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PENAL

A formação histórica do Ministério Público – Origens do Ministério Público na França, em Portugal e no Brasil

DEMOCRACIA

FORMAS HISTÓRICAS DE ESTADO

HISTÓRIA DO DIREITO

MINISTÉRIO PÚBLICO

Paulo César Busato

Paulo César Busato

22/11/2016

01The historical formation of the “Ministério Público” Origins of the “Ministério Público” in France, in Portugal and in Brazil

Por Ana Maria Bourguignon de Lima e Paulo César Busato

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RESUMO

A pesquisa identifica as raízes do Ministério Público, com fim de verificar sua evolução no Brasil até figurar como órgão estatal considerado essencial à função jurisdicional do Estado. Constata-se os fundamentos do direito brasileiro passando pela formação do Estado Antigo, Medieval e Moderno. Traçam-se, com isso, as marcas deixadas pelo Direito Português e a ascendência deste dos direitos greco-romano, canónico e germânico. O Parquet surge como instituição na França, com a legalização do cargo de procurador do rei em 1302. O Ministério Público lusitano, do qual descende o brasileiro, é regulamentado em 1387, com a criação do Ministério Fiscal. No Brasil, o Ministério Público é instituído pelas Ordenações Portuguesas, passando pelo período colonial, imperial, pelas constituições republicanas e atingindo sua autonomia funcional com a Constituição de 1988. Portanto, certifica-se que, em sua história, o Ministério Público consolida-se diante da edificação de uma esfera pública de direitos, da democracia como forma de Estado e da garantia dos direitos da cidadania humana. A cada avanço nesses três aspectos, o Ministério Público potencializa e caracteriza sua funcionalidade.

Palavras-chave: Ministério Público, Formas Históricas de Estado, Democracia, História do Direito.

ABSTRACT

The research identifies the origins of the “Ministério Público” with the finality to verify its evolution in Brazil until to figurate as a state department considered essential to the judicial function of the State. It verifies the fundaments of the Brazilian law through the formation of the Ancient, Medieval and Modern States. It traces, with this, the marcs of the Portuguese law and its ascendance from Greek – Roman, canon and Germanic law. The “Parquet” appears as institution in France, with the legalization of the king prosecutor’s post in 1302. The Portuguese “Ministério Público”, from what descends the Brazilian, is regulated in 1387, with the creation of the “Ministério Fiscal”. In Brazil, the “Ministério Público” is instituted by the Portuguese Ordinations, passing by the colonial and imperial period, by the republican constitutions and reaching its function autonomy with the 1988 Constitution. Therefore, it certifies that, in its history, the “Ministério Público” consolidates in front of a building of a public sphere of rights. In each advance in those three aspects, the “Ministério Público” becomes effective and characterizes its functionality.

Key Words: “Ministério Público”, Historical Forms of State, Democracy, Law History

A história do sistema jurídico brasileiro inicia-se antes da História do Brasil,

quando a Europa fazia a História, pois começa muito antes de 1500.

(Gusmão, 2006)

1 – INTRODUÇÃO

Este artigo traz as raízes da instituição do Ministério Público na formação dos tipos históricos de estado europeus, com o fim de verificar quais circunstâncias determinam seu nascimento e evolução até ser considerado órgão estatal essencial à função jurisdicional do Estado, defensor legítimo da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF/1988, Art. 127).

Pretende-se demonstrar a formação histórica do Ministério Público em duas dimensões. A primeira retoma a evolução do Ministério Público, passando da impossibilidade de seu surgimento nos Estados da Grécia e Roma, no Estado Medieval e seu despontar no Estado Moderno, na França do século XIV. A segunda dimensão refere-se ao desenvolvimento do Ministério Público brasileiro, de onde surge, como evolui e qual a sua situação atual, a partir da Constituição Federal de 1988.

Este estudo tem por norte uma questão primordial: qual o papel político-criminal do Ministério Público Brasileiro, no contexto atual do Estado Social e Democrático de Direito? Considerando que o estudo do direito não se desvincula de um contexto histórico social, torna-se imprescindível uma análise do percurso dos estados ocidentais, perscrutando o momento propício para o nascimento do Ministério Público moderno. A amplitude temporal da análise justifica-se pelo fato de que o berço das instituições governamentais brasileiras remonta o processo histórico da colonização portuguesa, uma vez que, Portugal, ao adotar a tradição romano-germânica do direito, introduziu-a também nos institutos jurídicos do Brasil. Parte-se do pressuposto, arrimada em Gusmão[1], de “[…] que o direito brasileiro, através do direito português, sofreu a influência do direito romano, do direito germânico e do direito canónico”.

Assim, a proposta de se compreender a função do Ministério Público no Brasil contemporâneo impõe o desafio de procurar na história quais fenômenos sociais, políticos e culturais levam a civilização ocidental declarar o regime democrático como o melhor dos regimes de estado.

As antigas repúblicas gregas e romanas de vinte e cinco séculos passados, entre as quais se destaca como tipo clássico o Estado ateniense, foram as primeiras manifestações concretas de governo democrático. Foram aquelas experiências as sementes da democracia, que os filósofos antigos e medievais conservaram vivas até que germinassem assinalando o advento dos tempos modernos[2].

Justifica-se a análise histórica das instituições consideradas marcos para o desenvolvimento da civilização ocidental, traçando as características culturais de cada momento e os aspectos que influenciaram a teoria política contemporânea, no sentido de valorar positivamente o renascimento dos estados democráticos. Para tanto, toma-se a pesquisa como exploratória, movimento que Gil[3] conceitua como a construção de uma visão geral acerca de um fato; utilizando como referências as formas históricas de estado de Dallari[4]: Estado Antigo, Estado Grego, Estado Romano, Estado Medieval e Estado Moderno. Segundo o jurista, a adoção de métodos científicos possibilita o isolamento de certos fenômenos sociais, ou, ainda alguns de seus aspectos particulares sem prejuízo da noção de unidade e continuidade.

Mediante esse isolamento consegue-se excluir grande parte do individual e, relacionando-se o particular com o geral, faz-se ressaltar este último. Por esse mesmo critério, pode-se procurar, de início, o conhecimento dos Estados particulares, descrevendo suas singularidades, tanto por seus aspectos histórico-políticos, quanto pelos jurídicos.

Mas um Estado particular não é, em qualquer sentido, um fenômeno isolado, mas, de maneira mais ou menos consciente, influíram sobre ele as relações atuais e pretéritas dos demais Estados, ou seja, a evolução total das instituições dos Estados. E o problema de uma teoria geral do Estado consiste, justamente, em buscar os elementos típicos nos fenômenos do Estado e as relações em que se encontram[5].

Desse modo, em cada um dos tipos de estado apresentados ao longo do texto, procura-se perscrutar quais razões determinam o surgimento do Ministério Público como “braço do Poder Executivo”[6] e o redimensionamento de seus princípios e estrutura orgânica para servir às instituições democráticas e, por conseguinte, à Justiça de ‘mister público’.

2 – A ANCESTRALIDADE INDO-EUROPEIA DA CULTURA GRECO-ROMANA: ELEMENTOS DO ESTADO ANTIGO

O Estado Antigo Ocidental surge há quatro milênios quando a população indo-europeia, da qual descendem gregos e romanos, dissemina-se das planícies russas para diferentes regiões, inclusive a Europa Mediterrânea. Coulanges[7] identifica três pontos comuns nas sociedades gregas e italianas antigas: “[…] a religião doméstica, a família e o direito de propriedade […]”, derivados da formação patriarcal das organizações sociais primitivas. Nelas vigora a crença de divinização dos ascendentes varãos, para a qual o homem mais velho exerce a função sacerdotal.

A teoria geral do estado qualifica as comunidades “políticas” primitivas como teocráticas, pois nelas o sacerdote é o pai, o chefe religioso, o juiz soberano e o representante “político” da família na comunidade. O estado antigo, portanto, confunde-se com a religião que regra a conduta social e a organização política. A religião doméstica indo-europeia impõe a proeminência da figura masculina, por considerar que a família, e consequentemente, o culto, perpetua-se pelo lado masculino, em que o primogênito é o sucessor direto do pai. Nesse contexto as mulheres têm pouco valor e a divisão de classes se dá pelo critério sanguíneo, conforme explica Coulanges[8]:

De primogênito em primogênito, não havia mais que um chefe de família; este presidia ao sacrifício, dizia a oração, julgava e governava. Só a ele, de início pertencia o título de pater, porque esta palavra, que designava o poder e não a paternidade, só podia aplicar-­se ao chefe de família. Seus filhos, seus irmãos e seus servos, todos o chamavam assim.

