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Repensando o Direito Civil Brasileiro (4): O direito à busca da felicidade

BUSCA DA FELICIDADE

DIREITO

DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE

DIREITO CIVIL JURISPRUDENCIAL

PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Felipe Quintella

Felipe Quintella

14/10/2016

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Uma das áreas em que tenho realizado pesquisas é a do Direito Civil Jurisprudencial. A meu ver, trata-se de campo que merece atenção especial do jurista e que suscita constantemente a necessidade de se repensar o Direito Civil brasileiro — exatamente a proposta desta coluna.

Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal julgou recentemente, em 21/09/2016, recurso ao qual se reconheceu repercussão geral, e em que se discutiu a possibilidade de concorrência do vínculo de parentesco socioafetivo com o vínculo de parentesco biológico. Por maioria, o Tribunal entendeu que existe a possibilidade, e fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

Todavia, como a decisão ainda não foi publicada, prefiro deixar para comentá-la em momento posterior.

O que eu gostaria de abordar no artigo de hoje é um direito da personalidade que protagonizou o voto do relator, cuja minuta já foi disponibilizada pelo STF: o direito à busca da felicidade.

Não que se trate de uma ideia nova; ao contrário, conforme se explica na decisão, a ideia já constava na Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776. Mas ver o reconhecimento, por parte da nossa Corte Constitucional, de que tal direito decorre do mais importante fundamento da nossa República, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III da Constituição de 1988), e, mais, que é dotado de operacionalidade, isso, sim, é novidade, e daquelas que o Direito Civil Jurisprudencial tem que estudar.

Segundo o Ministro Luiz Fux, relator, “[e]m estreita conexão com a dignidade humana, e dela derivando ao mesmo passo em que constitui o seu cerne, apresenta-se o denominado direito à busca da felicidade” (p. 9).

Aqui, cabe observar que não apenas o Min. Fux considera que o direito à busca da felicidade se relaciona com a dignidade humana, e que dela deriva, como, ainda, que o Ministro assevera que tal direito constitui o seu cerne, ou seja, o seu centro, o seu âmago. Daí se pode inferir, então, que se trata de um direito com destaque no quadro dos direitos fundamentais.

Ademais, o Min. Fux explica que

“[c]uida-se, a busca da felicidade, de preceito que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhecendo-se não apenas as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, mas também que o Estado, então recém-criado, deveria atuar apenas na extensão em que essas capacidades próprias fossem respeitadas. Traduz-se em um mandamento a que o governo se abstenha de eleger finalidades a serem perseguidas nas mais diversas esferas da vida humana, bem assim a que não se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Nenhum arranjo político é capaz de prover bem-estar social em caso de sobreposição de vontades coletivas a objetivos individuais.” (p. 9-10, grifo nosso)

E, mais adiante:

“Tanto a dignidade humana, quanto o devido processo legal, e assim também o direito à busca da felicidade, encartam um mandamento comum: o de que indivíduos são senhores dos seus próprios destinos, condutas e modos de vida, sendo vedado a quem quer que seja, incluindo-se legisladores e governantes, pretender submetê-los aos seus próprios projetos em nome de coletivos, tradições ou projetos de qualquer sorte.” (p. 13, grifo nosso)

Ora, eis aí o caráter operacional que se atribui ao direito à busca da felicidade. Com esses contornos, a busca da felicidade deixa de ser um direito abstrato, de inegável existência, porém desprovido de eficácia jurídica, e se eleva — enquanto princípio jurídico — à condição de diretriz máxima para a elaboração e aplicação de normas no âmbito do Direito Privado, bem como — enquanto direito subjetivo concreto — para a solução de controvérsias envolvendo desdobramentos da personalidade.

Logo, aplicando-se o princípio da busca da felicidade, de plano se verifica a inconstitucionalidade de projetos de lei como o do Estatuto da Família, por meio do qual o legislador pretende impor à sociedade um determinado modelo de família, baseado em tradições e em algumas religiões.

Além disso, o direito à busca da felicidade também pode resolver problemas concretos. Recentemente, por exemplo, a comunidade jurídica se abriu à discussão sobre a vinculação entre gênero e peças de vestuário. Não há em lei nenhuma regra no sentido, verbi gratia, de que somente pessoas do gênero feminino podem usar saias ou vestidos. Destarte, se Caio, apesar de se identificar como sendo do gênero masculino — não sendo relevante seu sexo — quiser ir trabalhar usando um vestido, poderia ser impedido de o fazer? Sem maiores dificuldades, se, no caso concreto, Caio afirmar que será mais feliz trajando o vestido, não poderá ter o exercício do seu direito obstaculizado.

Não se pense, todavia, que a consagração da operacionalidade do direito à busca da felicidade implicaria uma verdadeira anarquia.

Até mesmo para que todos possam exercer seu direito à busca da felicidade, é preciso que a ordem jurídica permita a harmonização do exercício do direito de todos.

Assim é que, por óbvio, ainda que o homicídio ou que a pedofilia façam uma pessoa mais feliz — supondo que isso seja possível —, nem assim tais práticas criminosas passarão a ser admitidas, vez que interferem na esfera jurídica de outra pessoa, que tem direitos violados. O Estado, por meio do Direito, ainda precisará criminalizar tais condutas. Igualmente, ainda que não pagar suas dívidas faça o devedor mais feliz, nem por isso será vedada a sua cobrança ou execução, vez que o inadimplemento interfere nos direitos do credor. Por isso, o Estado, por meio do Direito, ainda precisará prever normas para a inexecução das obrigações.

Por outro lado, em que a adoção de prenome correspondente à identidade de gênero por uma pessoa transexual interfere no direito de terceiros? Contudo, negar essa possibilidade, ou condicioná-la, por exemplo, à prova de cirurgia de redesignação de sexo implica grave violação ao direito à busca da felicidade da pessoa. Em que o uso de roupas tradicionalmente relacionadas ao gênero feminino por pessoa do gênero masculino prejudica o direito de terceiros? Entretanto, vedar essa conduta importa lesão ao direito à busca da felicidade do sujeito.

O mesmo raciocínio se aplica, por exemplo, às discussões sobre as proibições do Código Civil na tosca tentativa deste de “tutelar” os direitos da personalidade, como a vedação do ato de disposição do próprio corpo (art. 13), principalmente nos casos em que a proibição se justifica pela contrariedade aos bons costumes (art. 13, parte final).

Todas essas discussões — ainda quando se chega à mesma conclusão a que se pode chegar por aplicação do direito à busca da felicidade como solução da controvérsia — são extremamente polêmicas e exigem do jurista um árduo trabalho hermenêutico.

A grande inovação da decisão do STF, então, a meu ver, é dispensar a via crucis argumentativa, oferecendo o direito à busca da felicidade como um atalho muito feliz e muito bem-vindo.

Com o passar do tempo, conforme a comunidade jurídica for assimilando a ideia, e aceitando o caráter operacional do direito à busca da felicidade, a realização plena da pessoa será potencializada, e daremos um importante passo rumo à consecução dos objetivos fundamentais e constitucionais da República de construir uma sociedade livre, justae solidária e de promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação (art. 3º, incs. I e IV da Constituição da República de 1988).


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