivo para voltar-nos para aquilo que se pode chamar de micropolítica enquanto uma técnica política de exercício de poder. Trata-se, genericamente, de instrumento para a exploração de espaços informais na busca de influência, prestígio, reconhecimento, capazes de gerar redes de relações, embora sem mostrar-se diretamente nessas conseqüências. O que torna a micropolítica difícil de ser racionalizada (ao contrário da macropolítica e seus instrumento tradicionais: competência, poder de polícia, impositividade legal, obediência, uso regulado da força etc.).

Micropolítica explica, nessa linha, o que se costuma chamar de paternalismo e clientelismo, tomados não como distorções da macropolítica, mas como instrumentos necessários ao exercício do poder político ali onde os instrumentos oficiais não dão conta inteiramente de produzir coesão social e governabilidade.

Micropolítica, nesse sentido, não se confunde, de plano, com corrupção, mas tem relação com ela. Pode-se dizer, assim, que o sentido moderno de corrupção tem a ver com um processo histórico de diferenciação e separação, em que micro e macropolítica ganham linhas divisórias, fronteiras que se tornam barreiras para o exercício do poder.

Esse processo começa com uma sutil percepção da confusão que ocorre na Idade Média entre a suserania política e a condição de proprietário, mediante a denominação de dominus conferida ao senhor feudal. Herança conservada no espanhol e no português pelo título de DOM concedido a nobres, reis, imperadores. DOM vem de dominus. Observe-se, porém, que, na Roma antiga, era título do proprietário, daquele que detinha o dominium, não do dirigente político.

Dessa confusão resulta, por exemplo, no passado medievo, a advertência da Igreja aos príncipes de que eles “seriam protetores, mas não proprietários” do povo. Dela, porém, resulta também a identificação inicial do tesouro como um bem do monarca e sua progressiva distinção como bem do Estado e a concepção diferente que assume o fisco num e noutro caso.

Nesse quadro, é perceptível toda a estrutura cortesã que domina a política da era pré moderna (do século XV ao XVIII) e que mostra, nesse período, o fator intenso desempenhado pela micropolítica nos afazeres de Estado. Não só na troca de favores mediante recompensa em dinheiro, mas no papel secundário ou, no máximo equivalente às diferentes “moedas” de troca (parentesco, amizade, sexo etc.) usadas nas formas de nepotismo, da escolha dos protegidos ou favoritos, das amantes, das sinecuras etc.

Ora, nessa circunstância, uma distinção clara entre a ação política pública e privada era difícil de ser percebida ou traçada. Por exemplo, na França, a coroa estabelecia uma espécie de arrendamento fiscal, em que o tributo era imposto a uma determinada região conferida a arrendatários que eram, simultaneamente, financiadores privados do Estado e ocupantes de cargos dotados de poder impositivo.

Essa dificuldade atingia inclusive a corte papal, em que cardeais, bispos e secretários de estado eram escolhidos entre as grandes famílias romanas, que ostentavam grande poder e riqueza.

Nas sociedades pré modernas uma percepção crítica da corrupção (condenação da corrupção) aparecia quando as expectativas da clientela se frustravam. Entre um cliente e um patrono se estabelecia uma relação de fidelidade/lealdade que, de princípio, era tida como inegociável, isto é, não podia ser comprada. A percepção da corrupção aparecia, então, quando entrava o dinheiro como uma forma de dádiva (presente), o que acabava por monetizar as relações. Ou seja, o dinheiro corrompia porque tornava obsoletas as máximas fundamentais do clientelismo: lealdade e fidelidade não se compram. Pois, para a cultura paternalista, a mobilidade social não estava ligada ao dinheiro. Nessa sociedade, ainda pré capitalista do ponto de vista econômico no sentido de que o trabalho não era um objeto de troca no mercado, eram os estamentos sociais, divididos entre aqueles que cultivavam as terras, sem possuí-las, e os que as possuíam, sem cultivá-las, que estruturavam as relações econômicas (Tocqueville: Mémoirs sur le paupérisme, trad. para o inglês, Chicago, 1997, p. 43).

