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Violência invisível

DELINQUENTE INVISÍVEL

VIOLÊNCIA INVISÍVEL

VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE

José Osmir Fiorelli

José Osmir Fiorelli

20/10/2016

Em texto anterior, tratamos da violência na sociedade. Focalizamos, agora, uma das formas insidiosas e viróticas desse mal: a violência invisível. Assim nominamos aquela cujos efeitos incorporam-se à cultura, de tal maneira que se perde a percepção de sua existência. Para muitos, nela encontra-se a raiz de todos os males.


Notícias a respeito da corrupção, disseminada em grandes e poderosas Organizações, despertam os mais variados sentimentos: decepção, indignação, perplexidade, medo, esperança, insegurança e outros, dependendo das expectativas (e envolvimento) de cada pessoa. A percepção comum, entretanto, é de que a corrupção alastrou-se na Sociedade!

A corrupção é uma delinquência.

Muitos chocam-se com a aparente rudeza e severidade da palavra “delinquente”! No imaginário de parcela da população, ela reserva-se àqueles que cometem delitos próximos da realidade perceptível, como a violência física,  visível, constrangedora em si, provocadora do sofrimento imediato.

Todo esse processo, amplamente divulgado pelos meios de comunicação, desde as denúncias até as condenações, suscita uma inquietante pergunta: de que maneira, tantos e tão graves atos de delinquência permaneciam ocultos ou ignorados?

A resposta a essa questão não pode deixar de colocar na vitrine a incômoda conivência.

A conivência, óbvia no entorno social dos agentes, vai muito além dessa frágil e maleável fronteira. Afinal, “as paredes tem ouvidos” – ainda que outra a arquitetura contemporânea. Celulares, smartphones, microcâmeras e outros equipamentos possuem não apenas ouvidos, mas olhos muito bem abertos comandados por dedos ágeis e mentes perspicazes.

De fato, delinquentes não são “ilhas”. Cercam-se de pessoas em regime de dependência recíproca. O poder exige, no mínimo, áulicos de plantão. Uma rápida espiada nas teorias motivacionais (1) transforma essa hipótese em certeza.

Cada delinquente invisível possui o seu séquito particular de coniventes. Uma rede de indivíduos inevitavelmente conhecedores do todo ou de parte de esquemas, fatos e conluios.

Essa circunstância faz com que os eventos maiores desdobrem-se em uma quantidade interminável de ocorrências menores, acompanhando a extensa pirâmide que inclui dos altos aos mínimos escalões nas Organizações e termina no mais sagrado dos ambientes: o lar. Muitas coisas veiculam-se nas mesas de jantar ou de centro, irrigadas pelos tradicionais “on the rocks” ou, na ponta inferior, pela prosaica “caipirinha”.

Não se outorga, aqui, a obra e suas mazelas ao topo da pirâmide; verifica-se também o caminho inverso: uma infinidade de pequenas ocorrências, praticadas no anonimato que caracteriza as ações pulverizadas, constitui combustível de baixíssima octanagem para engendrar aquelas de maior nível. Na Sociedade, tudo se comunica e se influencia, rigorosamente dentro dos preceitos da sempre válida Teoria Geral de Sistemas de Von Bertalanffy.

A conivência, contudo, solicita – para a sua prática “mais ou menos consciente”, algum apoio emocional para que ela não se transforme na incômoda dissonância cognitiva (2), capaz de se transformar em algum tipo de transtorno emocional compreensivelmente indesejado.

A solução que o inconsciente adota para contornar essa questão – sem dúvida, relacionada aos valores, crenças e princípios das pessoas – é a utilização dos “mecanismos psicológicos de defesa” (3), utilizados pelo psiquismo para diminuir a angústia provocada pelos conflitos interiores.

Um dos mais eficazes, nesta situação, é a racionalização.

Esse curioso mecanismo mental propicia aos detentores de informações privilegiadas justificar – conscientemente ou não – a ocultação de fatos relevantes e que interessariam à Sociedade, ou, em casos mais graves, a participação em esquemas socialmente condenáveis (independentemente de serem ou não legalmente inaceitáveis). Por meio da racionalização, a consciência apazigua-se – nem sempre de maneira muito eficaz…

A racionalização manifesta-se por meio de frases banais, frequentadoras de todas as conversas, nos mais diversos ambientes e lugares:

  • Os prejuízos da divulgação seriam maiores do que os  benefícios.
  • Para que  correr o risco de arcar com todas as consequências se os culpados sempre sairão ilesos?
  • Não há mesmo em quem confiar
  • A corda, caso arrebente, será do lado mais fraco.
  • Sempre foi assim.
  • Acontece por toda a parte.
  • Faço apenas a minha parte; afinal, se não for eu, será outra pessoa.

– Apenas cumpro ordens; sou pago para fazer, não para discutir.

(Sem esquecer da surrada, mas ainda presente, “rouba mas faz”.)

A racionalização é competente vacina contra as eventuais agulhadas dos incômodos valores e princípios que possam habitar o superego, o fiscalizador implacável mas não tão eficaz das ações conscientes. As angústias individuais, de qualquer maneira, são atenuadas ainda mais quando o indivíduo percebe que seu comportamento recebe ampla aceitação no círculo imediato.

Conclui-se que o comportamento de suave tolerância para com a delinquência invisível, cujos filhos bastardos constituem a violência invisível, reflete um inconsciente coletivo altamente complacente.

O inconsciente coletivo, entranhado na Sociedade, agasalha essa delinquência; ele incita o consciente a fazer olhos grossos às mínimas e sutis transgressões que pavimentam as avenidas dos grandes e pequenos negócios de indivíduos e grupos (as “pessoas jurídicas”).

O fantástico nessas situações, em que as digitais da impropriedade constituem sinais indeléveis das transgressões,  é que o indivíduo pode reconhecer-lhes tal condição, mas considera socialmente aceitável a convivência com seus agentes.  As pessoas limitam-se a reclamar do “estado de coisas”, contudo, a indignação raramente vai além da fala. Resultado: no vestibular da ética dos negócios e dos comportamentos individuais, a sociedade acaba reprovada.

Os praticantes dessa delinquência invisível – pessoas de todos os níveis de poder econômico, credo e formação – compõem a massa anônima dos delinquentes invisíveis. A violência produzida por eles, coerentemente, invisível é.

Trata-se, pois, de um fenômeno de percepção (4).  O não-percebido é invisível e incognoscível.

Ocorre que tais delinquentes – os atores dos conchavos, desvios, acertos de bastidores, fraudadores de todos os tipos – encontram-se multiplicados na sociedade: são familiares, parentes, amigos, conhecidos, clientes, fornecedores, vizinhos de pessoas. Com eles, todos convivem – não apenas os citados áulicos. Frequentam os mesmos lugares frequentados pela população. Sem dúvida, não constituem a maioria ou a moda da população, mas basta uma parcela desta para que seus efeitos funestos atinjam – violentamente – toda a Sociedade.

Percebe-se o poder da racionalização. “Não é minha função identificar essas pessoas” constitui cândida desculpa. Argumentos emocionais como a “aversão à delação” entram em cena. Na selva da sobrevivência econômica, os próximos devem ser preservados quando não representam perigo próximo ou favorecem objetivos imediatos.

De tudo isso,  emerge a cegueira psicológica que justifica o acobertamento.

Caso uma empresa ou um grupo delas estabelecer sofisticado esquema de transporte de mercadorias com emissão parcial das notas fiscais, ancorado em cuidadosa malha de corrupção montada nos roteiros dos caminhões de transporte, em hipótese alguma os proprietários deixarão de ser aceitos na sociedade de elite que frequentam. O sucesso econômico rende antes inveja do que desconfiança.

Obviamente, nada se faz sem a conivência de dezenas de profissionais – que (mecanismo de racionalização) defendem a estabilidade da empresa, para assegurar seus empregos.  O exemplo não é pontual.

Deste enredo brota a violência invisível, uma forma gravíssima de violência em que se rouba à sociedade recursos indispensáveis à correção das assustadoras mazelas que afligem toda a população menos favorecida – que é a maior parte dela.

A violência invisível é causa-raiz da violência visível. Ela abre a Sociedade para a droga e para os crimes de todos os tipos. Ela ocasiona a falta de recursos para as atividades essenciais. Ela provoca o desemprego e o subemprego. Ela vai além: destrói esperanças, lares e sonhos.

A corrupção constitui uma das mais claras manifestações dessa delinquência. As ações destinadas a combatê-la, aos poucos, começam a revelar seus efeitos e a despertar a sensibilidade da Sociedade para sua existência.

Quando deixar de ser invisível, pois exposta, a violência dela decorrente tornar-se-á percebida e alertará as pessoas para a importância de combatê-la em todas as atividades.

Historicamente, a delinquência invisível não causa espanto ou indignação. Os que a cometem, comumente, são cidadãos admirados e respeitados.

Dela resulta a violência invisível. Sua presença ubíqua faz com que desapareça da percepção das pessoas.

O enfrentamento da delinquência invisível conduzirá à redução da violência invisível. A primeira contém a semente da segunda. É um grande desafio para a Sociedade e, em especial, para o Operadores do Direito.


REFERÊNCIA:

Fiorelli, J. O.; MANGINI, R. C. R. Psicologia Jurídica, 7. ed. São Paulo: Gen/Atlas, 2016.

  • Teorias motivacionais: 60 – 64
  • Mecanismos psicológicos de defesa: 46
  • Dissonância cognitiva: p. 77
  • Fenômenos da percepção: p.11

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