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A ação rescisória e uma potencial inconstitucionalidade

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PROCESSO CIVIL

A ação rescisória e uma potencial inconstitucionalidade

AÇÃO RESCISÓRIA

CPC

CPC 2015

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

INCONSTITUCIONALIDADE

NCPC

NOVO CPC

Fernando Gajardoni
Fernando Gajardoni

05/09/2016

Qualquer sistema de justiça que se preze deve atender a dois predicados essenciais. De um lado, deve distribuir Justiça da melhor forma possível (inclusive com razoabilidade temporal), aplicando o Direito conforme a verdade dos fatos e os ditames e valores da Constituição Federal e das leis dela decorrentes. Do outro, deve ser capaz de solucionar o conflito (ao menos o jurídico) de modo definitivo, sem o que não haveria segurança jurídica e, consequentemente, os litígios se perpetuariam.

Para garantir o primeiro predicado (legalidade) o sistema brasileiro faculta ampla participação das partes em todas as etapas do processo (contraditório); admite a produção de provas pelos litigantes e pelo juiz; impõe o dever de fundamentação de todas as decisões; dispõe de generoso sistema recursal e impugnativo das decisões judiciais, etc. Já para garantir o segundo predicado (segurança jurídica) tem-se a garantia constitucional de que a lei não retroagirá para violar o direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF).

A rigor, a coisa julgada (segurança jurídica) só deveria recair sobre decisões de mérito em conformidade com a CF e a lei. Mas não se pode negar que, em situações excepcionais, ela acaba por tornar imutáveis e indiscutíveis decisões ilegais ou proferidas em processo com vícios graves, contra os quais não é mais cabível recurso algum.

Nestas situações o sistema se coloca em situação de crise. Quer a estabilidade, quer segurança jurídica, através do respeito à coisa julgada. Mas, ao mesmo tempo, se compadece diante de uma ilegalidade intensa na decisão judicial de mérito transitada em julgado.

Eis que surge o importante instrumento da ação rescisória. Por ela, atenua-se o rigor da estabilidade advinda da coisa julgada e se permite, nas situações de vícios ou ilegalidades graves, o seu afastamento e, eventualmente, a revisão, total ou parcial (vide art. 966, § 3º, do CPC/15), da decisão dantes proferida (embora não mais sujeita a recurso).

O CPC/2015 traz algumas novidades em tema de ação rescisória. Algumas bastante razoáveis e desejadas pela comunidade jurídica. Outras nem tanto.

Inicialmente, o art. 966 do CPC/2015 deixa muito claro que são rescindíveis não só as sentenças (como constava no art. 485, caput, do CPC/1973), mas também as decisões de mérito proferidas com os vícios ali enumerados. Afinal, há diversas decisões interlocutórias no CPC/2015 que solucionam o mérito (art. 487, CPC/2015) ou parcela dele, tendo plenas condições, portanto, de se tornarem indiscutíveis e imutáveis, ante a não interposição de recursos ou esgotamento deles. É o caso das decisões que julgam antecipada e parcialmente o mérito (art. 356, do CPC/2015); que decidem a liquidação por procedimento comum (art. 511, CPC/2015), que resolvem a impugnação ao cumprimento de sentença (art. 525 do CPC/2015).

Foi mantida a grande maioria da hipóteses de rescindibilidade que já constava do CPC/1973. Cabe rescisória da decisão de mérito proferida por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; que resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da vencida, ou ainda de simulação ou colusão das partes a fim de fraudar a lei; com violação de coisa julgada anterior; fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser apurada na própria rescisória; incompatível com prova nova cuja existência era ignorada ou que não podia fazer uso, desde que suficiente, por si só, de assegurar à parte pronunciamento favorável; for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.

A novidade no que toca às hipóteses de rescindibilidade fica por conta da regra do art. 966, V, do CPC/2015, que fala em violação manifesta de norma jurídica em vez de violação literal de disposição de lei, como constava no art. 485, V, do CPC/73. Compreendida a norma jurídica como fruto da interpretação do texto legal, abre-se espaço para a admissão do cabimento da rescisória – de modo absolutamente diverso do que se entendia no regime revogado -, quando a decisão transitada em julgado contrariar, de modo manifesto (como impõe a lei), precedente judicial (especialmente os enumerados no art. 927 do CPC/2015), visto este como norma jurídica.