Diante disso, é possível perceber, de um lado, como e porque a micropolítica clientelística acabava por exercer um papel importante na organização do poder político (hierarquias, fidelidades, mas também produção de arquivos e registros: por exemplo, os notários), embora fosse muitas vezes um inibidor de uma burocracia eficiente e racional, portanto modernizadora. De outro, de que modo pôde surgir a chamada política econômica elisabethana (Elisabeth Iª), que responsabilizava as comunidades pela remuneração dos “pobres” entendidos como aqueles que ou não tinham meios de subsistência suficientes ou eram desempregados no sentido moderno da expressão. Essa política, que ficou mais conhecida como Poor Law, vigorou até 1832, quando o correspondente statute foi revogado sob a alegação de que favorecia a preguiça e inibia o desenvolvimento.

Esse sistema, conhecido em formas semelhantes em outras regiões européias, inibiu, na Inglaterra, a eclosão de uma revolução que, na França, porém, redundou na Revolução Francesa.

Explico rapidamente.

A monetarização do trabalho é reconhecida como um fator fundamental para o advento da sociedade de mercado, aquela sociedade que vai se desenvolver a partir de meados do Século XVIII e que culmina, politicamente, na Revolução Francesa. Na sociedade de mercado, a economia capitalista passa a ver no dinheiro o meio hegemônico de qualquer troca, neutralizando os objetos e os sujeitos da troca e pondo as relações micropolíticas sob suspeita.

Em consequência, nos últimos 200 anos, o favorecimento de parentes e agregados vai perdendo sua força cultural na determinação da estrutura social, substituída por uma nova mentalidade: a ação humana movida pelo ganho e pela acumulação, o que exige eficiência (Estado burocrático/racional somado à franca liberdade empresarial) e uma forte diferenciação funcional entre o público e o privado.

Nesse novo contexto, o exercício da micropolítica mediante as antigas formas de mecenato nepotista e clientelista torna-se símbolo de reacionarismo, conferindo à crítica à corrupção um sentido modernizador (para o que segue, na perspectiva historiográfica voltada ao mundo europeu, ver Jens Ivo Engels: Die Geschichte der Korruption – Von der Frühen Neuzeit bis ins 20.Jahrhundert, Frankfurt a/Main 2014). Mas com isso altera-se o ambiente político-social, pela generalização dos atores e a introdução de um ator novo: as massas (política de massas). Não obstante, nesse ambiente a micropolítica ganha novos contornos: os antigos mecanismos de oferta de benefícios, enquanto garantia de confiança e lealdade, são transportados para as políticas sociais em forma de instrumentos burocráticos para controle de massas (planejamento administrativo), monetizando-se e recompondo, em formas alternativas, a antiga relação paternalismo/clientelismo (ver as diferentes manifestações de caciquismo político, corrente, aliás, não só na Ibero-América, mas na Europa também).

A partir da Revolução Francesa introduzem-se, nesse sentido, alguns parâmetros importantes para o exercício do poder. Um deles está em uma mudança na estrutura temporal da política, cujo vetor se volta para o futuro, que passa a ter um papel significativo na formatação de políticas, impondo-se como escolha entre políticas alternativas, entre programas políticos ou mesmo entre ideologias, capazes de alterar, supostamente sempre para melhor, o status quo. Com isso aparece, já no século XIX, a conhecida divisão partidária entre conservadores e liberais, que marca a cultura política européia e nas Américas, seguida, na segunda metade daquele século, pela divisão entre direita e esquerda (aquela vista por socialistas e comunistas como reacionária e ela própria como progressista).

Com isso cresce, de um lado, o entendimento da política como uma “questão de consciência” de cada cidadão, trazendo como consequência uma crescente integração entre opinião pública e imprensa (opinião pública midiatizada) – o que favorecerá a “crítica à corrupção” em novo sentido – e, de outro, uma progressiva diferenciação entre administração e governo, parlamento e partido, com o surgimento de uma figura até então desconhecida: o político profissional, figura distinta do empresário, e que torna suspeita a confusão dos respectivos papeis.

Com isso o antigo clientelismo entra em crise como forma aceitável de exercício de micropolítica (ele é identificado com a perversão política do ancien regime), mas não desaparece inteiramente do mapa. E é desse modo que a corrupção e a crítica da corrupção ganham sua faceta moderna.