Eis, portanto, na constituição da família, o primeiro indício de desigualdade. O primogênito é o privilegiado para o culto, para a sucessão e para o comando. Depois de várias gerações formam-se naturalmente […] ramos mais novos que estão, pela religião e pelo costume, em estado de inferioridade em relação ao ramo mais velho e assim, vivendo sob sua proteção, devem obediência à sua autoridade.

[…] Novamente uma classe inferior. O cliente está abaixo não somente do chefe supremo da família, mas ainda dos ramos mais novos. Entre estes e o cliente há uma diferença: o membro do ramo mais novo, retomando à série de seus antepassados, chega sempre a uma pater, isto é, a um chefe de família, um de seus ancestrais divinos que a família invoca em suas orações. E como descendente de um pater, chamam-no, em latim, patríciu. O filho do cliente, pelo contrário, […] não alcançará senão algum cliente ou escravo. (grifos da autora)

Abaixo dos clientes estão os plebeus, considerados à parte do povo romano. A plebe não faz, originariamente, parte do povo que abrange os patrícios e seus clientes[9]. Isso porque, para fazer parte da família, o cliente é iniciado nos seus cultos. O plebeu, ao contrário, faz parte do povo conquistado, o que justifica a ausência de ancestrais comuns ao povo conquistador. Diakov e Kovalev[10] explicam as diferenças entre os plebeus e o povo romano:

Os plebeus, não tendo organização de clã, não viviam em regime comunitário, mas sim sob o regime de economia privada, familiar. As mulheres tinham, nas suas famílias plebeias, uma posição mais independente, o que foi uma das razões pelas quais os casamentos entre patrícios e plebeus eram interditos. Os plebeus não conheciam o culto dos antepassados, a sua divindade principal era Ceres, a deusa da fecundidade […].

Na Grécia, mais especificamente em Atenas, a mesma relação de inferioridade existe entre a classe dos eupátridas e as demais, constituídas por escravos e estrangeiros. Segundo Souza[11], os eupátridas ou cidadãos são os proprietários de terras, descendentes de pais cidadãos. Os metecos constituem a classe estrangeira e por isso não possuem privilégios políticos, podendo exercer qualquer tipo de atividade social e intelectual. E os escravos compõem a minoria da população; podendo conseguir alforria e trabalhar como assalariados.

Nota-se a família como núcleo fundador da civilização primitiva ocidental, pois ela, muito antes da formação das cidades, dita as regras de convivência e organização sociais provenientes do tempo em que os antepassados dos gregos, dos itálicos e dos hindus viviam ainda juntos na Ásia central[12]. A família forma juntamente com o direito, a economia, a religião, a moral e o estado, um conjunto confuso, não sendo possível analisar esses elementos separadamente, senão pelo viés da complementaridade entre todos eles.

Pragmaticamente, Dallari admite duas marcas fundamentais do Estado Antigo: a natureza unitária, por não haver limites territoriais definidos e a religiosidade. Aranha e Martins[13] complementam tal ideia ao afirmar a religiosidade do mundo antigo como elemento conectivo entre a autoridade e a divindade, levando ao entendimento de inexistência de ação política propriamente dita, em razão da crença de que agentes divinos promovem o agir humano.

2.1 – O Estado Grego: instituições da democracia ateniense

A organização social indo-europeia de origem patriarcal, baseada nas regras de um culto doméstico hereditário, ganha expressão histórica com a formação dos Estados Grego e Romano, instituídos pela ciência política como marcos referenciais de regimes democráticos. Embora Grécia e Roma possuam uma origem comum, ambos se destacam particularmente por terem adotado práticas distintas a partir de um determinado período.

E é a respeito das particularidades de cada um desses Estados que discorre o estudo a seguir, sendo válido frisar que se dá preferência à análise político-estrutural das instituições gregas e romanas nas fases de apogeu de suas experiências democráticas. Na Grécia, esse apogeu corresponde ao período clássico ateniense.

Assim, retomando o estudo histórico preliminar, Souza[14] ensina que:

Nos primeiros tempos, a base da sociedade grega eram os clãs patriarcais ou genos, formados de várias famílias que possuíam antepassado comum. A reunião das genos formava uma fratria (fraternidade). Um conjunto de fratrias dava origem a uma tribo. Com o desenvolvimento das tribos surgiu o Demos, isto é, o povo, coletividade de indivíduos que se regem pelos mesmos costumes e se mantêm unidos por um culto comum. Com a concentração do povo ao redor da acrópole apareceu a “polis”, simples fortaleza no início e que se tornou mais tarde, cidade-estado.

A partir da constituição da cidade, torna-se cidadão aquele que faz parte da família, que encontra em algum ramo de sua ascendência um pater famílias. Os outros que não têm em sua ascendência um eupátrida constituem classe inferior, inicialmente aquém da cidade. A polis é, pois, o agrupamento de famílias sob a força coesa do culto doméstico hereditário, do qual deriva a ideia de que a cidade é feita exclusivamente para e pelos cidadãos.

Em razão da arraigada divisão social, a democracia grega, cujo auge remonta o século V a.C, não abrange senão os cidadãos, homens da classe dos eupátridas. Isso porque a cidade herda as leis da família. As regras da religião doméstica perpetuadas nos costumes do povo são introduzidas nas instituições da cidade: “As instituições políticas da cidade nasceram com a própria cidade e no próprio dia em que esta nasceu; cada membro da cidade as trazia consigo, vivendo em germe nas crenças e na religião de cada homem”[15].

Assim, a lei nasce como consequência direta e necessária da crença, “[…] a própria religião, aplicada às relações entre os homens […]”, o que significa dizer que as leis têm caráter divino, e por conta disso são respeitadas. E do mesmo modo que se exige da família a figura do chefe religioso, a cidade também possui o seu. Nos primeiros tempos, o sacerdote do culto público é denominado rei e conjuga a esse cargo a função política. Após o estabelecimento do regime republicano, os magistrados assumem a posição de chefes políticos e religiosos da cidade. Os gregos os chamam oi entélei – cujo significado literal corresponde “àqueles que devem realizar o culto” – congregando as funções sacerdotais, de justiça e de comando[16].

Constata-se o quão enraizado às instituições municipais está o espírito religioso. Mesmo ao longo dos anos, com o resplandecer da democracia ateniense, esse espírito transparece na organização social grega. Conforme Coulanges[17] a democracia grega mantém as magistraturas, abaixo relacionadas, instituídas desde tempos anteriores a este regime de governo:

  • Arconte: zela pela perpetuidade dos cultos domésticos;
  • Rei: realiza os sacrifícios;
  • Polemarca: julga os estrangeiros e é o chefe do exército;
  • Tesmótetas: em número de seis, presidem os júris;
  • Hierópoioi: consultam os oráculos e fazem alguns sacrifícios;
  • Parásitoi: acompanham o rei e o arconte nas cerimônias;
  • Atlótetas: com mandato de quatro anos preparam a festa de Atenas;
  • Prítanes: formam uma associação permanente de cinquenta magistrados com a função de manutenção e continuação dos ritos sagrados.

Outras magistraturas, criadas no período da democracia ateniense cuidam das atividades de administração e organização da cidade:

Primeiro, os dez estrategos que se ocupavam da guerra e da política; depois, os dez astínomos que cuidavam da polícia, os dez agorânomos que vigiavam os mercados da cidade e do Pireu, os quinze metrônomos que fiscalizavam os pesos e as medidas; os dez guardas do tesouro; os dez recebedores de impostos e os onze encarregados da execução das sentenças[18].

Coulanges mostra que os magistrados têm a função de executar as leis e estão hierarquicamente abaixo do Senado, uma espécie de conselho de estado composto por cinco prítanes de cada tribo que exercem funções sagradas e deliberam todo o ano sobre os interesses religiosos ou políticos da cidade. Acima do Senado está a Assembleia do Povo, a qual cabe rejeitar ou aprovar os projetos de decreto apresentados pelo Senado.

Os prítanes ou os estrategos presidem as assembleias e os oradores debatem as propostas apresentadas. O dever de fiscalizar as leis cabe a magistrados especiais, designados de guardas das leis: “Em número de sete, vigiavam a assembleia, sentados em bancos altos, e pareciam representar a lei, que é superior ao próprio povo. Se percebessem ofensa alguma à lei, interrompiam o orador no meio do discurso e ordenavam a imediata dissolução da assembleia”[19]. Essa função de guardas das leis é semelhante ao exercício da atividade designada como custos legis pelo Ministério Público, que atua como fiscal da lei em juízo. Porém, não se pode dizer que os guardas das leis atenienses sejam os legítimos ancestrais do Ministério Público, uma vez que esses magistrados exerciam apenas uma das funções que hoje é atribuída aos membros da instituição e, também, porque eram responsáveis pela observância das leis nas decisões tomadas pela assembleia, e não por guardar as leis na resolução de conflitos tutelados pelo estado.

