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Seminário da Feiticeira

SEMINÁRIO DA FEITICEIRA

Delação premiada: sanção premial ao arrependimento? – Eduardo Muylaert

DELAÇÃO PREMIADA

Seminário da Feiticeira

Seminário da Feiticeira

01/03/2016

Por Eduardo Muylaert

“Si j’avais été malhonnête, j’aurais eu mille occasions de m’en mettre plein les poches…  Je sais que tout le monde me trouve ridicule, mais à mes yeux l’honneur ne tolère pas le vol.”

Amélie Nothomb, Le Crime du Comte Neville, Albin Michel, 2015, pg. 44.

“Entrar no poder no Brasil é se garantir de ser servido pela sociedade. Mais: é estar protegido por uma rede legal que até hoje esquece os crimes, centrando-se muito mais no processo legal. A legislação é mais usada como um complicado código do que como aberto guia de comportamento”. 

Roberto DaMatta, O Estado, 21/10/ 2015.

délation [del?sj??] n. f.

ÉTYM. 1549; lat. delatio, de delatus, p. p. de deferre.

“Dénonciation inspirée par des motifs méprisables”.

Le Grand Robert

“Só delação ou STF livram detidos da Operação Lava Jato”

Manchete da Folha/SP, 18/10/2015.

Nós, brasileiros, somos mais afeitos ao inho do que ao ão. O diminutivo, na linguagem familiar portuguesa, tem uso tanto afetivo (filhinho, amorzinho), quanto diminutivo (dinheirinho, minutinho). O sufixo diminuidor acaba sendo ainda mais usual em tempos de crise, ao menos para as pessoas comuns, obrigadas a conter despesas.

Hoje nos vemos todos, porém, submersos numa profusão de aumentativos (carrão, milhão, bilhão), muito associados a palavras que, de sua origem latina e por seu sufixo ão, soam retumbantes: corrupção, confissão, delação, ladrão, prisão, malhação.

Com a operação Lava Jato, corrupção e delação se tornaram trending topics, a nova preferência nacional. Torço para esse texto não esteja logo superado: todos os dias ansiamos por mais um emocionante capítulo, temos mocinhos e vilões e, claro, queremos adivinhar o final da novela. Será que o bem vai vencer? Para tanto, será preciso dar um jeitinho (mais um diminutivo), forçar a barra, sacrificar (só um pouquinho) princípios constitucionais e o direito de defesa?  Ou, mais uma vez, tanto barulho por nada, tudo pode dar em pizza?

A justiça criminal brasileira, em geral tida por ineficaz, acabou por popularizar esses palavras em ão, embora nem sempre haja precisão, exatidão ou correção nos conceitos manejados. Os meios de comunicação e a discussão, mesmo de pessoas ilustres, resvalam com frequência para um maniqueísmo não só inútil como prejudicial à inteligência do tema. Os próprios ministros dos tribunais superiores, impacientes de aguardar a chegada dos inevitáveis recursos, acabam deitando falação, que a imprensa transforma em verdadeiros exercícios de futurologia.

A origem latina mostra que tanto corrupção (corruptio) como delação (delatio) não são fenômenos recentes, nem próprios aos países tropicais.  Nossa humanidade é confrontada, desde as cavernas, com as questões da proibição, da quebra da regra, da punição e da tentativa de escapar à punição. E isso muito antes da invenção dos criminalistas.

Quem não lembra da narrativa do Gênesis, segundo a qual Adão e Eva, após o pecado, se percebem descobertos: Então abriram-se os olhos de ambos e viram que estavam nus (Gên. 3,7). Pegos em falta, e diante da iminência do castigo, logo recorreram à delação, que, além de deselegante, não foi premiada, ou seja, não trouxe qualquer benefício concreto:  Disse o homem: Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi.  O Senhor Deus perguntou então à mulher: Que foi que você fez? Respondeu a mulher: A serpente me enganou, e eu comi. Não adiantou nada.