Ele não apenas dava e recebia propinas acidentalmente. Ele elaborou planos e sistemas de governança com o exato propósito de acumular propinas e presentes para si mesmo. Ele se rebaixou à imundície e à sujeira da especulação e da corrupção. Ele não era apenas um ladrão público, mas o cabeça de um sistema de ladroagem, o capitão geral de uma gangue. Com essas palavras Edmund Burke, filósofo, membro do Parlamento, descrevia um homem que por 13 anos (1772-85) fora o governador britânico de Bengala (Noonan, p. 392).

Mas o problema não estava propriamente ou tão somente nas nomeações e no exercício de funções executivas de Estado, mas no âmago mesmo da moderna democracia de sistema de partidos e eleições.

Nos começos de 1829, New York estabelecia um statute intitulado An Act to Preserve the Purity of Elections. O alvo era regulamentar as chamadas contributions, modo como se designavam pagamentos políticos no suporte de campanhas eleitorais. A dificuldade a enfrentar estava em distinguir contributions de bribes. Afinal, “contribuição de campanha” era mais um código capaz de encobrir um pagamento destinado a enriquecer um representante oficial para favorecer um ato oficial que beneficiaria o pagador.

Foi essa inerência do privado no público, estruturas ideologicamente diferenciadas, que obrigou a ação política, desde então, a cunhar um novo conceito de corrupção, ligado especialmente à distinção entre a sociedade civil (econômica) e sociedade política e correspondente à sutil confusão dos papeis: político/empresário.

Realço os dois fatores a ensejar a nova circunstância condicionadora da nova percepção da corrupção: de um lado, a industrialização e, com ela, o advento da economia de mercado, fundada no dinheiro como meio hegemônico de troca, capaz de igualar os agentes econômicos, neutralizados na condição de sujeitos: sujeitos de direitos, e equiparar todos os produtos, neutralizados na condição de utilidades, como objetos de interesse (bens de uso, serviços, o próprio consumo como objeto de troca e, afinal, o próprio dinheiro como objeto de si mesmo); enfim, com a industrialização, a noção de interesse (ganho, vantagem, lucro) se expande e atinge, assim, todas as relações econômicas. De outro lado, em paralelo, os próprios detentores de poder político, em qualquer escala, passam a disputar ativamente suas posições quer na sua conquista quer na sua manutenção, o que deve ser assegurado por meios capazes de dar sustentabilidade às campanhas eleitorais, tornando opaca a distinção entre interesse político e econômico: a própria política na relação empresário/representante parlamentar torna-se opaca.

Essa nova situação recria a micropolítica e estatui um clientelismo de nova ordem, como observamos na mudança ocorrida no Brasil por volta da Revolução de 30: com o progressivo enfraquecimento do coronelismo, a ascensão em paralelo das diferentes formas de peleguismo.

Nesse quadro, um novo conceito de corrupção acaba, assim, por ser instrumentalizado como uma recorrente bandeira política: combate à corrupção no sentido das diferentes manifestações de clientelismo associado a emprego, trabalho remunerado e a vantagens empresariais associadas à influência de toda espécie. Não é preciso ir longe para ver nesse combate um lema permanente de política partidária no passado recente e no presente, tanto de partidos à esquerda como à direita, tanto de movimentos autoritários (Brasil em 1964, por exemplo), como de restaurações democráticas (no chamado “udenismo” brasileiro, após a ditadura Vargas).

Corrupção não perde as tintas morais que sempre a acompanham, mas toma, nessa linha, o sentido de um inibidor do progresso, mediante o que adquire sua exaustiva conotação com escândalo.

Escândalos incorporam-se à cena política, pela revelação de segredos inconfessáveis, detalhes picantes de políticos proeminentes, figuras obscuras ligadas a empresários. Nessa nova dinâmica, corrupção adquire uma nova lógica: se no passado era tema circunscrito a elites sociais, alastra-se a temática para muito além das limitações de classe. Pois ao adquirir suas bases na política de conscientização eleitoral das massas, o conceito de corrupção fortalece o papel da mídia, mormente da mídia de massas, do que decorre uma nova exigência constitutiva para o exercício político: a transparência como antídoto contra um desfalecido interesse/segredo de Estado.