Tal estrutura política demonstra um movimento de participação direta dos cidadãos nas decisões políticas da cidade-estado, alternando-se no exercício das mais diferentes magistraturas. A democracia permeia todas as relações privilegiadas do estado e também está presente nos tribunais. Mas antes de falar sobre o sistema de resolução de litígios, vale lembrar que os cidadãos são os chefes absolutos das famílias. Eles decidem todas as questões referentes ao seu núcleo familiar, “[…] com direito de vida e de morte sobre todos os membros da gens”[20]. Assim, aqueles que estão submetidos à autoridade do pater famílias recebem a justiça de suas próprias mãos:

De toda a família, só o pai podia apresentar-se perante o tribunal da cidade; a justiça pública só existia para ele. Assim, o pai fica sempre responsável pelos delitos cometidos pelos seus. Se a justiça, para o filho e para a mulher, não estava na cidade, é porque se encontrava em casa. (…)

Esse direito de justiça, exercido na casa pelo chefe da família, era completo e sem apelação. Podia condenar à morte como o magistrado fazia na cidade; nenhuma autoridade tinha o direito de modificar suas sentenças[21].

Entretanto, conforme Mirabete[22], se o crime é de caráter público, por atingir interesses sociais, faz-se a apuração com a participação direta dos cidadãos, primando-se pela oralidade e publicidade dos debates. Já, o procedimento para crimes que atentam contra o próprio estado resume-se no seguinte:

[…] após denúncia perante a Assembleia ou Senado, era indicado o acusador, e o Arconte designava e compunha o tribunal popular para o julgamento. Perante este se manifestava o acusador, apresentando suas testemunhas, e em seguida a defesa. Os juízes votavam sem deliberar, e a decisão era tomada por maioria de votos, sendo absolvido o acusado se houvesse empate[23].

Nesse sentido, Sauwen Filho[24] afirma a inexistência da figura do acusador público profissional (função atualmente exercida pelos membros do Ministério Público) entre os gregos: “A acusação era então desempenhada por notáveis oradores que, movidos pelo interesse na causa ou pela paixão que o crime desencadeava, nem sempre agiam com imparcialidade própria do Ministério Público de nossos dias”.

Em razão das circunstâncias culturais acima explicitadas, vale dizer que, embora a Grécia tenha em Atenas o reconhecido título de “berço da democracia[25]“, o Ministério Público, instituição inerente a estados de regime democrático na contemporaneidade, não se forma originariamente desses povos antigos. Muito pelo contrário. A opção pela democracia direta permite a participação de homens eupátridas, em menor quantidade na população, em quase todas as instâncias de poder, visto que há tantos órgãos quantos homens para alternarem-se nas mais diferentes funções.

Aranha e Martins[26] mostram claramente os dados dessa divisão social:

[… ] Atenas possuía cerca de meio milhão de habitantes, dos quais trezentos mil eram escravos e cinquenta mil metecos (estrangeiros); excluídas ainda as mulheres e as crianças, apenas 10% do corpo social tinha o direito de decidir por todos, e era considerado cidadão.

Afora a evidente exclusão da maioria da população na democracia grega, é constante o entendimento de que cidade existe para seus cidadãos. E do ponto de vista interno dessa democracia, o estado organiza-se no sentido de manter as relações de poder existentes entre as classes. Não se vislumbra a possibilidade de inclusão social das classes escravas e estrangeiras. Tão nítido é esse sentimento de privilégio de classe, que mesmo com as mudanças na forma de governo e as reformas empreendidas por Sólon e Clístenes, o parâmetro para fazer parte da classe cidadã passa a ser a riqueza. Coulanges[27] ensina que, com o advento da República, o critério para se adquirir direitos políticos não é mais o nascimento, e sim a riqueza: “[…] essa aristocracia das riquezas formou-se em todas as cidades, não por artifício calculado, mas pela própria natureza do espírito humano que, saindo de um regime de profunda desigualdade, não concebeu imediatamente uma completa igualdade”.

O desenvolvimento histórico da sociedade grega leva ao entendimento de que muito dificilmente as circunstâncias culturais que a envolvem sejam propícias ao nascimento do Ministério Público como instituição assentada sobre valores amplamente democráticos, no sentido de abrangência de toda a população sob a proteção do estado. Entre os povos gregos antigos, não vinga a ideia de defesa/proteção dos direitos sociais para toda a população, sendo que os que tem acesso aos direitos políticos desse estado, já fazem parte das suas instituições.

2.2 – O Estado Romano: organização institucional da ‘res publica’ romana.

A cidade romana, bem como a cidade grega, nasce da confederação religiosa das famílias em cúrias, das cúrias em tribos e das tribos na cidade. É interessante notar a constituição dos povos que habitam a região do Lácio, antes da formação da cidade. Segundo informa Arruda[28], a ocupação inicial da península itálica se dá pelos etruscos ao norte, ao sul pelas colônias gregas já em meados do século VIII a.C. e ao centro pelos italiótas, indo-europeus por descendência e considerados “os verdadeiros ocupantes da Itália”.

Importante é tal constatação, pois a formação da cidade de Roma está envolta na lenda da “Eneida”, obra do poeta Virgílio na qual conta-se a história da fundação da cidade:

Segundo Virgílio, quando os gregos destruíram Troia, por volta de 1400 a.C, Enéas conseguiu fugir e, com a proteção da deusa Vênus e o destino traçado por Júpiter, chegou à Itália, onde teria fundado a cidade de Lavínio. Seu filho Ascânio fundou Alba Longa e seus descendentes, Rômulo e Remo, fundaram Roma no ano 753 a.C[29].

Assim, a constituição de Roma e a sua estruturação relacionam-se intimamente – seja pela ancestralidade indo-europeia ou pela descendência grega – com a cultura hereditária dos deuses domésticos, e, por conseguinte, com a proeminência do direito privado e o escalonamento das classes sociais em razão desse culto. Vale notar que embora o Estado Romano mantenha vinculação com a tradição cultural grega, possui pontos divergentes que permitem a sublevação de importantes cidades-estados da Grécia e outras regiões. Conquistas que tornam Roma imperiosa durante certo período da história.

Na Grécia, a origem étnica indo-europeia possibilita a formação de um tipo de estado peculiar na história da civilização ocidental, principalmente ao analisar a estrutura orgânica da cidade de Atenas. A presença do culto doméstico a deuses pessoais permite o estabelecimento de uma sociedade patriarcal e enraizada no critério de inclusão/exclusão pela descendência. No que tange ao conceito de justiça, o estado grego ateniense caracteriza-se pela proeminência do direito privado sobre o público, no sentido de que as famílias constituem uma unidade estatal autônoma, em que o pater familias administra a justiça. E com relação às lides tuteladas pelo estado, designa-se uma pessoa para realizar o julgamento e as partes envolvidas acusam e se defendem sem o intermédio de nenhum órgão estatal especializado. Por isso, não se encontra nas instituições gregas nenhum órgão similar ao Ministério Público, porque o estado fundamenta-se sobre uma cultura notavelmente privada.

Vale salientar as características que distinguem o espírito municipal grego do espírito municipal romano, uma vez que esses fatores de distinção determinam a dominação de Roma sobre as cidades-estados gregas, e não o contrário. Partindo do pressuposto de que gregos e romanos possuem uma mesma descendência e costumes bastante similares, por que apenas uma dentre as mil cidades da Grécia e da Itália é capaz de subjugar todas as demais[30]?

Para os gregos, explica Coulanges[31], a palavra pátria significa a terra dos pais, a terra que mantém sepultos os ossos de seus ancestrais e é ocupada por suas almas. O espírito de pertencimento a terra é forte. “Toda cidade tinha grande zelo pela sua autonomia; dava-se esse nome ao conjunto que compreendia o culto, o direito, o governo e toda a sua independência religiosa e política”.

Por essa razão, os antigos nunca puderam estabelecer, nem mesmo conceber, qualquer organização social além da cidade. Nem gregos nem italianos, nem mesmo os próprios romanos durante muito tempo admitiram a possibilidade de algumas cidades se unirem e viverem em condições semelhantes sob um mesmo governo.