Outra novidade é a admissão do cabimento da ação rescisória, ainda que em caráter excepcional, contra decisões que não analisam o mérito do processo ou do recurso, impedindo que ele seja enfrentado. Prevê o art. 966, § 2º, do CPC/2015, que pelos fundamentos previstos no caput, será rescindível a decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça a nova propositura da demanda (v.g. a situação em que indevidamente reconhecida a coisa julgada, pese a ação ter elementos diversos da pretérita) ou a admissibilidade do recurso correspondente (v.g. contra a decisão monocrática ou acórdão que reconheceu indevidamente a intempestividade de apelação).

Na esteira do combate à jurisprudência defensiva e conforme o princípio da primazia no conhecimento do mérito (art. 139, IX, do CPC/15), em verdadeira operação de salvação da rescisória interposta perante juízo incompetente (o que não é incomum), o art. 968, § 5º estabelece que reconhecida a incompetência do tribunal para julgar a ação rescisória, o autor será intimado para emendar a petição inicial, a fim de adequar o objeto da ação rescisória, quando a decisão apontada como rescindenda não tiver apreciado o mérito e não se enquadrar na situação prevista no § 2º do art. 966; ou tiver sido substituída por decisão posterior. E o § 6º do mesmo dispositivo arremata que, no caso dantes descrito, será permitido ao réu complementar os fundamentos de defesa, e, em seguida, os autos serão remetidos ao tribunal competente.

De todas estas alterações, contudo, as que merecem maior destaque são as relativas ao termo inicial do prazo para ajuizamento da ação rescisória. Há no CPC/2015 uma disposição que ainda parece incapaz de dar termo à discussão sobre o prazo da rescisão nas hipóteses de formação progressiva da coisa julgada (art. 975, caput, do CPC/2015). E outras duas a dar abertura para o reconhecimento de uma potencial inconstitucionalidade na Lei 13.105/2015 (arts. 525, § 12º e 535, § 8º).

No regime revogado, havia enorme divergência interpretativa sobre o termo inicial da rescisória nos casos de formação progressiva da coisa julgada, isto é, nas situações em que a coisa julgada fosse se formando por capítulos, por parcelas da prestação jurisdicional que iriam transitando em julgado em momentos distintos. A título de exemplo, imagine uma sentença de 1º grau que condena o réu ao pagamento de danos materiais, danos morais e honorários advocatícios, mas que só haja recurso do vencido contra a condenação a título danos materiais, transitando em julgado a decisão no tocante aos danos morais e honorários advocatícios.

O STF e o TST, na vigência do CPC/1973, tinham precedentes no sentido de que o prazo para a rescisória contava de cada capítulo transitado em julgado [1], de modo que no exemplo dantes dado, haveria dois termos iniciais de rescisória: dos capítulos atinentes aos danos morais e honorários advocatícios, a data do trânsito da sentença; do capítulo atinente ao dano material, do trânsito do acórdão do recurso interposto.

O STJ, por sua vez, pensava em sentido oposto, no sentido de que havia um único termo inicial da rescisória (ainda que os capítulos da decisão rescindenda transitassem em épocas distintas como no exemplo dado): o da última decisão de proferida no processo [2].

O art. 975, caput, do CPC/2015 parece ter se inclinado em prestigiar o entendimento do STJ, estabelecendo que o direito à rescisão se extingue em 02 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo [3]. Mas a questão ainda parece aberta, pois não esclarece se a última decisão é a do processo como um todo (tal como pensa o STJ), ou a última decisão do processo relativa ao capítulo que se pretende rescindir (tal como pensam o STF e o TST) [4].

A outra questão problemática quanto ao termo inicial do prazo para ajuizamento da rescisória diz respeito ao fenômeno da formação da coisa julgada tida por inconstitucional.

O art. 525, § 13º, do CPC/2015 (repetido no art. 535, § 5º, relativo ao cumprimento de sentença de quantia contra a Fazenda Pública), estabelece que se considera inexigível a obrigação reconhecida no título executivo judicial – como tal objeto de impugnação ao cumprimento de sentença -, fundada em ato normativo considerado inconstitucional ou tido pelo STF por incompatível com a CF (em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade) [5].

Esclarecem, contudo, os §§ 14 e 15 do art. 525 (repetidos §§ 7º e 8º do art. 535), que a inexigibilidade só ocorrerá se a decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade tiver sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão exequenda, pois que se a decisão do STF for proferida após o trânsito em julgado dela, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF.