À diferença do criador, a igreja católica administra um sistema de perdão dos erros, ditos pecados, através do mecanismo da confissão. A confessio, palavra romana do primeiro milênio, consiste numa declaração das próprias faltas. Hoje ela desfruta de uma espécie de segredo de justiça divina: é rigorosamente confidencial e a quebra de sigilo pode ser punida com a mais grave das penas, a excomunhão.

A absolvição, segundo o catecismo, pressupõe sinceridade, contrição e arrependimento, que deveria se traduzir em firme propósito de se abster do pecado. A fórmula não bastou para afastar a crítica do perspicaz Molière, implacável inimigo da hipocrisia e dos tartufos: “Apenas mais vinte ou trinta anos desta vida que você chama dissipada e, depois, o arrependimento. E a absolvição”.

Na justiça, a confissão, em que o acusado assume voluntariamente a culpa, é tratada com simpatia, pois pressupõe arrependimento e facilita a apuração do crime, embora não exima de culpa. É apenas circunstância atenuante, como o é também o fato de ter imediatamente procurado minorar as consequências do crime, ou o de ter reparado o dano (art. 65, CP).  Seu valor foi realçado na recentíssima súmula 545 do STJ: Quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante.

Embora dificulte em muito a tarefa da defesa, a confissão não tem valor em si, deve sempre ser cotejada com outras provas. E nenhum valor terá se obtida por meios ilícitos, como tortura, ameaça, hipnose, soro da verdade ou aparatos do gênero detector de mentiras.

A CORRUPÇÃO POSTA A NU

Em função do Mensalão, num primeiro tempo, e especialmente das atuais investigações e ações penais da operação Lava Jato, muitos episódios de corrupção, muitos mesmo, até então escondidos ou tolerados, foram postos a nu. Nesse quadro, tal como Adão e Eva depois do pecado original, os acusados, descobertos, vêm na delação uma oportunidade para se exculpar. Visam um benefício, pois mecanismos jurídicos contemporâneos passaram a permitir que, traindo seus comparsas e colaborando com a investigação, de maneira relevante, os autores de crimes, mesmo gravíssimos, possam obter perdão ou, ao menos, redução de sua pena.

Quando o Ministro Nelson Jobim criou a Lei de Lavagem de Dinheiro, em 1998, encontrou resistência por parte os advogados, mas hoje é inegável que se trata de arma formidável no combate à criminalidade. Também os instrumentos contemporâneos de repressão ao crime organizado causaram estranheza, a princípio, por fugirem aos parâmetros tradicionais em que fomos formados e por dificultarem em muito a tarefa da defesa. Mas estamos nos acostumando a eles.

A questão da impunidade é um dos pontos fracos da justiça brasileira, e já era escancarada por Nelson Hungria nos anos 50: “De quando em vez, rebenta um escândalo, em que se ceva o sensacionalismo jornalístico. A opinião pública vozeia indignada e Themis ensaia o seu  gládio; mas os processos penais,  iniciados  com estrépito, resultam,  as mais das vezes, num  completo fracasso, quando não na iniquidade da condenação de uma meia dúzia de intermediários deixados à sua própria sorte. São raras as moscas que caem na teia de Aracne. O ‘estado-maior’ da corrupção quase sempre fica resguardado” (Comentários,1959).

É também verdade que, em contrapartida, nosso sistema penitenciário é totalmente precário e injusto, motivo de vergonha.  Como falar em justiça quando jogar alguém nos nossos calabouços parece a maior das iniquidades?

Parece contemporânea a observação de Maurice Garçon, transcrita por Hungria: “Quando a corrupção se tornou tão pública, e os fatos tão notórios, que é preciso investigar e processar, as repercussões que acarreta a repressão às vezes colocam o próprio Governo em perigo”.

Hungria lembra, a propósito, numa de suas mais emblemáticas lições, que “tanto é funcionário público o presidente da República quanto o estafeta de Vila de Confins, tanto o senador ou deputado federal quanto o vereador do mais humilde Município, tanto o presidente da Suprema Corte quanto o mais bisonho juiz de paz da interlândia” (Comentários v. 9, 1959, p. 400-402). Por mais forte razão, também os presidentes do Senado e da Câmara, acrescentamos exemplificativamente.