Nesse ponto os romanos assumem um espírito municipal diferenciado ao longo de sua trajetória de conquistas, por isso a pertinência de se destacar os traços que identificam o caráter expansionista do Estado Romano. Coulanges distingue dois períodos nessa obra imperialista: o primeiro coincide com o tempo do espírito municipal autônomo, semelhante ao espírito patriótico grego; o segundo corresponde à superação desse espírito municipal, convertido no sentimento de cosmopolitismo da cultura romana.

Primeiramente cabe frisar a composição étnica da população romana, pois dife­rentemente dos gregos, os romanos advêm de uma mistura de vários povos: latinos (de origem indo-europeia), troianos, gregos, sabinos e etruscos. Tal miscelânea cultural permite que Roma seja um grande agregado de famílias com as mais diferentes origens e cultos.

A população romana era, pois, uma miscelânea cultural de várias raças, o seu culto, união de muitos cultos, o seu lar nacional associação de diferentes lares. Roma era quase a única cidade cuja religião municipal não a isolava das demais. Estava ligada a toda a Itália, a toda a Grécia. Poucos povos havia que Roma não pudesse admitir em seu lar[32].

É fato que os romanos aproveitam tal característica ao cativar pari passu os diversos cultos das diferentes raças que a compõe. Inicialmente, assim como nas cidades gregas, vigora o espírito municipal de autonomia, em que cada família cultiva isoladamente seus cultos e a cidade ainda não se constitui sobre a partilha do culto comum. Porém, aos poucos, os romanos utilizam estratégias para agregar todos os povos da Itália mediante um único governo. Uma delas encontra-se na lenda do rapto das mulheres sabinas. Coulanges[33] explica que o intuito de Rômulo ao raptá-las é, não conquistar algumas mulheres, “[…] mas o direito de casamento, isto é, o direito de contrair relações regulares com a população sabina […]”. E assim, à medida que Roma conquista povos e territórios, adota também os cultos das cidades vencidas.

Roma conquistava os deuses dos vencidos, mas não abria mão dos seus. Guardava só para si os seus protetores, e até trabalhava para aumentar o seu número. Empenhava-se em ter mais deuses tutelares que qualquer outra cidade.

Como além disso esse culto e deuses eram, na maior parte, tomados aos vencidos, Roma estava, por seu intermédio, em comunhão religiosa com todos os povos. [… ] Com todas as cidades Roma tinha a sua religião municipal, fonte de seu patriotismo; mas foi também a única cidade que usou dessa religião para seu engrandecimento. Enquanto pela religião, as outras cidades estavam isoladas, Roma teve a habilidade ou a sorte de usá-la para atrair e dominar tudo.

Enquanto domina o espírito municipal autônomo, o regime de governo é monár­quico e o poder real, considerado uma ordem divina[34]. Coulanges[35] realça a formação do regime monárquico romano ao destacar as diferentes origens dos reis: “Seu primeiro rei foi um latino; o segundo, conforme a tradição, um sabino; o quinto era, segundo se diz, filho de grego, e o sexto nasceu etrusco”. E com base em Arruda verifica-se a tripla função exercida pelos monarcas, o rei é o “[…] chefe supremo, o grande sacerdote e o supremo juiz […]”, e assessorado pelo Senado, um conselho dos anciãos constituído pelos chefes das famílias.

A passagem da monarquia para a república demonstra a forte influência da classe patrícia sobre as questões de governo. Arruda[36] conta que a monarquia entra em declínio quando os últimos reis etruscos assumem o governo, dentre eles Sérvio Túlio, que restaura a antiga divisão das tribos urbanas e reparte a população não mais em razão do culto, mas pelo critério da riqueza. A partir de então, os patrícios sentem-se ameaçados e acabam por destituir o último rei etrusco chamado Tarquínio, o Soberbo, em razão da sua aproximação com as baixas camadas sociais. O autor ainda enfatiza que a implantação do governo republicano pela aristocracia patrícia significa a recuperação do poder perdido diante da intervenção dos reis etruscos em Roma[37], de modo que, inicialmente, as instituições republicanas são aristocráticas, e no decorrer dos séculos adotam características democráticas, com a participação da classe plebeia no poder.

Importa saber que elementos identificam o regime republicano romano. Chauí[38] demonstra três principais:

1.  o governo está submetido a leis escritas impessoais; 2. a res publica (coisa pública) é o solo público romano, distribuído às famílias patrícias, mas pertence legalmente a Roma; 3. o governo administra os fundos públicos (recursos econômicos provenientes de impostos, taxas e tributos) […].

Complementando os elementos expostos por Chauí, Arruda[39] afirma que o regime republicano resulta da mistura de elementos monárquicos, representados pelas magistraturas; aristocráticos, ilustrados pelo senado, e democráticos, cuja maior expressão encontra-se nas assembleias. Na distribuição do poder estatal, o Senado é o principal órgão. Os senadores têm cargo vitalício e compõem um conselho de anciãos responsável por “[…] garantir a integridade da tradição e da religião; supervisionar as finanças públicas; conduzir a política externa; administrar as províncias; dar seu parecer sobre a escolha de um ditador; autorizar ou não a concessão de honras do triunfo aos generais vencedores”. Os dois cônsules, segundo Chauí[40], estão no centro do governo, são eleitos pelo Senado e pelo Povo romano, pertencem à classe patrícia e se inserem no rol de magistraturas do poder executivo. Aos cônsules se entregam dois poderes: “[…] o administrativo (gestão de fundos e serviços públicos) e o imperium, isto é, poder judiciário e militar”.

Arruda[41] salienta que todas as magistraturas são coletivas, ou seja, exercidas por dois ou mais magistrados em cada cargo, destacando as seguintes magistraturas executivas abaixo, hierarquicamente, dos Cônsules:

Pretor – Ocupava o cargo imediatamente inferior ao do cônsul. Sua função era ministrar a justiça. O pretor urbano distribuía a justiça nas cidades e o pretor peregrino, no campo e entre os estrangeiros. Com a ampliação das conquistas, vários pretores foram indicados para o cargo de governadores de províncias.

Censor – Os censores, antigos cônsules, eram escolhidos a cada cinco anos. Suas funções eram fazer o recenseamento dos cidadãos com base na sua riqueza; elaborar o Álbum Senatorial[42]; orientar os grandes trabalhos públicos e vigiar a conduta moral dos cidadãos.

Questor – Era o encarregado da administração do tesouro público, depositado no Templo de Saturno. Os questores acompanhavam os cônsules nas campanhas militares, prestando orientação financeira.

Tribuno da Plebe – Esse magistrado surgiu em Roma como resultado das pressões da plebe em favor de reformas sociais. Os tribunos da plebe eram em número de 10 e podiam vetar todas as leis contrárias aos interesses da classe plebeia, menos em época de guerra e quando as leis eram promulgadas por um ditador.

Edil – Os edis eram encarregados da conservação pública. Suas funções incluíam: policiamento, repartição dos mercados, abastecimento e distribuição de víveres, etc. Havia também os edis da plebe. (grifos constantes nos originais)

O Povo romano, que no tempo da república já inclui a plebe, tem uma função importante: integrar as assembleias deliberativas que decidem os rumos do Estado Romano. O historiador[43] explica que a Assembleia Centuriata é a mais importante no período republicano, pois cabe a ela a votação das leis e eleição dos cônsules, pretores e censores. Lembrando que as centúrias constituem grupos de soldados organizados conforme a capacidade de armamento de seus integrantes.

Diante da exposição da estrutura orgânica das instituições republicanas em Roma, cumpre dizer que em nenhuma delas há vestígios de um “órgão governamental de defesa da sociedade, guardião da lei e das liberdades democráticas”. Nem mesmo, constatam-se indícios de um órgão especializado de acusação criminal. Sauwen Filho[44] afirma que os romanos com certeza não conhecem a figura do acusador público, pois em Roma, como de resto em todas as civilizações antigas, compete não ao estado, mas à vítima ou à sua família proceder contra o autor do crime.

A figura do acusador público e do defensor da sociedade não aparece na Antiguidade, pelos próprios componentes culturais, morais e políticos que compõem as sociedades mais avançadas da época, no caso Atenas e Roma. Contudo, muitos institutos do direito romano, bem como os princípios delineadores da democracia ateniense simbolizam um legado cultural e científico à história do mundo ocidental. O Brasil, mesmo sendo um Estado de formação tardia e regime democrático recente, ao longo de sua trajetória político-jurídica está ligado à tradição cultural greco-romana.

