GENJURÍDICO
Assédio Moral: processo e vírus

32

Ínicio

>

Artigos

>

Biodireito

ARTIGOS

BIODIREITO

Assédio Moral: processo e vírus

ASSÉDIO MORAL

José Osmir Fiorelli

José Osmir Fiorelli

28/04/2016

Resumo: o assédio moral encontra-se presente nas Organizações em geral, contudo, nem sempre de maneira bem compreendida e perceptível, para assediadores e assediados. É comum que se incorpore à cultura e, por esse motivo, consuma energia e recursos não percebidos pelos administradores. Ações indenizatórias podem ser evitadas, com benefícios para a produtividade e para o bem-estar de todos, gerentes e colaboradores.

Há mais de vinte anos debruço-me sobre o tema. No início, estimulado pelas atribuições inerentes a cargos gerenciais; mais tarde, com a motivação despertada pela formação de psicólogo.

Compreendi que o “assédio moral” fascina e intriga aqueles que o estudam, por refletir nuances muitas vezes inusitadas do comportamento humano.

As primeiras leituras, a partir de autores europeus, provocaram-me estranhamento: apontavam-se percentuais, em minha visão intuitiva, muito elevados de vítimas de assédio moral. Em diversos países, mais da metade dos trabalhadores já teria enfrentado essa angustiante situação. Eu encontrava dificuldade para perceber tamanha incidência nas Organizações que conheci ou estudei – afinal, da mesma forma que ocorre nas doenças orgânicas, o que se faz muito presente torna-se amplamente comentado. Não percebia esse alarido em torno do assunto.

Essa situação recordou-me Roberto Campos. Com a lucidez que sempre o caracterizou, registrou o lúcido planejador em seu inesquecível “A Lanterna na Popa”: as estatísticas são como o biquíni: mostram quase tudo, mas ocultam o essencial.

Constatei, em primeiro lugar, que os levantamentos focalizavam universos relativamente pequenos. Isso, em si, pode comprometer seriamente os resultados quando se praticam generalizações. Evidenciei, também, dificuldades e fragilidades para se estabelecer mecanismos de comparação – os grupos de controle.

Concentrei-me, entretanto, nos fenômenos da percepção.  Para fazê-lo, coloquei de lado o olhar macroscópico, ajustando o foco com o objetivo de descobrir e focalizar aspectos específicos, porém relevantes, merecedores de atenção. A obtenção de conhecimento, muitas vezes, requer que se investiguem detalhes mínimos, presentes na gênese dos acontecimentos, e que de outra maneira passariam desapercebidos.

A percepção, uma das oito principais funções mentais superiores, recebe inúmeras influências – apresento as principais no texto Psicologia Jurídica (1). Trata-se de fenômeno psíquico apaixonante: ela recebe significativa contribuição de expectativas e experiências anteriores; plástica, molda-se ao longo de toda a vida, podendo aperfeiçoar-se, estabilizar e/ou regredir. As expectativas individuais dependem diretamente das percepções de cada pessoa. Quanto mais aperfeiçoadas estas, mais sofisticadas aquelas.

Compreende-se, pois, que pessoas com baixíssimas expectativas – a respeito de futuro,  condições de vida, oportunidades e direitos – tendem a tolerar situações absolutamente insuportáveis para outras detentoras de expectativas muito mais elevadas. Isso se acentua quando as experiências de vida são, de um lado, carregadas de restrições, incertezas e frustrações e, do outro, plenas de realizações.

A tolerância com os constrangimentos, amplamente analisada por filósofos e estudiosos do comportamento humano, evidencia-se nos movimentos sociais: as classes mais favorecidas mostram-se muito mais ciosas e defensoras do que consideram seus direitos, do que as desfavorecidas. Aquelas, preocupam-se mais com a influência dos acontecimentos presentes sobre as perspectivas para o futuro; as últimas concentram o olhar no cotidiano. As primeiras percebem as fronteiras e limites com uma sensibilidade que as outras não possuem. Millôr Fernandes foi um estudioso que apresentou reiteradamente essa constatação em suas inesquecíveis e bem humoradas produções.

