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Pardais eleitorais, controle social e a contribuição dos particulares para o exercício do poder de polícia

EFICIÊNCIA DA AÇÃO ESTATA

EXERCÍCIO DA CIDADANIA

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

02/09/2016

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Os avanços da tecnologia acarretam dois efeitos distintos para a Administração Pública: de um lado, contribuem para o exercício da cidadania e eficiência da ação estatal; de outro lado, desafiam os velhos dogmas do Direito Administrativo, que se apresentam como inapropriados para lidar com a nova realidade.

Em relação ao primeiro efeito, o incremento da utilização de instrumentos tecnológicos, notadamente o uso da rede mundial de computadores e de aplicativos, tem se revelado como importante caminho para maior transparência da Administração Pública e efetivação do controle social.

Com a crise da noção de democracia representativa (indireta), exercida por representantes eleitos, ganha força a defesa da institucionalização de instrumentos de democracia direta ou semidireta aptos a aproximar o Estado da sociedade.

Para se alcançar o desiderato da legitimidade reforçada da Administração, não basta garantir o direito da população de eleger seus representantes em determinado momento político. É preciso garantir não apenas a legitimidade do poder no momento da eleição, mas, especialmente, durante o exercício do poder político, com a efetivação de instrumentos de participação na tomada de decisões públicas relevantes e no controle da Administração Pública.

É fundamental, portanto, conceber a democracia como um processo dinâmico em que os canais de diálogo entre o Estado e a sociedade civil estejam abertos e operativos, oportunizando-se a deliberação pública e livre sobre questões atinentes à população.

No âmbito do Direito Administrativo, a participação do cidadão na atuação administrativa é a forma de se concretizar o princípio do Estado Democrático de Direito, conferindo uma legitimidade renovada à Administração. Isso, é claro, não significa abandonar a democracia representativa, mas apenas buscar formas de compensação do déficit democrático do sistema representativo.

A implementação da participação popular, por óbvio, não depende apenas da sua previsão normativa ou de canais abertos entre a Administração e o administrado. Existe um “condicionamento subjetivo”, de ordem psicológica e social, sem o qual, a participação não se realiza: a motivação para participar. A democratização administrativa, para não ser frustrada, depende necessariamente do comprometimento do cidadão com a política.

O uso adequado da tecnologia tem elevado potencial para facilitar a participação do cidadão na Administração e garantir maior transparência para as ações estatais. A divulgação de informações pela rede mundial de computadores, redes sociais e aplicativos de celular e tablets demonstram que a tecnologia pode ser considerada importante aliada do cidadão na participação e no controle social do poder.

Algumas agências reguladoras, por exemplo, utilizam a internet e as redes sociais, com o objetivo de conceder maior ênfase na publicidade e na instauração dos canais participatórios. Além de canais no Youtube, Facebook e Twitter para publicização de suas atividades, a Anatel, por exemplo, tem realizado audiências públicas virtuais, com transmissão pela internet.

Quanto ao segundo efeito dos avanços tecnológicos para a Administração Pública, é possível constatar que algumas soluções apresentadas pelo Direito Administrativo tradicional, fortemente vinculadas à própria origem da disciplina no final do século XVIII e início do século XIX, não se mostram apropriadas para lidar com algumas questões do século XXI. Basta mencionar as recentes discussões em torno dos desafios regulatórios na solução dos conflitos gerados pelo Uber, Netflix e WhatsApp.

Afinal de contas, velhos remédios não servem, necessariamente, pra combater novos problemas.

Em relação ao denominado “poder de polícia”, as novas tecnologias contribuem para o debate sobre a validade ou superação do dogma da sua indelegabilidade para os particulares.

O exercício de parcelas do poder de polícia de trânsito, por exemplo, tem sido conferido, com frequência, às entidades de natureza privada da Administração Indireta e empresas terceirizadas, como ocorre, por exemplo, na emissão de laudos de vistoria e licenciamento de veículos automotores, na fiscalização do cumprimento das normas de trânsito em vias públicas, inclusive com a utilização de instrumentos eletrônicos (“pardais”) etc.

Registre-se, neste ponto, que o STJ já se posicionou pela possibilidade de delegação da fiscalização e do consentimento de polícia para empresas públicas e sociedades de economia mista. No caso, a Corte reconheceu a possibilidade de exercício da fiscalização de trânsito, mas não a imposição de sanções, pela Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte – BHTrans, na forma da ementa abaixo:

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÕES INEXISTENTES. CONTRADIÇÃO CARACTERIZADA. (ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE.)