A própria instituição do Ministério Público representa a evolução da democracia direta formulada pelos atenienses à democracia representativa dos norte-americanos. Pois nos tempos antigos, o cidadão, ao participar da vida política da cidade, protege-se contra os arbítrios do estado exercendo a função de legislador ao deliberar nas assembleias; incumbindo-se das funções de administração e fiscalização quando é eleito magistrado; defendendo-se nas lides penais ao atuar como “advogado”, e ainda exercendo a atividade acusatória quando é a vítima em questão. A vida activa dos cidadãos promove, protege e delibera sobre os interesses públicos, que – em última análise – são seus interesses particulares também.

A liberdade dos antigos é, por fim, o direito à livre participação na vida da cidade[45]. Com a adoção do regime democrático representativo pelos Estados Ocidentais contemporâneos, o sentido de liberdade também evolui, passa a significar maior dedicação à vida privada do que à vida pública. E em uma sociedade regida pelo sistema de representatividade política, torna-se ainda mais imprescindível a existência de um órgão estatal especializado pela defesa dos interesses públicos em nome de todos os cidadãos.

E essa trajetória histórica sublinha os motivos que levam as democracias representativas atuais a instituírem órgãos responsáveis pela manutenção da justiça, pelo zelo às instituições democráticas, pela defesa da ordem jurídica, política e do cidadão perante a coletividade. E em cada período dessa trajetória verifica-se a inserção de novos elementos formadores das sociedades políticas atuais.

Transcorrida a Antiguidade Clássica, surge de uma nova ordem social e econômica, derivada da fusão cultural entre romanos e germânicos e pela incorporação da religião cristã, responsável por estabelecer – através da Igreja – um ideal de universalidade que transparece nas instituições de poder vigentes durante o período medieval. O Estado Medieval evidenciará o cristianismo e o feudalismo como seus principais elementos, corroborando para o nascimento de sua antítese, o Estado Moderno, no qual o Ministério Público encontrará um ambiente propício para nascer.

3 – DO ESTADO MEDIEVAL AO ESTADO MODERNO: O NASCIMENTO DO ESTADO DE DIREITO E A INSTITUIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O Império Romano atinge o auge nos dois primeiros séculos da Era Cristã, quando ocupa um vasto território, desde a Inglaterra (até os confins da Escócia), a Gália, a Ibéria, a parte meridional da Germânia até a Península Balcânica ao sul do Danúbio; e o Norte da África e uma parte da Ásia ocidental[46]. A grande extensão territorial ao passo que significa a intensificação das relações culturais e econômicas com vários povos, resulta em uma grave crise militar, religiosa, econômica e política que acaba por fragmentar o Império Romano, transfigurando o continente europeu em uma nova ordem social, denominada feudalismo.

O feudalismo perpassa todo o período medieval, desde meados do século IV até o século XVIII, e decorre da confluência das culturas germânicas e romanas. Arruda explica que uma crise geral ocorrida entre o século III e V é responsável por facilitar a invasão dos germanos no território do Império, apontando como principal causa a escassez de escravos, que resulta na redução na produtividade dos latifúndios. Essa escassez relaciona-­se diretamente à diminuição das ofensivas militares, pois o abastecimento de escravos no Império ocorre através das guerras e conquistas de novos povos; à expansão do cristianismo, que proíbe a escravidão e difunde a ideia de salvação para os proprietários de escravos que os libertassem, e – em termos econômicos – a dificuldade de manutenção dos grandes latifúndios e a consequente divisão das propriedades em unidades menores de produção.

Paralela a essa crise, as invasões bárbaras contribuem para a transmutação da vida urbana das cidades para o campo. O centro de produção econômica passa a ser a vila – base dos feudos medievais – em torno da qual se aglomeram homens dependentes de um senhor que dirige a vida política, militar e econômica da sua propriedade. Os povos germânicos adotam a economia natural, baseada na troca para consumo imediato, a divisão estamental de classes e as relações políticas seladas em contratos de reciprocidade e confiança.

Da fusão entre a cultura romana e germânica surge o feudo, unidade social do Estado Medieval, caracterizado pela autossuficiência econômica; descentralização do poder político e divisão social em estamentos: a nobreza, o clero e os servos. Os nobres correspondem aos patrícios romanos, donos dos latifúndios; o clero, à classe sacerdotal instituída com a oficialização do cristianismo no Império Romano e os servos, aos antigos clientes que buscavam proteção na classe patrícia. Ainda existem poucos escravos, apesar das restrições da Igreja, homens livres chamados vilões, e funcionários dos senhores feudais, homens de confiança com funções de fiscalização e administração dos feudos[47].

Dentre os funcionários reais citados por Sauwen Filho[48] como possíveis precursores do Ministério Público, estão os Saions (oriundos do direito visigodo), os Senescais (surgidos entre os povos fixados na antiga Gália), os Balios (nascidos nos povos escandinavos) e os Missi Dominici (funcionários do Reino Franco, maior reino feudal durante a Idade Média).

Os Saions são funcionários fiscais do Reino germânico dos Visigodos, que se instala na segunda metade do século V na Ibéria até a primeira década do século VIII, quando ocorre a dominação mulçumana em boa parte dessa península. Os Saions “[…] praticavam atos, hoje a cargo do Ministério Público, como a defesa dos órfãos e a acusação contra tutores relapsos ou criminosos”. Todavia, conforme o jurista, boa parte da doutrina não admite a ancestralidade do Ministério Público nos Saions.

Os Senescais e os Balios, por sua vez, adotam a função de defesa dos senhores feudais, o que torna impossível serem considerados correlatos aos atuais agentes do Ministério Público. Porque faltar a eles o desempenho do ofício de interesse público, posto que servem exclusivamente aos senhores feudais e não ao Estado. E os Missi Dominici, instituídos por uma capitulare de Carlos Magno (monarca do Reino germânico dos Francos), são uma espécie de inspetores peregrinos que fiscalizam a atuação dos delegados do soberano, ouvindo queixas e coibindo abusos, além de possuírem atribuições semelhantes aos atuais curadores de órfãos e incapazes. Porém, o traço evidente de parcialidade dos funcionários de Carlos Magno impede a aceitação dos Missi Dominici como ancestrais do Ministério Público[49].

Além da invasão dos bárbaros e da crise instalada na fase final do Império Romano, o advento do cristianismo contribui para o processo de cristalização do sistema feudal. Pois a Igreja se constitui no principal veículo de unificação dos feudos durante a Idade Média, derivando daí a ingerência do direito canónico nas questões de estado. Segundo Gilissen[50], o direito medieval admite duas principais fontes: o direito romano e o canónico; que no período de sua vigência, do século V ao século XIV, legitima a instituição de tribunais eclesiásticos para resolução de litígios, tanto em matéria civil quanto criminal.

Nesta época as jurisdições laicas estão em plena decadência na sequência do enfraquecimento do poder real pelo feudalismo. A Igreja, na maior parte da Europa Ocidental, atinge seu apogeu e teve possibilidade de conhecer largo domínio do poder jurisdicional, mesmo em relação aos leigos.

No que diz respeito às matérias civis e penais, os tribunais eclesiásticos julgam tanto leigos como clérigos nos casos de infrações contra as regras do direito canónico, como as práticas da usura e adultério, e também em casos de delitos considerados heresias, sacrilégios, feitiçaria, etc. Em matéria penal a Igreja tem competência praticamente exclusiva, enquanto em matéria civil admite competência concorrente, dando-se preferência ao tribunal invocado em primeiro lugar.

No domínio penal, o processo permaneceu durante muito tempo dependente de queixa (isto é, acusatório) que se desenrolava mais ou menos como o processo cível. Nos finais do século XII apareceu o processo oficioso, por inquirição (inquisitio) ordenada pelo juiz desde que tivesse conhecimento de uma infração (procedimento inquisitorial). Este processo foi largamente aplicado pelo Santo Ofício na luta contra as heresias; levou a permissão de ordenar a tortura (quaestio), instituição recebida do direito romano e aplicada contra os heréticos por bula de Inocêncio IV de 1252[51].

O processo penal inquisitório caracteriza-se pela existência de apenas uma pessoa responsável pelas funções de defender, acusar e julgar, o que impede a imparcialidade de julgamento. O processo é secreto e não admite o contraditório, isto é, não é permitido ao acusado o direito de contrariar as afirmações que o colocam na situação de réu. Os acusados são presumidos culpados e por isso busca-se a verdade real, sendo a tortura meio de confissão.