Com isso se fortalecem, de um lado, algumas concepções difusas, mas que, paradoxalmente, produzem eficiência política: nos partidos de esquerda, as teorias da conspiração, com a denúncia de esquemas ocultos ligados ao modo de produção capitalista, como base da corrupção inerente ao sistema, mas também suas variantes de direita, com suas denúncias racistas, especialmente antissemitas no nazismo e no fascismo do Século XX ou, mais recentemente, as denúncias de subversão, como aconteceu nas ditaduras latino-americanas na era da guerra fria. Tudo isso faz da ideologia um componente importante do moderno conceito de corrupção.

Por outro lado, o papel da mídia de massas envolve uma espécie de dilema autorreflexivo e paradoxal. De uma parte, a mídia provoca uma nova diferenciação: a exigência de uma mídia transparente, politicamente independente e economicamente autossustentável, fundamento da opinião pública, distinta, ela própria, dos escândalos que constituem sua contribuição à transparência. De outra parte, porém, a escandalização da corrupção repousa em valores e valorações geradores de indignação popular, que são, assim, maximizados pela própria mídia. Daí o dilema: nos regimes democráticos, a denúncia da corrupção é uma arma política que escandaliza quando aponta para personagens e esquemas que estão dentro dos sistemas de decisão vigentes, mas fora da sua oficialidade, o que torna a atuação da mídia um jogo de realimentação sem precedentes de disputas pro e contra, sob o título de liberdade de imprensa.

Lembre-se, para realçar esse papel da mídia democrática, que, nos regimes autoritários, essa disputa é encarada como corrosiva, devendo escândalos ser eliminados de antemão em processos de confissão e auto-incriminação, ou divulgados ou abafados na medida em que servem à manutenção do regime. Donde o papel da mídia estatizada de reforçar o status quo, como se via nas repúblicas socialistas do leste europeu ou no regime maoísta na China continental.

Por tudo isso, em breve síntese, pode-se dizer que o conceito moderno de corrupção carrega as seguintes qualificações estruturais:

a. é uma técnica de poder intimamente ligada à crítica e à denúncia do abuso de papeis públicos para uso privado, cujo paradigma histórico se constrói no início do Século XIX;

b. surge, assim, de uma condenação da micropolítica (relações pessoais de amizade, favoritismo, pequenas lealdades), vigente até a Revolução Francesa e de uma progressiva diferenciação entre o público e o privado que alcança a concepção de poder político – a tripartição de poderes – e se instala no interior dos sistemas jurídicos: direito público e privado, interesse público e autonomia privada, autonomia do direito processual e neutralização política do Poder Judiciário etc;

c. é associado à noção de progresso, donde as ideologias do seu caráter pernicioso ao desenvolvimento, dando azo a uma conhecida e criticada distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos;

d. produz uma dinâmica política reformista, voltada para as massas, que alimenta os embates eleitorais, mas que, de modo paradoxal, se instala dentro dela; nesse sentido está presente em todos os grandes movimentos ideológicos de luta pelo poder do século XX, quer de direita quer de esquerda: é palavra de ordem chave nas lutas pela pureza das democracias parlamentares, mas aparece também nos expurgos que se observam na China ou na Coréia do Norte;

e. alimenta-se do escândalo que ultrapassa a estrita esfera das elites e ganha repercussão generalizada, donde o papel da mídia e da opinião pública massificadas;

f. torna-se, em nossos dias, no grande mal político da civilização, capaz de atingir todas as esferas de interesse público (até as exigências ecológicas, como se vê nas ações da Transparency International), alimentando-se de uma diferenciação entre complexidade e transparência que chega até as grandes corporações privadas com seus programas de compliance.