Essas considerações fazem parte do pano de fundo conceitual com que procurei analisar, em profundidade, situações de assédio moral – levadas ou não aos tribunais.

Convém, aqui, fixarmos alguns pontos essenciais do próprio conceito de assédio moral.

As considerações anteriores já nos sugerem seu caráter subjetivo. Esse aspecto cria um diferencial em torno da caracterização de sua ocorrência e dos argumentos para defendê-la ou contradizê-la. Fica também estabelecida a influência da cultura dominante sobre a percepção da existência de tais situações.

Tanto isso ocorre que, em nossa obra “Assédio Moral – uma visão multidisciplinar” (2), apresentamos casos reais em que os pretensos assediados não o perceberam ou, se o fizeram, não se dispuseram a colocá-lo no altar da discórdia. Em vez disso, pudemos comprovar, acompanhando os acontecimentos, ocasiões em que as ofensas recebidas cumpriram a função de elementos motivadores, que lhes despertaram insuspeitas energias para a busca e obtenção do sucesso. Tornaram-se evidentes, pois, as influências de fatores culturais e subjetivos.

Nessas ocorrências, como acontece com frequência no assédio moral, acompanhei assediados deslocados de suas atividades, colocados em locais inadequados ao trabalho produtivo, humilhados perante colegas, vítimas de limitações injustificáveis ao exercício de suas competências – tudo isso de maneira clara para o observador.

Essas vicissitudes, entretanto, não foram suficientes para que muitos dos assediados apresentassem qualquer sinal de dano psíquico. Antes, o oposto! A energia brotou da adversidade.

Os estudos, de maneira geral, focalizam as situações em que o assédio moral mostrou-se bem-sucedido e ignoram aquelas em que ocorre o inverso, quando ele conduz ao sucesso. Compreensível a dificuldade de se incluir esse tipo de variável. Afinal, as situações que levam a conflitos evidenciam-se por si mesmas (pois conduzem a consequências palpáveis, como as demissões e as ações judiciais) e podem fazer parte de levantamentos e estatísticas; aquelas que levam à superação simplesmente desaparecem. Os bem-sucedidos não solicitam indenizações de qualquer espécie, havendo casos em que a Organização à qual pertenciam passa a ser uma eventual parceira de futuros negócios.

Até aqui, entretanto, tratamos da ótica do assediado. Outro aspecto que me parece essencial para ampliar a compreensão do fenômeno consiste em analisá-lo sob a ótica do assediador.

Não faltam, na literatura, adjetivos desqualificando essas pessoas – em geral, ocupantes de cargos de chefia.  “Tirano” seria algo suave. Compreende-se essa rotulação porque, uma vez bem-sucedido o assédio moral, os danos ao assediado apresentam-se elevados e incluem uma combinação mórbida de sofrimento psíquico, prejuízos orgânicos, sociais e materiais que detalhamos em nossa obra já citada. Não se espera que tais assediadores sejam pessoas devotadas ao próximo.

Pois bem, também constatei que assediadores poderiam simplesmente desconhecer o cometimento dessa falta e, quando o faziam, não tinham a menor suspeita do que praticavam.

Evidencia-se, aqui, a influência cultural. Pratica-se o que, na Organização (ou na Sociedade), costuma ser costumeiro – e tal comportamento torna-se tacitamente compreendido e aceito por todos os que testemunham os acontecimentos! São conhecidíssimas, por exemplo, as histórias de Organizações que praticam o que se denomina “fritar o empregado”, para forçá-lo a demitir-se. O empregado derretido no “banho-maria” das pressões foi vítima – consciente ou não – de assédio moral!

A literatura também pouco trata do assédio praticado por empregado contra o superior. Existe a hipótese – enganosa – da supremacia definitiva do segundo sobre o primeiro. Contudo, inúmeras situações, fartamente conhecidas pelos administradores de empresa, proporcionam ao subordinado um poder que vai muito além do que se possa imaginar pela simples observação do organograma funcional.

Evidentemente, torna-se improvável que a Organização solicite judicialmente uma indenização a ser paga pelo empregado por assediar a chefia! Esses danos, entretanto, existem, podem ser elevados e de difícil reparação.