A questão, evidentemente, não é só brasileira. Numa perspectiva europeia e otimista, Jacques Rancière conclui em obra atual que “A Administração não é corrompida, exceto na questão dos contratos públicos, em que ela se confunde com os interesses dos partidos dominantes.”(O Ódio à Democracia, Boitempo, 2014, pág. 94).

Deonísio da Silva já anotava no seu “De onde vêm as palavras”, que no Brasil o vocábulo corrupção serve também para designar “atos ilícitos, praticados sobretudo por políticos, os corrompidos, e empresários, os corruptores. É tradição brasileira a impunidade de uns e outros, com uma ou outra exceção”. (Lexikon, 2014, e nas edições anteriores: há muito tempo, portanto).

Tentando vencer essa clássica disparidade entre o que diz a lei e o que ocorre na prática, a operação Lava Jato foi montada confessadamente a partir da experiência italiana de combate à Máfia, dita Mani Pulliti.

Na verdade, a legislação brasileira vem sendo modificada de maneira drástica há alguns anos, especialmente para combater o crime organizado, o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Apareceram, assim, novos instrumentos processuais que sempre despertam controvérsia.

Entre as inovações que se tornaram corriqueiras, podemos citar a quebra de sigilo, fiscal, bancário, telemático, telefônico e ambiental; as buscas e apreensões, a ação controlada, a cooperação internacional e, especialmente, o uso da delação premiada, que tem sido verdadeira chave da caixa de pandora. Foi com esse ferramental que se chegou a desvendar episódios de corrupção em grandes contratos envolvendo empresas públicas, além de membros do governo, do parlamento e políticos de todo gênero e partido.

ELOGIO DA DELAÇÃO

Em 1973, em pleno regime militar, Chico Buarque e Ruy Guerra escreveram uma peça polêmica: Calabar, ou, O Elogio da Traição. O papel de Domingos Fernandes Calabar é revisto no episódio do século XVII em que ele se alia aos holandeses invasores contra a coroa portuguesa. Tratava-se, evidentemente, de uma metáfora, tanto que a peça foi censurada na véspera da estreia.

Elogio aqui tem o sentido do que Erasmo dedicou à loucura, ou seja, uma visão provocativa, bem espelhada na fala do personagem Mathias de Albuquerque: “Terra engraçada, esta. Em nenhuma outra parte, verás tantos sorrisos. Tantos sorrisos e tantas trapaças. Muito engraçada, esta guerra. Tantas raças, tantos idiomas, mas só se entendem claramente as palavras da traição. ”

Por mais que haja tentativas de revisão, a história é cruel com os traidores, os dedos-duros, os indicadores, os alcaguetes, dos quais o mais famoso é Joaquim Silvério dos Reis, o vilão da Inconfidência.

Mais severa é a condenação da delação nos movimentos de resistência contra as ditaduras. Recentemente o mais execrado dos traidores da esquerda, o Cabo Anselmo, veio ao Roda Viva para tentar se explicar na televisão, mas exibiu uma triste figura. Alguns historiadores tentaram reabilitar o Judas, o apóstolo que teria traído Cristo por trinta dinheiros, mas ele continua sendo malhado no Brasil, sempre travestido em políticos objeto da ojeriza popular.

Stanislaw Ponte Preta, o alter ego do jornalista Sérgio Porto, entre 1964 e o enfarte que o levou em 1968, pouco antes do AI5, registrou que “a ‘redentora’, entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela do dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo”  (Febeapá, pág. 25). Seu livro de 1964, Garoto Linha-Dura, começa com o caso de um menino que, tendo quebrado com a bola a janela de casa, põe a culpa no amigo: “Papai, esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunte nada a ele não. Quando ele vier atender à porta, o senhor vai logo tacando a mão nele”.