Entende-se, assim, de parte da literatura científica, uma tentativa de distanciar-se do fenômeno, naturalizando-o moralmente, de certa forma, como fazem os estudos antropológicos na linha de Marcel Mauss (Essai sur le don), ligando-o às diferentes manifestações de reciprocidade estrutural, cuja complexidade é uma variável que vai das observações em comportamentos de sociedades primitivas a uma generalização explicativa mesmo em sociedades desenvolvidas. Vejam-se, nesse sentido (Noonan, p. 543 e ss.), as observações de Georg Simmel, em seu Philosophie des Geldes, ao final do século XIX (o livro é de 1900; ver edição Suhrkamp, 1989), em que o suborno e a propina aparecem como conceitos universais, intemporalmente aplicáveis a qualquer cultura. De modo semelhante, Robert Merton, em 1957, em seu Social Theory and Social Structure, parte da função chave do chefe na organização, centralização e manutenção de fragmentos do poder, com isso satisfazendo necessidades não adequadamente satisfeitas pelas estruturas juridicamente dispostas e culturalmente aprovadas pela sociedade. O que significa que são as deficiências estruturais da estrutura oficial que geram uma estrutura alternativa (inoficial). Daí distinções como corrupção integrativa e desintegrativa (James Wilson: Corruption Is Not Always Scanalous, New York Times Magazine, 1968), sendo aquela em benefício da governança política como um todo e essa, a gerada pela autoridade em benefício próprio e privado.

Interessante, nesse sentido, um testemunho que recebi de outro amigo alemão, o advogado de empresa Albrecht Schaefer, que assim principia seu relato sobre a corrupção no mundo empresarial:

Corrupção é a Realpolitik da Buseness Administration. (O conceito de Realpolitik foi cunhado como reação à Revolução fracassada de 1848/49 e globalizado por Henry Kissinger para a política externa).

Realpolitik significa o sacrifício de interesses permanentes e de longo prazo em favor de vantagens no curto prazo. Realpolitik é caracterizada mediante deficits normativos.

Sobre o conceito de corrupção deve-se dizer que, em todos os Estados, corrupção é submetida a penas. As leis criminais estatuem, cada qual, o fato-tipo da corrupção. Mesmo quando, a propósito, possam existir diferenças, o conceito de corrupção é de tal modo suficientemente estabelecido que com ele, pode-se trabalhar em qualquer parte do mundo com tranquilidade.

Por que corrupção é Realpolitk da Business Administration?

As raízes para uma corrupção sistemática de parte de empresários estão em finalidades acima de ambições pessoais e, com isso, em falsos incentivos para sucessos de curto prazo.

Para esclarecer: quando no orçamento para o próximo ano fiscal da empresa está submetido a um aumento de faturamento de 30%, mas o mercado – que um vendedor experimentado conhece muito bem – permite apenas 5%, então para a meta proposta os 25% faltantes só poderão ser alcançados mediante medidas anticoncorrenciais, dentre as quais se conta em larga escala a corrupção. Quando, ademais, ao alcance dessa meta se conecta um bônus anual concedido ao funcionário, rompem-se então todas as comportas morais e jurídicas.

As consequências da sistemática corrupção são, assim, no fato que a concorrência submete-se a uma atrativa formatação dos preços como se se tratasse de uma inovação técnica. Isso leva a que um empresário, mediante contínua corrupção deixa-se engraxar fora do mercado. Realpolitik empresarial estabelece-se sobre uma espécie de homenagem ao status quo e restringe as mudanças na formação dos preços mediante concorrência, bem como as inovações e melhoramentos técnicos. Como, porém, essas forças de mercado são mais fortes que uma Realpolitik míope, a perda em participação de mercado e mesmo a exclusão do mercado são previsíveis.

Dado que o Estado e o maior cliente da economia, ele acaba por ser o parceiro nato para a corrupção de parte dos fornecedores. O fato de que, com isso, ocorre um dano à sociedade, é algo que não precisa de maiores explicações.

Não se pode dizer, porém, que o conceito moderno de corrupção seja totalmente funcional e, nessa medida, amoral ou meramente convencional. Expressões como propina e corrupção não aparecem na obra de Freud. Mas há freudianos que delas tratam como formas de psiconeuroses, uma espécie de mecanismo de compromisso do Ego consigo mesmo com o objetivo de obter uma simultânea gratificação para os impulsos proibidos do ID e para as exigências do SUPER-EGO (The Criminal, the Judge and the Public, Franz Alexander – psicanalista – e Hugo Staub – advogado – (tradução para o inglês, New York, 1931).