Segundo Gilissen, é “de grande importância” conhecer os seguintes motivos que justificam o poderio da Igreja Católica na Idade Média como expressão do direito e, por conseguinte, como locus competente de resolução de conflitos:

  1. O caráter ecuménico da Igreja: desde os seus primórdios, o cristianismo coloca-se como a única religião verdadeira para a universalidade dos homens […]. Esta tendência universalista deu ao direito da Igreja um caráter unitário […].
  2. Certos domínios privados foram regidos exclusivamente pelo direito canónico, durante vários séculos, mesmo para os laicos […].
  3. O direito canónico foi, durante toda a Idade Média, o único direito escrito […].
  4. O direito canónico constituiu objecto de trabalhos doutrinais, muito mais cedo que o direito laico; constituiu-se assim uma ciência do direito canónico. O direito canónico, sendo pois um direito escrito e um direito erudito muito antes do direito laico na Europa Ocidental, exerceu uma profunda influência na formulação e desenvolvimento deste direito.

Assim, pode-se falar, em certa medida, que a Igreja Católica medieval contribui para a dogmatização do direito e, no que tange ao processo penal, instaura um novo tipo de sistema, em que os particulares não são mais responsáveis pela defesa e acusação, pois o juiz inquisidor tem por especialidade essas funções. Enquanto vigora o sistema inquisitório não se vislumbra um órgão profissional especializado na atividade acusatória, como o é o Ministério Público. Até porque a divisão em estamentos e a generalização das ordens eclesiais impedem a atuação de um órgão de defesa de interesses públicos.

Não obstante o poderio da Igreja, o crescimento populacional, de epidemias e de inúmeras guerras causa uma crise que assola os domínios feudais. Além disso, o reflorescimento comercial gera conflitos entre a burguesia em acessão e as proibições de usura pela Igreja, que tem seus dogmas questionados também pelas vertentes protestantes e por teóricos renascentistas. Conforme Figueira[52], esse contexto aponta à ascensão dos reis e a consequente unificação em torno do Estado Moderno e Absoluto.

Filipe II, rei da França do início do século XIII, é um dos primeiros monarcas a adotar medidas de centralização política encarregando funcionários especiais para recolher impostos em todo reino. Outra medida é tomada por Luís IX, que, organizando uma reforma judiciária, fortalece os tribunais reais em detrimento dos senhores feudais. Portanto, o fortalecimento dos monarcas contribui para a contínua decadência dos tribunais eclesiásticos e ascendência dos tribunais laicos.

Com a transferência das competências da jurisdição eclesiástica para os domínios do Estado, verifica-se a necessidade de representantes dos reis nas cortes de justiça, a fim de que os interesses do Estado – considerados do próprio monarca – estejam representados por pessoas qualificadas.

Findando a Idade Média, com a crescente complexidade do Estado, os soberanos começaram a instituir tribunais regulares para distribuir a Justiça em seu nome. Para contrabalançar a progressiva autonomia dos tribunais, que às vezes, contrariavam os interesses da Coroa, os reis instituíram procuradores para promover a defesa de seus interesses […][53].

O rei Felipe IV, da França, é o primeiro a legalizar a figura dos procuradores do rei com a publicação das Ordenanças de 25 de março de 1302. As Ordenanças instituem duas classes de procuradores: os advocats du roi, que têm atribuições exclusivamente cíveis, e os procureurs du roi, que possuem as funções de defesa do fisco e de natureza criminal[54]. Conforme Tornaghi[55], “o Ministério Público francês nasceu da fusão destas duas instituições, unidas pela ideia básica de defender os interesses do Soberano que representava os interesses do próprio Estado”.

Em Portugal, segundo Alexandre de Moraes[56], a figura do procurador da Coroa já existe sob o reinado de Afonso III, a primeira de Portugal e que vai de 1139 a 1383. Em 1387, já na dinastia de Avis, o rei Don Juan I cria ‘El Ministério Fiscal’, que guarda certa semelhança com o Ministério Público atual.

Em que pese a observação de Tornaghi[57] de que o Ministério Público “não surgiu de repente, num só lugar por força de algum ato legislativo”, mas “formou-se lenta e progressivamente, em resposta às exigências históricas”, a doutrina majoritária estabelece a França como berço do Ministério Público:

[…] é fora de dúvida e os autores, de um modo geral […] são unânimes em apontar a França como o berço do Ministério Público. […] é certo que, como instituição, o Ministério Público surgiu na França, tendo inclusive até data precisa, 25 de março de 1302, quando Felipe, o Belo, através de sua conhecida ordonnance, reuniu tanto seus procuradores, encarregados da administração de seus bens pessoais, quanto seus advogados, que lhe defendiam os interesses privados em Juízo e que, em conjunto eram conhecidos pelo nome genérico de les gens du roi, numa única instituição.

Com o decorrer do tempo, a instituição deixou de zelar apenas pelos interesses privados do soberano, passando a exercer funções de interesses do próprio Estado. Vale dizer, passou a desenvolver um “mister público”, ao invés de apenas exercer um “mister privado”, a zeladoria dos interesses do monarca; e foi então que a designação Ministério Público se consagrou […][58].

Cabe perguntar quais são essas exigências históricas a que se refere Tornaghi, capazes de propiciar o surgimento do Ministério Público e porque a França se destaca nesse contexto histórico. Para isso, prescinde-se esclarecer quais os elementos que identificam o Estado Moderno, pois só então se poderá compreender o contexto histórico que gerou o Ministério Público e em determinadas condições.

Nas palavras de Bobbio[59], o Estado Moderno nasce na dissolução da sociedade medieval de caráter pluralista, onde o direito se origina de diferentes fontes de produção e se organiza em diversos ordenamentos. Essas fontes são os costumes, o direito germânico, romano e eclesiástico, incorporados à sociedade com a organização dos feudos. Tal pluralismo jurídico percorre um duplo processo de unificação com a formação das monarquias absolutistas que caracterizam o Estado Moderno. Primeiro, a unificação de todas as fontes de produção jurídica na lei, como expressão da vontade do soberano; segundo, a unificação de todos os ordenamentos jurídicos superiores e inferiores ao Estado no ordenamento jurídico estatal, cuja expressão é a vontade do príncipe.

O processo de separação entre a Igreja e o Estado prossege até que, a partir do século XVI, conforme Gilissen[60], o ensino do direito canônico perde interesse para os laicos, inicialmente na França e depois noutros países, e “Mesmo onde o catolicismo se mantém, o estado laiciza­se; rejeita a intervenção da Igreja na organização e funcionamento dos seus órgãos políticos e judiciários”. “É por isso que a competência dos tribunais eclesiásticos é cada vez mais restrita”.

Na França, como se vê, a constituição do Estado nacional absoluto aflora mais cedo e é nela também que o antiabsolutismo se desenvolve tomando dimensões extraterritoriais com os princípios da Revolução Francesa em fins do século XVIII.

[…] os franceses consideraram-se investidos de uma missão universal de libertação dos povos. E efetivamente, o espírito da Revolução Francesa difundiu-se, em pouco tempo, a partir da Europa, a regiões tão distante quanto o subcontinente indiano, a Ásia Menor e a América Latina[61].

Essa reação ao poder absoluto dos reis guarda relação com a evolução do Ministério Público, pois é esse o contexto da tese da separação e de especialização dos poderes do Estado que o Ministério Público se evidencia como órgão que deve se distanciar das influências do poder executivo, a fim de responder às exigências históricas de limitação do poder estatal. E conjugado ao princípio de soberania do povo (demos), o desafio em que se coloca é o de encarnar a função de defesa do interesse público, como interesse geral do povo.

De modo que a separação entre o poder judiciário e o executivo, exige a distinção das funções de defesa, acusação e julgamento na resolução dos conflitos, agora tutelados pelo Estado. A introdução de um sistema “acusatório” de processo penal, verificada com a separação dos poderes estatais, resume a evolução do Ministério Público como órgão, antes a serviço do rei, representante do interesse público e guardião da lei nos procedimentos do poder judiciário. Assim,

O que se sabe sobre a evolução do Ministério Público é que houve um processo paulatino de formação e separação da atividade acusatória do âmbito do Poder Judiciário. Neste sentido, os princípios liberais de tripartição dos poderes significaram, na maioria dos países ocidentais, o abandono do processo inquisitorial promovido pelo Poder Judiciário pela criação de uma instituição autônoma e especializada, como encarregada de tal tarefa[62].