Com a volta da democracia, a partir de 1985, e especialmente com a Constituição de 1988, recomeçou uma era de esperança em termos de confiança no país e em suas instituições.

Os episódios do mensalão, primeiro, e da Petrobras, depois, ao tirarem a sujeira de baixo dos tapetes dos gabinetes, e desvendarem mecanismos perversos da roubalheira oficial, situam-se no âmago da crise institucional e política cujo desfecho é difícil de prever.

Nesse quadro, o instrumento da delação premiada passou a ocupar um lugar central nas investigações, não sem questionamentos quanto à sua eficácia e validade.

A delação traz implícita a ideia de traição, de contornos insofismavelmente negativos, tanto que a própria presidente da república, numa aparente confusão, chegou a declarar em Nova York:   “Eu não respeito delator. Até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é que é. Tentaram me transformar em uma delatora” (O Estado, 29/06/2015).

DELAÇÃO OU COLABORAÇÃO PREMIADA

Tecnicamente, a delação premiada é uma forma de colaboração com a justiça, em que o delator, visando a obtenção de benefícios, presta informações a respeito dos outros autores do crime, da localização da vítima ou, ainda, que possam ajudar a recuperar o produto do crime.

Os benefícios da delação são previstos em várias leis, mas especialmente na Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013, que “define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado”.

O juiz poderá conceder o perdão judicial ao delator, reduzir em até 2/3 sua pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos, desde que a colaboração produza os resultados esperados.

É pressuposto da delação, explicitado na lei, que ela deve ser efetiva e voluntária.  A lei assegura ao colaborador, em tese, medidas de proteção como a preservação de seus dados, separação física dos demais réus e, até anonimato: “não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito”.

A proteção é indispensável em inúmeros casos, embora seja bem diferente o perigo que corre o desgarrado da máfia ou do PCC do que um doleiro ou diretor de empresa que resolve abrir o jogo. O escritor Roberto Saviano, mesmo não sendo delator, deixou de vir à Flip de 2015, por se ver ameaçado pela máfia. Trata-se apenas de um repórter que estudou e descreveu o crime organizado na Itália, no seu Gomorra (Bertrand Brasil, 2008). Até Salman Rushdie, jurado de morte por seus Versos Satânicos, viera tranquilamente à Flip de 2010.

A ideia de arrependimento talvez decorra de que, na Itália, prevaleceu a denominação pentiti, criada na imprensa nos anos 70, para designar os “arrependidos” que se desvinculavam das organizações criminosas e se tornavam colaboradores, com risco das próprias vidas. Também lá, os programas de proteção da testemunha e de sua família não inspiram confiança (ainda mais em período de falta de verbas).

Quando o sistema foi alterado em 2001 (Legge 45/2001), o então procurador de Palermo, que combatia a Cosa Nostra, chegou a declarar: “Se eu fosse um mafioso, não me arrependeria”. (Corriere della Sera, 18/03/2001). Apesar disso, Manuel Pasta, que abandonou o clã Lo Piccolo em 2009, quando faltavam sete matérias para se formar em direito, obteve nova identidade, e conseguiu, em 2013, a láurea com uma robusta tese, justamente sobre o pentitismo,

VOLUNTARIEDADE E EFETIVIDADE

O que a lei quis oferecer ao colaborador foi um benefício de médio ou longo prazo, a ser alcançado no curso ou ao final da ação penal. A ideia é de que sua opção seja livre, evitando a longa pena de prisão.

Essa perspectiva, de alguma forma, abriu uma exceção aos princípios, até então considerados quase sagrados, da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública. Aprendemos na faculdade e em todos os manuais e tratados que o ministério público é obrigado a oferecer denúncia sempre que convencido da existência de crime e de indícios de autoria, não podendo desistir da ação penal. Por outro lado, o direito brasileiro sequer impõe ao réu a obrigação de dizer a verdade.