Na cruzada do CPC/2015 em estabilizar e uniformizar a jurisprudência a qualquer custo (vide arts. 926 e 927 do CPC/2015) – ou talvez com o nítido escopo de beneficiar a Fazenda Pública (a maior beneficiada pelo regramento) –, foi criado no sistema um prazo de rescisória com termo inicial flutuante e que, definitivamente, coloca em risco a própria garantia constitucional da coisa julgada.

De fato, uma decisão de mérito, transitada em julgada há anos, pode doravante ser rescindida 05, 10, 15 anos após, bastando o advento de uma decisão do STF a reconhecer a inconstitucionalidade do ato normativo que lhe deu substrato. Exemplificativamente, a viúva de um segurado que receba benefício com base em lei federal posteriormente tida por inconstitucional pelo STF, pode décadas depois ser demandada em sede rescisória e, muito provavelmente, perderá o benefício com que contou praticamente toda a viuvez.

É certo que o sistema gravita entre os já citados predicados da legalidade e da segurança jurídica (coisa julgada), motivo pelo qual admite, em circunstâncias excepcionais, o manejo da ação rescisória. Mas permitir que jurisdicionado com posição jurídica consolidada possa, anos depois do trânsito em julgado, ser privado da estabilidade e segurança que ela propicia, abre espaço para a afirmação da própria aniquilação da garantia da coisa julgada pela novel situação de rescindibilidade dos artigos 525, § 15º e 535, § 8º, do CPC/2015 [6].

Certamente este será, entre vários outros, mais um tema do CPC/2015 a respeito do qual o STF será chamado a se pronunciar.


[1] STF, RE 666.589-DF, 1ª Turma, Min. Marco Aurélio, j. 05.03.2014. No TST, o enunciado de súmula no 100, admite a rescisória parcial antes do trânsito em julgado do provimento final: “(…). II – Havendo recurso parcial no processo principal, o trânsito em julgado dá-se em momentos e em tribunais diferentes, contando-se o prazo decadencial para a ação rescisória do trânsito em julgado de cada decisão, salvo se o recurso tratar de preliminar ou prejudicial que possa tornar insubsistente a decisão recorrida, hipótese em que flui a decadência a partir do trânsito em julgado da decisão que julgar o recurso parcial. (ex-Súmula nº 100 – alterada pela Res. 109/2001, DJ 20.04.2001).(…)”.

[2] Súmula 401 do STJ: “o prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial”. Ressalva seja feita, contudo, à hipótese de intempestividade manifesta do recurso, em que por ser presumida má-fé, o termo inicial não era a última decisão do processo (STJ, Resp. 784.166-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, j. 13.03.2007). Mesmo depois do entendimento adotado pelo STF no RE 666.589-DF, já citado na nota anterior, o STJ manteve-se fiel ao entendimento sumulado (401), inclusive em vista do que constaria no art. 975 do CPC/2015 (Cf. REsp 736650/MT, Corte Especial, Relator Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 20.08.2014)

[3] Algo que, no correto sentir de Zulmar Duarte de Oliveira Jr., não impede, quanto aos capítulos já transitados em julgados, a propositura da rescisória antes propriamente da última decisão do processo (Rescisória prepóstera e o Novo CPC. Acesso em: http://zulmarduarte.jusbrasil.com.br/artigos/121940885/rescisoria-prepostera-e-o-novo-cpc).

[4] No âmbito da arbitragem é clara a opção do legislador pela consideração do termo inicial da ação anulatória (que faz as vezes de rescisória no processo arbitral) como sendo o da notificação da sentença parcial (e não da final). O art. 33, § 1º, da Lei 9.307/97 (com redação dada pela Lei 13.129/2015), dispõe que “A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final (…) deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos”.

[5] Em 04.05.2016, o STF, no julgamento da ADI 2418, reconheceu a constitucionalidade do art. 741, § 1º, do CPC/1973 (correspondente ao art. 535, § 5º e 525, § 12). De acordo com o Min. Relator, Teori Zavascki, “assim, como ocorre nas ações rescisórias, o instituto do mecanismo processual visou solucionar situações concretas de conflito entre o princípio da supremacia da Constituição e o da estabilidade jurídica”.

[6] No mesmo sentido da inconstitucionalidade da regra, vide Andre Roque, in Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC/2015 (São Paulo: Método, 2016, p. 749). Veja, também, o texto de Jorge Octávio Lavocat Galvão: Regulamentação da ação rescisória no CPC/15 fere a Constituição (http://www.conjur.com.br/2016-ago-27/regulamentacao-acao-rescisoria-cpc15-fere-constituicao)


VEJA AQUI OUTROS TEXTOS DA SÉRIE CPC 2015

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