(…)

16. Tanto no voto condutor, como no voto-vista do Min. Herman Benjamin, ficou claro que as atividades de consentimento e fiscalização podem ser delegadas, pois compatíveis com a personalidade privadas das sociedades de economia mista.

17. Nada obstante, no recurso especial, o pedido do Ministério Público tinha como objetivo impossibilitar que a parte embargante exercesse atividades de policiamento e autuação de infrações, motivo pelo qual o provimento integral do especial poderia dar a entender que os atos fiscalizatórios não podiam ser desempenhados pela parte recorrida-embargante.

18. Mas, ao contrário, permanece o teor da fundamentação e, para sanar a contradição, é necessária a reforma do provimento final do recurso, para lhe dar parcial provimento, permitindo os atos de fiscalização (policiamento), mas não a imposição de sanções.

19. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, com efeitos modificativos, para dar parcial provimento ao recurso especial, no sentido de que permanece a vedação à imposição de sanções pela parte embargada, facultado, no entanto, o exercício do poder de polícia no seu aspecto fiscalizatório.”[1]

É verdade, contudo, que o dogma da indelegabilidade do poder de polícia exerce, ainda, forte influência sobre parcela da doutrina e, inclusive, sobre o Supremo Tribunal Federal, que já decidiu ser indelegável o poder de polícia para particulares. Assim, por exemplo, ao julgar a ADI 1717, que tratava do exercício do poder de polícia dos Conselhos Profissionais, a Suprema Corte decidiu no sentido da “indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas”.[2]

Ocorre que, curiosamente, o STF, posteriormente, afirmou que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que também exerce a fiscalização de profissões, não integraria a Administração Pública Indireta e a contratação de seus empregados não dependeria de concurso público. Em consequência, a referida entidade seria inserida na iniciativa privada e a sua atividade envolveria a mesma autoridade que também é encontrada nos demais Conselhos profissionais (STF, Tribunal Pleno, ADIn 3.026/DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29/09/2006, p. 31). No dia 31/09/2016, contudo, o Plenário do STF, ao julgar o Recurso Extraordinário 595.332/PR, com repercussão geral, decidiu ser da competência da Justiça Federal o processo e julgamento das ações judiciais em que a OAB seja parte, sob o argumento de que a entidade seria autarquia.

No campo doutrinário, parcela da doutrina também tem afirmado a impossibilidade do exercício do poder de polícia por entidades privadas, com a apresentação de dois argumentos principais para sustentar a tese: a) o poder de polícia seria uma atividade típica do Estado e b) celetistas não poderiam exercer poder de polícia, uma vez que não gozam de estabilidade.

De nossa parte, sempre sustentamos que os referidos argumentos não servem como obstáculos absolutos para a delegação do poder de polícia para particulares. Sustentamos a possibilidade de delegação, por meio de norma constitucional ou legal, do exercício do poder de polícia às entidades privadas, desde que a atividade seja exercida de maneira independente, sem influência de eventuais interesses privados (ex.: lucro), e em consonância com critérios objetivos ou técnicos, previstos em lei, que afastem eventuais arbitrariedades.[3]

Em relação ao primeiro argumento, de lado a incerteza gerada pela própria expressão “atividade típica de Estado”, certo é que não haveria qualquer impedimento constitucional ou legal para o desempenho de atividades estatais por particulares desde que respeitados os limites fixados no ato de delegação, pautados pela redução do subjetivismo e do risco de eventuais arbitrariedades por parte dos delegatários.

Quanto ao segundo argumento, o regime celetista, a nosso ver, não é óbice para o exercício do poder de polícia, tendo em vista que todos os agentes públicos gozam de garantias e deveres específicos, ainda que em intensidades diferentes. Atualmente, a estabilidade do servidor estatuário é relativa, admitindo a Constituição quatro hipóteses de perda do cargo (arts. 41, § 1.º, e 169, § 4.º, da CRFB). Por outro lado, o servidor celetista não é necessariamente instável, sendo certo que a sua demissão deve ser motivada, bem como deve obedecer aos princípios da Administração insculpidos no art. 37 da CRFB, com destaque para a impessoalidade. O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997), por exemplo, estabelece em seu art. 280, § 4.º, que “O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência”.