Costumávamos estranhar, como extravagantes, as histórias sobre o direito norte-americano, em que o réu é obrigado a dizer a verdade, sob a grave pena de perjúrio, e em que a ação penal é passível da pleabargain, sistema no qual o réu reconhece a culpa em troca de redução da penalidade cabível. Mesmo lá, muitos questionam o sistema, ou por pouco severo, ou por muito, reduzindo as possibilidades de defesa. Certo é que a grande maioria dos casos criminais se resolvem por essa espécie de contrato entre promotoria e defesa, desobstruindo a justiça.

Já os acordos de cooperação são instrumentos de investigação onde o fim primário não é a admissão de culpa, mas o uso dessa cooperação para processar os coautores. A voz corrente fala em “usar os peixinhos para pegar os peixões”, mas nos Estados Unidos pode-se também usar os peixões para pegar os peixinhos, como parece ocorrer no caso da FIFA. (Robert R. Strang, Plea bargain, cooperation agreements, and immunity orders).

A prática vem sendo legitimada no plano internacional: o artigo 37 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção recomenda que os estados criem mecanismos para mitigar a punição de colaboradores, a fim de permitir quebrar os códigos de silêncio.

Timidamente, de início, com as transações no juizado de pequenas causas, e agora, com a colaboração premiada, vemos o enfraquecimento do princípio rígido da inevitabilidade da ação penal, em favor de maior eficácia. Evita-se algumas condenações, mas a impunidade diminui.

VALOR DA DELAÇÃO

O que vem sendo bastante questionado, entre nós, é se as colaborações expressivas na Lava Jato seriam espontâneas, ou se teria sido usado, indevidamente, o constrangimento da prisão preventiva para forçar as delações, assunto que já provoca muita discussão.

Obviamente, a delação sob ameaça de tortura seria inválida. Comenta-se, mesmo, que em algumas ocasiões doleiros teriam sido objeto de violência antes de se “arrependerem”. A mera ameaça de transferência para um presídio comum, onde a integridade física pode correr risco, já representa uma coação.

Uma questão em aberto, portanto, é a de saber se a inovação que consiste em dar ao delator o prêmio do relaxamento da prisão cautelar foge ao espírito da lei.

Em recente decisão (Petição 5700), o ministro Celso de Mello afirmou que o STF admite a utilização da colaboração premiada, mas fixa com clareza os respectivos limites:

1. Nenhuma condenação pode ter por único fundamento as declarações do agente colaborador, pois falsas imputações poderiam provocar erros judiciários e injustas condenações de pessoas inocentes;

2. É crime imputar “falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente” ou daquele que revela “informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas” (art. 19 da Lei).

3. Seria extrema arbitrariedade … manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a lei, deve ser voluntária. Subterfúgio dessa natureza, além de atentatório aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada (cf. Ministro TEORI ZAVASCKI, no HC 127.186/PR).

4. O Estado não poderá utilizar-se da denominada “corroboração recíproca ou cruzada”, ou seja, não poderá impor condenação ao réu pelo fato de contra este existir, unicamente, depoimento de agente colaborador que tenha sido confirmado, tão somente, por outros delatores.

Recente também a decisão em que o juiz Ali Mazloum deixou claro que o instituto não serve para jogar a culpa nos subordinados: “O instituto não se presta a estabelecer uma espécie de alforria para todos, do mais baixo ao mais alto escalão do crime. Todos livres! Isso seria o mesmo que conferir aos membros de uma organização um bill de impunidade, verdadeira imunidade absoluta, coisa jamais vista no direito internacional. Teríamos, no Brasil, uma casta intocável, intangível, colocada acima do bem e do mal para fazer o que bem entender, pois, se e quando, alcançada, um dia talvez, pela lei penal, bastaria ensaiar ares vestais de arrependimento, entregar “mulas”, o mordomo ou quiçá o gerente, para livremente sair o “tubarão”, o chefe do tráfico, em seguro revoejo” (7ª Vara Criminal/SP, autos 0005616-66.2010.403.6181 e 0009405-97.2015.403.6181).