Também observamos a ocorrência do assédio moral entre empregados e, até mesmo, de grupo de empregados em relação a um determinado colega – o assédio horizontal. Acontece desde a escola fundamental, quando recebe o nome de “bullying”. Sem dúvida, a disputa por privilégios encontra-se subjacente; porém, além dela, os preconceitos constituem uma causa frequente e muito pouco analisada. Estas situações dificilmente deságuam na Justiça, pois a norma consiste em reclamatórias contra a empresa.

Existem, pois, vários elementos que precisamos considerar quando tratamos desse tema de relevância para administradores e operadores do Direito.

Um deles refere-se ao estilo da gestão. Ao incorporar-se a uma Organização, o indivíduo imerge em um ambiente sócio-técnico em que se praticam comportamentos considerados válidos por todos. A leitura do clássico (e sempre atual) livro de Charles Perrow é extremamente reveladora a esse respeito (3).

Quanto mais a pessoa submete-se, aceita e pratica esses comportamentos, mais perde a percepção para a extensão em que eles agridem direitos próprios e de outros. Temos extraordinária dificuldade para perceber e analisar nuances das coisas que praticamos corriqueiramente.

Outro elemento refere-se à informação. As pessoas mostram-se extraordinariamente mal informadas – ainda que vivamos mergulhados em um mundo de dados colhidos pelos mais variados meios de comunicação. Contudo, pouca coisa que nos chega é, de fato, internalizada e transformada em informação relevante.

Por esse motivo, direitos deixam de ser exigidos. O indivíduo, ao ser submetido a um comportamento de assédio moral, pode não sofrer com ele, porém, mesmo nada sofrendo, poderia identificar o comportamento e munir-se de dados para pleitear, na Justiça, a indenização que lhe seria, potencialmente, devida em decorrência de prejuízos que lhe tenham sido impostos (protelação em promoções, mudança de local de trabalho, perda de oportunidades de treinamento, apenas para citar exemplos com efeitos financeiros óbvios).

Entretanto, a falta de informação constitui obstáculo intransponível. Aquele que não sabe, não percebe. Novamente, a percepção constitui a chave para o comportamento. Padece, na maior parte das vezes, sem a menor ideia da extensão da indenização a que teria direito. Não coleta dados e testemunhas; o sofrimento incorpora-se aos requisitos da tarefa…; com o passar do tempo, acostuma-se a ele.

Um terceiro elemento encontramos na cultura de evitar conflito, secularmente implantada no Brasil por vários motivos. Estudiosos apontam para o fato de que ainda guardamos um espírito de submissão derivado da relação histórica do povo com o poder – público ou privado.

De fato, o submisso foge do conflito. Exigir  direitos, recorrer à Justiça, constitui último e indesejado recurso para grande parte da população. Existem relevantes motivos: chegar à  Justiça demanda tempo e recursos financeiros; a espera, longa; os resultados, incertos. Os danos para o perdedor podem ser insuportáveis, profissional, familiar e socialmente. A Organização, em geral, dispõe de suporte jurídico, poder econômico e prestígio perante a sociedade: nem sempre a disputa mostra-se equilibrada. A pessoa engole o assédio, que se transforma em disfunção crônica e permanente.

Contudo, a conclusão é inevitável: o assédio moral existe e, mesmo não epidêmico, também não se trata de algo  excepcional. Entendemos que constitui um comportamento presente, preocupante e importante por duas razões fundamentais.

A ação de assediar incorpora-se ao repertório do assediador e de outros envolvidos – os que ignoram, os que apoiam o assediador e os que proporcionam suporte emocional ao assediado. Jamais deparei-me com casos “ocultos”, ainda que esta possa ser a falsa percepção do assediado, do assediador ou de ambos. Um evento dessa natureza não se faz à revelia dos acontecimentos na Organização: procedimentos são alterados, normas descumpridas, políticas ignoradas, valores corrompidos.