Sauwen Filho[63] explica a passagem da monarquia absoluta francesa à fase republi­cana. Dentre as modificações previstas pela Assembleia Nacional Constituinte de 1789, está a orientação de retirada da natureza política do Ministério Público, para torná-lo simples órgão judiciário independente do rei, e, a vitaliciedade dos seus membros, que continuariam a ser nomeados pelo rei, mas só poderiam ser demitidos por comprovada corrupção. Outro avanço ocorre em agosto de 1790, quando a Assembleia Nacional divide as funções do Ministério Público em dois órgãos distintos, segundo o autor, é dessa data que se evidenciam as duas funções de dominus litis e de custos legis da Instituição, conservadas até os nossos dias:

[…] um Comissário do Rei, nomeado pelo soberano e a quem cabia a missão exclusiva de zelar pela aplicação da lei e pela correta execução das decisões judiciais, e o Acusador Público, eleito pelo povo e que tinha a função de sustentar, diante dos tribunais, a acusação dos réus.

Tal condição de custos legis caracteriza a evolução do Ministério Público de acordo com o paradigma da legalidade do Estado de Direito. Este é controverso ao Estado Moderno na medida em que pretende limitar o exercício do poder estatal, através da separação dos poderes do Estado, do princípio da soberania popular e do reconhecimento de direitos individuais em uma Constituição. O Ministério Público se consolida, então, como órgão promotor e defensor do bem público nos tribunais. Pois tanto como custos legis quanto como dominus litis, passa a atuar na função de fiscal da lei e na promoção da ação penal pública, exercendo parcela da soberania estatal, entendida como soberania dos interesses do povo.

Essas ideias iluministas norteadoras do Estado de Direito e os seus reflexos na evolução do Ministério Público francês alcançam diversos países latinos, dentre eles Portugal e Espanha. E, através dos quais, o legado cultural e científico de aproximadamente quatro milênios de desenvolvimento do continente europeu chega ao Brasil e a outros países da América Latina. O Ministério Público brasileiro irá se formar a partir da matriz lusitana, por meio da legislação vigente no Brasil colônia.

4 – ORIGENS DO MINISTÉRIO PÚBLICO PORTUGUÊS E A SUA EVOLUÇÃO NO BRASIL

O Ministério Público moderno origina-se dos procuradores do rei na França, e o Ministério Público brasileiro desenvolve-se efetivamente a partir dos procuradores do rei do Direito lusitano[64]. Conforme visto, o Ministério Público francês data do início do século XIV (25 de março de 1302), o de Portugal, do mesmo modo, “segundo aceitação unânime da doutrina portuguesa”, somente surge como instituição organizada a partir do século XIV[65], porém sem data precisa de nascimento. É válido afirmar, arrimada em Sauwen Filho[66], que o Ministério Público português transmite certas características peculiares ao Ministério Público brasileiro, decorrentes do processo histórico de constituição do Estado nacional português que merecem ser esboçadas, para se chegar ao conhecimento da formação da Instituição no Brasil.

Prefaciando as Ordenações Filipinas, Almeida[67] conta que Portugal desde logo fora território do Império Romano, de onde Lisboa chega até a obter o privilégio de seus cidadãos gozarem dos mesmos direitos pertinentes aos de Roma. E assim, como as outras regiões da Europa, a Ibéria não tarda a ceder às invasões bárbaras a partir do século V d.C. Dentre os germanos que se fixam na região, os visigodos se organizam política e militarmente até formar o Estado nacional português. A forma de governo visigótico é o da monarquia eletiva e o sucessor do rei é escolhido por uma assembleia de prelados e nobres.

Quanto à legislação, Gusmão[68] – explica em nota de rodapé – as influências do direito romano e do direito canónico na Lex Romana Wisigothorum, que resultam mais tarde nas fontes históricas das compilações legislativas do Estado português, denominadas Ordenações do Reino.

Na Península Ibérica, vigiu o direito romano vulgar, que depois da invasão dos visigodos foi substituído pela Lex Romana Wisigothorum (§166), compilação do direito romano e de costumes observados pelos invasores, aplicável exclusivamente aos ibéricos, pois os germânicos eram regidos por seus costumes. A partir de 654, foi introduzido na Península Ibérica o Líber Iudiciorum (§166), também denominado Fórum Iudiciorum, compilação que integrou o direito romano com o direito consuetudinário germânico e com o direito canónico, compreendendo direito penal, direito civil, direito processual e direito eclesiástico, que se tornou legislação comum a germanos e ibéricos.

Após a invasão sarracena, essa compilação vigora até o século XIII. Enquanto isso, parte da população visigótica refugia-se na região das Astúrias, seria fundado posteriormente o reino “chamado de Oviedo e, finalmente, sob Afonso I, denominado reino de Leão”, que mais tarde comporia o Estado português. Segundo, Almeida[69], “Tradição quase unanimemente consagrada, ensina que” os árabes, “em geral, permitiram, durante a dominação, que os cristãos se regessem por suas leis próprias”.

Com a expulsão dos mouros, o rei Afonso VI reúne os diversos reinos isolados que compunham a Ibéria (Leão, Castela, Galécia e Lusitânia), casa com a “primogênita de Henrique da Borgonha, descendente – ao que corre – de Hugo Capeto, tronco 3° dos reis da França”. E em fim, no ano de 1139, seu filho, Dom Afonso Henriques é aclamado Rei de Portugal, proclamando-se Afonso I da dinastia de Borgonha, ano que marca o início do Estado moderno português.

A partir de então, dá-se um movimento de reorganização das instituições estatais de Portugal. Afonso II institui Cortes Gerais, assembleias deliberativas para aplicação das primeiras leis gerais no país. Sob o reinado de Afonso III, semelhante ao que ocorre na França, dá-se o fortalecimento da jurisdição real em detrimento das jurisdições dos feudos. Criam-se, assim, “[…] magistrados régios, destinados a julgar, nas regiões portuguesas, em que os nobres, arrogando-se competência que não tinham, laboravam em erros e injustiças”[70]. De modo que, em 1289, a figura do Procurador da Coroa passa a existir em Portugal[71].

O cargo de Procurador do Rei, como função regular e a prerrogativa de “chamar a Casa do Rei” as pessoas que tinham questões com o monarca, surgiu somente durante o reinado de Dom Afonso III, pelo diploma de 14 de janeiro de 1289, sem contudo se constituir, ainda, em magistratura instituída, o que só ocorreria mais tarde, com a criação dos tribunais regulares e com a publicação de leis que viriam substituir o primitivo direito dos forais privativos de cada região […][72].

Mais tarde a Revolução de Avis (1383-1385) empossa o rei Dom João I da casa real de Avis[73].

Desde o tempo de Afonso II até dois séculos depois, Portugal regeu-se praticamente pelos forais[74], pelos direitos romanos e canónicos e pelos usos e costumes. Daí a diversidade de soluções que a multiplicidade dos forais estabelecia, emergindo de tudo a necessidade de uma compilação que unificasse a aplicação do direito no Reino. Coube a Dom João I a tarefa de consagrar seus cuidados a esse problema nacional[75].

Conforme Moraes[76], em 1387, o Rei Don Juan I, responsável por criar a instituição do Ministério Público em Portugal, cria ‘El Ministerio Fiscal’, que guarda certa semelhança com o Ministério Público atual. Quanto à compilação de leis iniciada por Dom João I, no século XIV, Almeida informa que somente é concluída em 1446, sob o reinado de Afonso V, justificando a designação recebida: Ordenações Afonsinas. Estas constituem “o mais antigo código de leis portuguesas”, e aceitam – subsidiariamente – o direito romano, salvo onde houver pecado, caso em que se deveria preferir o canónico.

O estudo do direito público português revela-nos que as relações entre governantes, antes das Afonsinas, estavam fundamente contaminadas do direito visigótico. Como neste, era o rei chefe supremo de todos os poderes do Estado, exercendo-os pessoalmente, ou por delegados. Sua autoridade, porém, advinha de Deus, conforme doutrina de direito divino esposada pelos concílios de Toledo e neles proclamada sucessivas vezes. Mas foi por via de caminhos absolutamente temporais, que revoltas de nobres modificaram aqui e acolá, é que tal poder se foi alargando. E foi sob esse estado de coisas que se baixaram as Ordenações Afonsinas, em 1446 ou em 1447, sem embargo de a elas ter preexistido um registro oficial de leis do Reino[77].