Quem não se lembra, aliás, do caso de uma empresaria processada por contrabando que acabou recebendo uma pena simbólica depois de ter delatado o próprio contador?

Recentemente, outro juiz federal de vara especializada foi entrevistado pelo jornal Valor e entrou na polêmica: “Que diferença tem a tortura de alguém que ia para o pau de arara para fazer confissões e a tortura de alguém que é preso e só é solto com uma tornozeleira, depois que aceita a delação premiada?”. Foi logo contestado pelo jornalista Elio Gaspari, para quem “O ‘efeito Papuda’ mostrou que as portas dos cárceres estavam abertas para o andar de cima e abriu o caminho para as confissões da Lava-Jato” e “Com quatro séculos de experiência, os interesses e costumes abalados pela Lava-Jato defendem seus interesses. Depois de oito meses de inútil teatralidade, a CPI da Petrobras terminou seus trabalhos. Entre as sugestões que colheu, está a de impedir a colaboração de pessoas presas” (Um tiro na Lava-Jato, Globo e FolhaSP, 21/10/2015).

É tal a confusão reinante no Brasil que, segunda a Folha, numa aula na Universidade Columbia (NY), em 14 de outubro de 2015, o economista André Lara Resende teria cogitado de um “perdão” consciente a atos de corrupção, pacto que permitiria a superação da agenda de crise no Brasil, de modo a provocar uma mudança: Vamos começar do zero, vamos superar o passado. Ao mesmo tempo, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, afirmou em Washington que as investigações da Lava Jato representam “uma revolução” no Brasil.

Vivemos, de certo modo, um clima de Revolução Francesa. Muitos querem sangue, ver a guilhotina funcionando. Outros esperam que a tormenta passe, para que os velhos hábitos possam voltar. Fazem lembrar os nobres que fugiram da revolução francesa e que na restauração voltaram “sans rien oublier ni rien apprendre”.

Jânio de Freitas acha que a Lava Jato entra numa nova fase, “em que em que a prioridade dada a delações premiadas, em detrimento de investigações efetivas, vai mostrar desencontros como um problema para os juízes.  Será a hora de provas. E, quem sabe, a hora da verdade” (Novos Jatos, FolhaSP, 22/10/2015).

Já Rogério Gentile critica o relatório da CPI da Petrobrás, que “propôs a criação de uma comissão na Câmara para rever a legislação que estabeleceu o mecanismo, sem o qual a Operação Lava Jato já teria sido enterrada há muito tempo. Fez tantas objeções à lei da delação premiada que, na prática, se fossem levadas em conta, seria melhor substituí-la por uma formulação mais simples, segundo a qual o benefício da redução da pena passaria a valer apenas para o criminoso que, em hipótese alguma, aceite abrir o bico.” (Silêncio Premiado, FolhaSP, 22/10/2015)

IMPOSSÍVEL CONCLUSÃO

Nesse quadro polêmico, difícil chegar a uma conclusão que pudesse buscar algum consenso. Alguns pontos, entretanto, parecem inegáveis:

1. Os novos instrumentos do processo penal vieram para ficar, embora assustem aos juristas de formação clássica e garantista.

2. Sua eficácia no combate ao crime de corrupção nas altas esferas é inegável;

3. É importante que sejam utilizados dentro dos parâmetros fixados pela lei e bem delineados pelo Supremo Tribunal Federal, para que não se tornem inócuos nem produzam injustiças;

4. O conteúdo das delações deve ser encarado como meras indicações a serem comprovadas por provas efetivas. Sem evidências, não terão valor, por mais que sejam verossímeis. De outra parte, ainda que anuladas, as demais provas podem ser analisadas de modo independente.

5. O combate à corrupção e a punição dos envolvidos, em qualquer nível que se situem da organização estatal ou governamental, é fundamental para a credibilidade da justiça e para a confiança nas instituições e no regime democrático.

6. A polêmica vai prosseguir, até porque há enormes interesses em jogo. É a história do Brasil que está sendo escrita. E os juristas têm um papel importante a desempenhar.


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