Por sua vez existem trabalhos, por exemplo, na área econômica, que se recusam a extirpar da ciência a percepção moral da corrupção. Susan Rose-Ackerman (Corruption: A Study in Political Economy, 1978), economista de Yale, ao analisar riscos e benefício da corrupção para um legislador hipotético, concluía que, caso se deseje entender o funcionamento da democracia, não será possível acompanhar a inclinação de economistas convencionalistas em ignorar constrangimentos morais sobre o comportamento egoísta/interesseiro (self-seeking).

O que induz a um momento de reflexão. A gorjeta que se dá ao garçom não é vista como propina. Um pouco diferente é o “auxílio” que se dá ao oficial de justiça para que dê alguma preferência no esforço de cumprir uma citação. Mas ambos são ou assumidos ou suportados socialmente. Talvez se deva notar – positivamente -, num caso como no outro, uma espécie de ausência de sentimento de obrigação quer de contribuir quer de retribuir, uma forma de comportamento voluntário e espontâneo. Todavia, importante, mais no primeiro que no segundo caso, é a transparência. E aí começa a diferença. Nesse sentido, a propina é sigilosa e interessada, gerando alguma forma de retribuição na qual, em uma escala crescente, o propósito de atender satisfatoriamente a uma reciprocidade é mais forte, criando, porém, no agente uma espécie de conflito de deveres.

Nessa escala, porém, a ausência de linhas divisórias claras é inegável. É o que se vê na extensa lista de expressões, formulações e reformulações existente no vocabulário brasileiro: cervejinha, molhar a mão, lubrificar, conto-do-vigário, jeitinho, mamata, negociata, por fora, taxa de urgência, gorjeta, rolo, esquema, propina, falcatrua, peita, caixa 2 (essa listagem, salvo caixa 2, se encontra, em português com tradução para o alemão, em Stierle/Siller: Praxishandbuch der Korruptionskontrolling, Berlin, 2015, p. 97). Em outras línguas não é diferente, como se vê pelo uso de expressões como lobby, advising (consultoria), Verrechnungskonto (conta de compensação), couvert etc. Curiosas formulações aparecem, no entanto, quando um corruptor ativo inesperadamente se confronta com um incorruptível: o senhor não me entendeu bem, foi um mal-entendido, o que é acompanhado de uma mímica própria (sorrisos disfarçados, surpresa, soft indignation, seguidos de declarações como eu jamais proporia algo assim etc.).

Existe, nesses termos, uma retórica da corrupção que aparece quando ela não é cinicamente escancarada. Exemplo típico são as formas de “recomendação”: da parte do agente ativo, gostaria de trazer as saudações cordiais de fulano, que muito o recomendou para tratar desse negócio com o senhor em total confiança ou haveria, em seu âmbito de discricionariedade, um modo de decidir a questão de maneira favorável ao meu cliente ou isso me seria de imenso valor, e da parte do agente passivo, bem, isso não é comum nem se pode dizer que faça parte das minhas competências ou eu poderia até fazer, mas o risco é muito grande, o senhor entende, não é?

No último ato do delito, porém, a retórica é a retórica do silêncio. As pesquisas a respeito mostram que os participantes de atos de corrupção mostram uma tendência ostensiva em justificar e neutralizar os comportamentos. Costuma-se rejeitar a responsabilidade pessoal, o conteúdo imoral do comportamento, bem como os danos daí resultantes (Stierle/Siller, p. 95). Ocorre uma espécie de “racionalização” da corrupção, mediante manifestação de intenções “positivas”, como o objetivo da lei não pode ser impedir o atendimento eficiente das necessidades reais ou faz parte da concorrência ou todo mundo faz ou em outros países não é diferente ou existem coisas piores ou é preciso ver que há interesses maiores da população em jogo etc.

Ainda que pareça estranho, as pesquisas mostram que a integridade é uma chave para entender a corrupção. Integridade é um conjunto de propriedades e valores positivos, como consciência moral, confiabilidade, prontidão para agir, consciência de dever, retidão. Os comportamentos corruptos se mostram como variantes desviantes desse conjunto. Esses desvios apontam para certas circunstâncias que compõem o chamado “Fraud Diamond” (o diamante da fraude): a pressão ou motivo como primeiro fator, que poder ser a existência de problemas financeiros pessoais, mas também motivos resultantes da relação remuneração/sobrecarga de exigências, percepção de uma injustiça social na aquisição de bens valorados positivamente pela sociedade etc. O segundo fator está na oportunidade: o conhecimento de falhas no sistema de controle, o conhecimento ou murmúrios sobre comportamentos corruptos de outros, certa confiança de que o ato receberá a aprovação superior etc. O terceiro fator está na justificação interna dos atos: o agente precisa justificar-se a si mesmo para que ele esteja ou continue integrado socialmente e disponha de um bom status social. O diamante da fraude está, por fim, na competência (esperteza) do agente na execução do ato corrupto.

Em suma, há na (dialética) corrupção e crítica (combate) à corrupção um dilema moral que repousa em racionalizações divergentes: no interesse de empreendimentos políticos, econômicos ou financeiros, a corrupção deve ser banida, pois, no limite, ela conduz a uma disfunção do sistema social. Porém, empreendimentos íntegros, incorruptíveis mostram-se, em curto e médio prazo, ineficientes quando se olha para a sociedade de mercado em conta do valor interesse.

O que aponta, afinal, para um paradoxo, próprio do sistema da economia de mercado (assinalado por Polanyi, The Great Transformation, trad. alemã, Frankfurt a/Main, 1978, p. 194): a pretensão de liberdade econômica, livre de influências estatais é fruto, historicamente, de massivas intervenções do Estado, que alcançam a criação de um caminho livre para as transações mediante medidas protecionistas, até com o estabelecimento de condicionamentos jurídicos para o exercício da liberdade de mercado.

Ou seja, a economia de mercado, supostamente um sistema autorregulado, gera uma burocracia (privada e estatal) em que proliferam as instâncias administrativas, todas com certo poder discricionário, com certo grau de opacidade (não transparência) e alta possibilidade de manipulação de informações. E aí a corrupção que parece acompanhar o poder como a sombra acompanha o corpo (Lord Acton: Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely).

Trata-se, de um lado, da corrupção jurídica, tipificada (prevaricação, malversação, fraude, corrupção ativa e passiva). De outro, a chamada corrupção sistêmica que se produz quando as incorreções se tornam regra e os paradigmas traçados pela lei viram exceções. É o caso de condutas tão institucionalizadas (no sentido sociológico da palavra) que raramente se castiga o corrupto, enquanto até se protege o comportamento indevido.

Nesses termos, na corrupção sistêmica a administração adquire um código oculto, que valida e alimenta as violações do código expresso, a tal ponto que os que não compartilham das práticas venais são intimidados e obrigados a guardar silêncio. Esse código oculto gera, por sua vez, dois tipos de corrupção: a “de cima para baixo” e a “de baixo para cima” (Jorge Malem Seña: La corrupción, Barcelona, 2002, p. 56, citando Susan-Rose Ackerman).

Na primeira, quem executa os atos de corrupção são burocratas de maior categoria e a extorsão é centralizada e monopolizada, bem como a repartição ou não dos ganhos com escalões inferiores, que serve, quando usada, para comprar cumplicidade e gerar estabilização do sistema (Susan-Rose Ackerman anota que esse tipo de corrupção é muito comum nos pagamentos a políticos de alto escalão e efetuados na indústria do petróleo mediante funcionários até bem pagos). Na segunda (de baixo para cima) são os funcionários de baixo escalão que planificam e executam, repartindo ganhos com os de escalão superior que, assim, acobertam, garantindo silêncio, estabilidade e impunidade. Os custos do primeiro tipo são mais visíveis e previsíveis, enquanto os do segundo são mais difusos e de contabilidade imprecisa.