Tudo isso acontece – e sempre acontece – quando uma chefia assedia um subordinado, um subordinado assedia a chefia ou um colega assedia outro colega. Nada incomum perceber-se que colegas apreciam, veladamente, o sofrimento do assediado – comprazem-se com a dor e as dificuldades do próximo (à maneira dos amantes de notícias sensacionalistas). As fofocas fermentam durante o cafezinho, nos banheiros e refeitórios.

O processo de assédio moral pode arrastar-se por período surpreendentemente longo. Apontamos uma situação desse tipo, em nosso livro já citado, em que o assediado ajusta-se de tal maneira aos procedimentos de assédio, que estes tornam-se parte de sua vida! Um mecanismo psicológico de defesa perverso: sua vaidade é demonstrar que suporta a humilhação indefinidamente.

Enquanto processo, compreende-se que o assédio moral apresenta desdobramentos para fora dos limites da Organização, evidenciados em dificuldades com clientes e fornecedores. No mínimo, trazem consequências para operadores de Direito e a profissionais de saúde, aos quais os assediados recorrerão em busca de indenizações e de alívio para danos profissionais, fisiológicos e psicológicos.

Todas essas dificuldades são mais ou menos superadas por meio de atividades paliativas que, enquanto o assédio persiste, incorporam-se ao processo produtivo. A Organização aprende a conviver com o “problema”. Daí ser evidente que, dificilmente, um assédio moral acontecerá sem conivências. Isso faz com que a busca de uma indenização judicial se torne ainda mais complexa, do ponto de vista emocional do assediado.

Um vírus possui o condão de se replicar e mudar de características contínua e indefinidamente. Na Organização, observa-se que o assédio moral inicia-se com um comportamento ou sentimento – por exemplo, um assédio sexual; uma inveja; uma antipatia pouco explicável; um preconceito – e evolui para incorporar outras emoções que o modificam e tornam cada vez mais agressivo e perigoso.

Após algum tempo, a forma inicial perde-se no turbilhão emocional dos acontecimentos – além do que, a memória é tradicionalmente frágil e traiçoeira. A descrição dos efeitos da virose modifica-se continuamente e a reconstituição dos acontecimentos torna-se impossível no cipoal das atividades da Organização – a menos que cuidados específicos (separação de documentos, cópias de emails, gravação de conversas, identificação de testemunhas etc.) sejam continuamente tomados.

O efeito resultante da multiplicação típica de um vírus é notável. No início, limita-se à díade em conflito (assediador e assediado). Em pouco tempo, amplia-se para incorporar os apoiadores. Em essência, muitos possuem parcela de culpa pelo que acontece, embora isso escape às perspectivas de uma ação judicial, que se concentra na pessoa do assediador e nas consequências mais imediatas e comprováveis do assédio sobre o assediado.

O vírus, contudo, existe e atua. Ele assume uma característica extremamente deletéria: enfraquece os relacionamentos interpessoais. Implanta-se um clima de desconfiança. A Organização gasta energia e recursos para neutralizar – até onde possível – esse efeito nefasto e, nem sempre (ou quase nunca) o percebe. Como tomar conhecimento de um vírus entranhado nos processos produtivos e administrativos?

– O assédio moral merece grande atenção de administradores e operadores do Direito nas Organizações em geral.

– Seus efeitos sobre o relacionamento interpessoal, sobre os procedimentos e os prejuízos financeiros que ocasiona são substanciais e recomendam a atenção dos gestores.

A equipe jurídica pode desempenhar importante papel na prevenção desses danos, instruindo os administradores quanto aos cuidados para prevenir a ocorrência de situações de assédio e para por termo àquelas eventualmente identificadas. Vírus, afinal, nunca são bem-vindos.


Referências Bibliográficas

(1) Fiorelli, J. O.; Mangini, R. C. R. Psicologia Jurídica. São Paulo: Gen/Atlas. 7 ed., 2016.

(2) Fiorelli, J. O.; Fiorelli, M. R.; Malhadas Jr., M. J. O. Assédio Moral – uma visão multidisciplinar. Gen/Atlas. 2 ed., 2016.

(3) Perrow, Charles B. Análise Organizacional: um enfoque sociológico. São Paulo: Atlas, 1976.


Veja também:

Conheça as obras do autor (Clique aqui).

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA