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Repensando o Direito Civil Brasileiro (5): A convalidação da posse precária

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Felipe Quintella

Felipe Quintella

21/10/2016

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Vou declarar abertamente: eu sou um inimigo do Código Civil de 2002! Não vejo mérito algum em um Código Civil promulgado na aurora do século XXI que não foi feito para o seu tempo; um Código que nada mais é do que uma “repaginação” do anterior — o qual, por sua vez, era fruto em grande parte de ideias vetustas repensadas durante o efervescente século XIX, tempo em que na Europa e na América se cuidou de “sistematizar”, “atualizar” e “modernizar” o Direito antigo.

E não me convence nenhuma defesa que indique vantagens do novo Código. Os preceitos desejáveis que ele tem — e reconheço que há — poderiam ter sido objeto de lei complementar do Direito Civil, como tantas, ou poderiam ter sido inseridos no Código Civil de 1916.

Porque, a bem da verdade, a maior parte — ou a grande parte — dos dispositivos do Código de 2002 é mera repetição do Código anterior.

Daí a minha angústia: se não era para fazer Código inteiramente novo, para que fazer novo Código? Bastava reformar o velho, então.

Da minha parte, realmente acredito que o século XXI precisava, sim, de um novo Código Civil — ou melhor, de um novo Direito Civil. Ainda precisa. Ocorre que o Código de 2002 não cumpriu esse papel; ao contrário, ao “maquiar” o que já havia, distraiu boa parte da comunidade jurídica quanto à necessidade de um Direito do século XXI e para o século XXI, e gestado à luz da ordem constitucional inaugurada em 1988.

Mas vou deixar para explicar melhor o que quero dizer por meio de críticas pontuais que farei em diversos artigos desta série, começando, hoje, pela problemática da impossibilidade de convalidação da posse precária, tema sobre o qual dei consultoria recentemente.

O art. 1.208 do Código Civil de 2002 estabelece que “não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Tal preceito do “novo” Código vem, ipsis litteris, do art. 497 do Código Civil de 1916: “não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância, assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência, ou a clandestinidade”. Justiça seja feita: como você observou, o Código de 2002 tirou duas vírgulas do texto; não simplesmente o trasladou de um Código para o outro…

Pois bem. Em seu Código Civil Comentado, Clovis Bevilaqua — autor do anteprojeto que originou o Código de 1916 — explicou, sobre o dispositivo:

Na segunda parte do artigo, o Código deixou a doutrina romana mais rigorosa, porém mais justa para adotar a francesa e a italiana, que é mais prática.

Em face deste artigo, o vício da violência e o da clandestinidade são temporários, quando por direito romano prevalecia a regra: quod ab initio vitiosum est non potest tractu temporis convalescere. Pelo Código Civil, desde que a violência e a clandestinidade cessam, a posse começa a firmar-se utilmente, de modo que, passados anos, não seja o possuidor despojado dela, simplesmente por esse vício originário.

(BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958, p. 19.)

Já na sua obra Direito das Coisas, Bevilaqua explicou que o Código Civil, com o art. 497, abriu uma exceção ao princípio da conservação do caráter da posse, que herdáramos do Direito Romano. A posse violenta e a posse clandestina passaram a comportar convalidação, cessada a violência ou a clandestinidade. “Foi o Código Civil que, por influência da Comissão Revisora, rompeu com a tradição, que parecia extremamente rigorosa e contrariava interesses de ordem prática.” (BEVILAQUA, Clovis. Direito das Coisas. Vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 58.)

Operada a convalidação, a posse anteriormente violenta ou clandestina, e, pois, injusta, natural, torna-se justa e civil, e apta a produzir todos os efeitos atribuídos a posse. Destarte, aquele que invadiu à força uma fazenda, ou que tomou às escondidas a posse de um terreno, podem, eventualmente, vir a adquirir a respectiva propriedade por usucapião.

Todavia, o rompimento com a tradição foi apenas parcial. Não admitiu, o Código de 1916, a convalidação da posse precária, aquela cujo vício está no descumprimento da obrigação de restituir. Vale lembrar que precária é a posse de quem recebeu a coisa em virtude de um negócio de execução continuada, ou de um direito real sobre a coisa alheia, e não a restituiu, extinto o negócio, ou o direito. É o caso de quem pega um livro emprestado, e não o devolve.

O defeito da posse precária reside na quebra de confiança. O proprietário entregou a coisa ao terceiro na expectativa de reavê-la posteriormente, mas o possuidor direto violou a confiança nele depositada, e, quando deveria restituir a coisa, deixou de fazê-lo. A partir desse momento, sua posse, até então justa, tornou-se injusta, precária.

Ocorre que o legislador, por ocasião da elaboração do Código de 2002, perdeu a oportunidade de repensar a regra, mantida integralmente no art. 1.208. Ora, mui grave é mesmo a quebra de confiança. Mas, será que, hoje, vemos com mais repulsa a atitude do possuidor precário do que a atitude de quem obteve a posse por violência ou clandestinidade?

Em outras palavras, será que nos parece razoável, hoje, que quem tinha originalmente posse violenta ou clandestina venha a desfrutar posteriormente dos efeitos da posse jurídica, até mesmo da usucapião, e que quem mantém posse precária, não?

Um ladrão, armado, rouba seu carro no trânsito, e você nunca o localiza. Dez anos mais tarde, você encontra o carro. Todavia, durante esse período, a posse violenta já se convalidou, e já transcorreu o prazo da usucapião extraordinária de coisas móveis. O ladrão se tornou proprietário.

Essa constatação incomoda mais, penso eu, do que a de que você perdeu a propriedade daquele CD que dez anos atrás emprestou por um mês para seu amigo, e que nunca foi devolvido — e de que você nem se lembrava mais!

Se quem teve sua posse violada e não a defendeu em tempo hábil deve, depois de um tempo, perder a proteção possessória, e, até mesmo, a propriedade, porque o direito não protege os que dormem (“ius non sucurrit dormientibus”), então deve perdê-las não apenas para o possuidor violento ou clandestino, mas também para o precário. Não vejo, hoje, razão para a distinção entre as três modalidades de posse injusta.

Se for o caso, o que deve se repensar é a convalidação da posse injusta — mas, aí, das três modalidades.

Por fim, para não deixar o texto extenso demais, uma última observação: o que estou discutindo, aqui, é a convalidação da posse precária, ou seja, da posse injusta por precariedade. Não estou, de modo algum, sugerindo que se atribua caráter ad usucapionem à posse temporária, justa, daquele que não descumpriu a obrigação de restituir, vez que ainda não chegou o momento da restituição.

Em outras palavras: se quem descumpriu a obrigação de restituir a coisa anos atrás, mesmo depois de notificado para o fazer, e que deixou de ter posse temporária, justa, para ter posse precária, injusta, continua exercendo a posse, sem que o proprietário tome qualquer medida jurídica para reaver a coisa, parece-me razoável que se considere convalescida a posse, e que possa haver usucapião, se preenchidos os requisitos legais.

Mas isso não significa, absolutamente, que adquirirá por usucapião aquele que, em virtude de comodato ou de locação sem prazo determinado, possuir uma coisa pelo lapso temporal prescrito para alguma das modalidades desse modo de aquisição. A posse temporária, justa, enquanto não for devida a restituição da coisa, não terá, jamais, o caráter de ad usucapionem.


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REFERÊNCIAS:
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958.
__________. Direito das Coisas. Vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941.

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