E nesse paradoxo reflete-se, afinal, o paradoxo da investigação da corrupção. É o paradoxo percebido em instrumentos como o da delação premiada (e da leniência de empresas). A delação premiada repousa, de um lado, na violação de lealdades morais, próprias do micropoder (traição) e, de outro, na plausibilidade de negociação monetizada de valores fundamentais como a própria liberdade (cálculo de sobrevivência). Aqui, no choque entre éticas de convicção e de finalidade, o dinheiro volta a desempenhar um papel fundamental de neutralização moral, tornando a delação algo que se mede pelo preço. Daí o jogo legal de primeiro, segundo, terceiro delator, ou da leniência, leniência plus, nesse caso com valores percentuais até estipulados normativamente em lei.

É, de novo, a corrupção moderna, agora como cálculo e objeto de negociação. O que explica o aparecimento das chamadas teorias revisionistas (por exemplo, Samuel Huntington: Modernization and Corruption, em Political Corruption. A Handbook, cit. p. 381), caso em que a corrupção apareceria como um remédio contra o excesso de burocracia, impeditivo do desenvolvimento econômico: por exemplo, pagamentos por fora para lubrificar a máquina… O que não é exatamente verdade, quando se pensa no efeito inverso: criar dificuldades para vender facilidades.

O que nos leva a pensar na direção inversa. Afinal, como diz John Dewey, em uma sociedade dominada pela cultura da corrupção, a educação de valores efetiva, muito além das declarações altissonantes contra a corrupção, tenderá a reproduzi-la.

E aqui a observação histórica nos surpreende, ao mostrar que uma educação cívica, baseada em valores eticamente incontestáveis, quando efetuada em um marco institucional e social inadequado, governado por políticas e políticos corruptos, pode entrar em colapso e fracassar. Ou, como recordava Jaspers, referindo-se à Alemanha: “na época do Império (Kaiserstaat), quisemos formar bons súditos e tivemos a República de Weimar; na República de Weimar quisemos formar bons democratas e tivemos o nacional-socialismo. Durante o nacional-socialismo quis-se formar nazistas convictos e tivemos a República Federal… E agora, o que?

Volto ao texto recebido de meu amigo alemão, advogado de empresa.

Como a corrupção pode ser mais bem combatida?

Ao lado das tipificações penais contra o suborno, que são direcionadas contra as pessoas físicas, um direito penal voltado para as pessoas jurídicas é um eficiente complemento. Certamente não se pode condenar uma pessoa jurídica à prisão, mas ela pode ser sensivelmente punida, na medida em que os faturamentos corruptos sejam resgatados.

Mas o Direito Penal, sozinho, não consegue combater a corrupção, como mostra, aliás, a história econômica.

Um importante aliado contra a corrupção pode ser o mercado financeiro.

Uma administração econômica legal e sustentável deve estar submetida ao juízo centralizado dos investidores. Para isso são necessários os auditores independentes, as agências de rating e as autoridades financeiras.

A experiência mostra que a administração empresarial, que precisa financiar-se no mercado de capitais [portanto, com domínio de empresas de capital aberto], nada mais teme que do que o mau juízo de investidores financeiros. Grandes investidores comunitários, como fundos de pensão, têm, necessariamente, interesses permanentes e de longo prazo. Esse perfil tem, porém, de ser reforçado.

Muito ajuda na luta contra a corrupção uma imprensa livre, com jornalistas especializados em questões econômicas. Em uma democracia que funciona isso é uma obviedade.

Mas onde fica a transparência nas empresas?

Na Alemanha, país em que a cogestão empresarial, a participação do trabalhador na direção empresarial, mais se desenvolveu, ela fracassa no combate à corrupção. Estruturas empresariais autocráticas, em razão do que empregados dotados de senso crítico acabam tão desqualificados como um pau de galinheiro, não resolvem o problema e devem ser criticadas. O que é, especialmente, uma tarefa para a corporate governance e para o jornalismo econômico.

Que fazer então?

A Indonésia há alguns anos fez uma proposta interessante. Funcionários públicos corruptos deveriam ser castrados. A fundamentação para essa pena corporal seria: o que se objetiva é impedir que funcionários públicos corruptos se multipliquem!

E ele conclui:

Espero, com isso, provocar os debates e lamento que deles não possa participar.

Está aberto o nosso seminário da Feiticeira!

Obrigado e bom jantar.

Tercio Sampaio Ferraz Junior


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