Aliás, não se pode desconsiderar que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece expressamente a possibilidade de exercício de poderes públicos, inclusive de autoridade, por particulares em determinados casos, tais como: a) os comandantes de aeronaves (arts. 167 e 168 do Código Brasileiro de Aeronáutica) e os capitães de embarcações (arts. 497 e 498 da Lei 556/1850); b) os notários e registradores exercem, por delegação do Poder Público, em caráter privado, poder de polícia (consentimento e fiscalização), na forma do art. 236 da CRFB; c) as instâncias da justiça desportiva, com caráter privado, possuem autonomia para decidirem as questões relacionadas à disciplina e às competições desportivas, hipótese em que o Judiciário se manifestará após o esgotamento daquelas instâncias (art. 217, § 1.º, da CRFB); d) poderes de fiscalização no exercício da autorregulação do setor de mercado de capitais, conferidos às Bolsas de Valores, Bolsas de Mercadorias e Futuros, entidades do mercado de balcão organizado e entidades de compensação e liquidação, que atuam sob a fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), na forma dos arts. 8.º, § 1.º, e 17 da Lei 6.385/1976; e) selos de qualidade criados por produtores de determinados produtos, tais como os vinhos (denominação de origem controlada ou de indicação de proveniência regulamentada); f) certificação técnica e ambiental (ex.: certificação ISO, normas técnicas adotadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT; g) autorregulamentação publicitária exercida pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), havendo, inclusive, o “Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária”; h) campo eleitoral, o exercício do poder de polícia pode ser exercido, por exemplo, pelos presidentes das mesas receptoras, na forma do art. 139 do Código Eleitoral; etc.

Verifica-se, destarte, que alguns dogmas do Direito Administrativo apresentam-se inconsistentes com a realidade.

E no Direito Eleitoral encontramos recente exemplo de utilização de novas tecnologias para incremento do controle social do poder e para a contribuição dos particulares para o exercício do poder de polícia eleitoral.

A recente Resolução 23.491 do Tribunal Superior Eleitoral, publicada no dia 18 de agosto de 2016, instituiu, em âmbito nacional, o aplicativo móvel Pardal para o recebimento de notícias de infrações eleitorais nas eleições municipais de 2016.

A referida Resolução tem por objetivos: a) garantir maior transparência aos trabalhos da Justiça Eleitoral, permitindo à sociedade o exercício dos direitos pertinentes à cidadania; b) acompanhar a evolução tecnológica, com o desenvolvimento de mecanismos e ferramentas práticas de mobilidade para facilitar o acesso às atividades da Justiça Eleitoral; c) melhoria da qualidade e da eficiência dos serviços prestados à sociedade; e d) aprimoramento dos instrumentos  de  controle do processo eleitoral,  com meios eficazes e ágeis de combate à corrupção eleitoral, salvaguardando a legitimidade das eleições e a igualdade na disputa dos cargos eletivos.

O aplicativo “Pardal Móvel”, que é gratuito e pode ser utilizado por dispositivos móveis de celular tipo smartphone e tablet, permite o encaminhamento, por qualquer cidadão, de notícias de infrações eleitorais. As denúncias devem ser acompanhadas, obrigatoriamente, do nome e do CPF do cidadão denunciante, bem como dos  elementos  que  indiquem  a  existência  do  fato noticiado, tais como vídeos, fotos ou áudios (art. 3º da Resolução).

Ao lado do Pardal Móvel, os Tribunais Eleitorais deverão utilizar, também, o denominado Pardal Web, que deve ser disponibilizado na página do respectivo Tribunal na internet para acesso e gerenciamento das notícias pelo Ministério Público Eleitoral (art. 4º da Resolução).

Em conclusão, revela-se necessário repensar os velhos dogmas do Direito Administrativo a partir da nova realidade imposta pela evolução social, econômica e tecnológica, sob pena de concebermos um Direito imaginário, utilizado de forma ideológica para obstaculizar os naturais avanços da vida real.


[1] STJ, 2.ª Turma, EDcl no REsp 817.534/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 16/06/2010.
[2] STF, ADI 1.717/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 28/03/2003, p. 61
[3] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 4. ed., São Paulo: Método, 2016, p. 270/274.

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