A respeito da instituição do Ministério Público nas Ordenações Afonsinas, vale a transcrição das palavras de Sauwen Filho:

[…] tendo se evidenciado no reino a necessidade se estabelecer uma instituição que apoiasse os vassalos que reclamassem justiça e ainda que defendessem o interesse geral, surgiu a figura do Procurador da Justiça, regulada no Título VII do Livro I das Ordenações Afonsinas, publicadas entre 1446 e 1447, onde constavam os deveres do ofício nestes termos: “E veja e procure bem todos os feitos da justiça e das Viúvas e dos Órfãos e Miseráveis Pessoas, que a nossa Corte vierem”[78].

As Ordenações Manuelinas sobrevêm, então, em 1521, trazendo poucas emendas às primeiras Ordenações[79], que não chegam a viger no Brasil. Dentre as inovações, é somente com elas que se estabelecem “as obrigações relativas aos ofícios dos Procuradores de Feitos do Rei e o Promotor da Justiça da Casa de Suplicação e dos Promotores da Justiça da Casa Civil, compendiadas que foram nos Títulos XI e XII do Livro I daquele ordenamento”[80]. Tanto Macedo Júnior[81] quanto Sauwen Filho[82] admitem as influências do direito francês nas Ordenações Manuelinas, mas é somente este último autor que explica onde se evidenciam tais influências no tocante ao Ministério Público.

As Ordenações Manoelinas estabeleciam a existência na Casa da Suplicação de Lisboa de um Procurador dos Feitos da Coroa e um Procurador dos Feitos da Fazenda. Tal disposição seguia o modelo clássico do Parquet francês, onde as “gentes do rei”, no alvorecer da instituição, deixaram de defender apenas os interesses privados do monarca, mas a essa função somaram a defesa dos interesses do Estado, e onde muito certamente as Ordenações Manoelinas foram buscar inspiração para normatizar o congênere lusitano.

Macedo Júnior[83] explica que no regimento das Ordenações Manuelinas o Promotor de Justiça possui atribuições de custos legis e de acusação criminal. Atribuições essas confirmadas pelas Ordenações Filipinas, de 1603, em que os Promotores de Justiça passam a atuar junto às Casas de Suplicação, com a função de “fiscalização da lei e da Justiça e no direito de promover a acusação criminal”.

Nesse período, existe apenas a justiça de primeira instância, representada pelas casas de suplicação. Em 1609, a instituição do Tribunal da Relação da Bahia dá à Colônia a justiça de segundo grau. Nela figuram juntamente com mais dez desembargadores o Promotor de Justiça e o Procurador dos Feitos e da Coroa. Em 1751, outra inovação, a criação do Tribunal da Relação da Cidade do Rio de Janeiro, responsável por julgar os recursos provindos do Tribunal da Relação da Bahia, separa os cargos de Promotor de Justiça e de Procurador dos Feitos e da Coroa que passam a ser exercidos por titulares diferentes. É “o primeiro passo para a separação total das funções de Procuradoria da República (que defende o Estado e o Fisco) e o Ministério Público, somente tornada definitiva com a Constituição Federal de 1988”[84].

Terminado o período colonial (1500-1822) com a proclamação da independência do Brasil, e assim também concluída a primeira fase do sistema jurídico brasileiro, inicia-se a império no Brasil (1822-1889) e a segunda fase do seu sistema jurídico[85].

No Império, a primeira Constituição do Brasil (1824) não dispõe sobre a instituição do Ministério Público, destinando ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional a tarefa de acusar nos juízos de crimes comuns. O artigo 48, incluído no capítulo referente ao Senado, no Título IV ‘Do Poder Legislativo’, menciona o seguinte: “No Juízo dos crimes, cuja acusação não pertence à Câmara dos Deputados, acusará o Procurador da Coroa e Soberania Nacional”.

Macedo Júnior[86] salienta que somente com o Código de Processo Penal do Império de 1832 é dado tratamento sistemático ao Ministério Público: “Tal Código colocava o Promotor de Justiça como órgão da sociedade, titular da ação penal”. Sauwen Filho[87] transcreve os artigos 22 e 23 da Lei n° 261 de 3 de dezembro de 1841, que reforma o Código de Processo Criminal de 1832, dedicando “todo um capítulo à Instituição, sob a rubrica Dos Promotores Públicos“:

CAPÍTULO III

Dos Promotores Públicos

Art. 22 – Os Promotores Públicos serão nomeados e demitidos pelo Imperador, ou pelos Presidentes das províncias, preferindo sempre os Bacharéis formados, que forem idóneos, e servirão pelo tempo que convier. Na falta ou impedimento serão nomeados interinamente pelos Juízes de Direito.

Art. 23 – Haverá, pelo menos em cada Comarca um Promotor, que acompanhará o Juiz de Direito; quando, as circunstâncias exigirem, poderão ser nomeados mais de um. Os Promotores vencerão o ordenado que lhes for arbitrado, o qual, na Corte, será um conto e duzentos mil réis por ano, além de três mil e duzentos réis por cada sustentação do Jury, e dois mil e quatrocentos réis por arrazoados escriptos.

Nota-se pela leitura dos artigos transcritos que o Ministério Público ainda se acha imbricado nas mãos do imperador ou dos presidentes das províncias, posto que seus membros são ainda nomeados ou demitidos à discricionariedade dos chefes do Poder Executivo, ao mesmo tempo em que ficam subordinados ao Poder Judiciário, quando nomeados interinamente pelos Juízes de Direito. Fato importante é a disposição para que um Promotor sempre acompanhe um Juiz de Direito, e a determinação de que em todas as Comarcas do reino haja representantes do Ministério Público.

Assim, sob o império da Lei 252 de 3 de dezembro de 1841, tínhamos no Brasil um Ministério Público funcionando precariamente e de forma subordinada ao poder Judiciário de quem fazia as vezes de órgão coadjuvante e seus membros nomeados e demitidos livremente pelo Imperador ou pelos Presidentes de Províncias e, em casos especiais, pelos próprios Juízes. Exerciam, sem qualquer independência, na maioria das vezes, simples funções de auxiliares da Justiça.

Em 1871, um avanço, a Lei do Ventre Livre atribui ao Promotor de Justiça a função de protetor do fraco e indefeso ao estabelecer que a ele cabe zelar para que os filhos de mulheres escravas sejam devidamente registrados[88]. Todavia, vale a constatação de Mazzilli, que “No Brasil – Colônia e no Brasil – Império, o Procurador-Geral ainda centralizava o ofício, não se podendo falar de instituição do Ministério Público nem de independência ou garantia de promotores públicos, que eram meros agentes do Poder Executivo”[89].

Conforme relata Macedo Júnior[90], com o advento da República, destaca-se a figura do então Ministro da Justiça, Campos Salles, que elabora o Decreto n° 848 de 1890 a cerca da estrutura da Justiça Federal e do Ministério Público, sendo – por essa razão – considerado patrono do Ministério Público. Segue abaixo a exposição de motivos:

O Ministério Público, instituição necessária em toda a organização democrática e imposta pelas boas normas da justiça, está representado nas duas esferas da Justiça Federal. Depois do Procurador Geral da República vêm os Procuradores seccionais, isto é, um em cada Estado. Compete-lhe em geral velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devem ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação penal pública onde ela couber. A sua independência foi devidamente resguardada.

Apesar disso, a Constituição de 1891 não trata do Ministério Público, apenas cita o Procurador Geral da República dentro da parte destinada ao Poder Judiciário. Consta no artigo 58, parágrafo 2° do referido diploma: “O Presidente da República designará, dentre os membros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República, cujas atribuições se definirão em lei”.

A fase republicana do direito brasileiro é marcada pela grande quantidade de codificações, datam desse período: o Código Civil de 1917, o Código de Processo Civil de 1939, o Código Penal de 1940, o Código de Processo Penal de 1941 e o novo Código de Processo Civil de 1973, pelos quais são atribuídas novas funções ao Parquet. Macedo Júnior[91] explica que:

O Código Civil de 1917 deu ao Ministério Público atribuições até hoje vigentes como a curadoria de fundações (art. 26), legitimidade para propor ação de nulidade de casamento (art. 208, § único, II), defesa dos interesses dos menores (art.394, caput), legitimidade para propor ação de interdição (art.447, III) e a de promover a nomeação de curador de ausente dentre outras. O Código de Processo Civil de 1939 estabeleceu a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público em diversas situações, especialmente na condição de “custos legis”. Nesta fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como fiscal da lei (“custos legis”) apresentando seu parecer após a manifestação das partes. A sua intervenção visava proteger basicamente os valores e interesses sociais então considerados indisponíveis ou mais importantes.

A Constituição de 1934 estabelece a existência de órgão do Ministério Público tanto na União, como no Distrito Federal, nos Territórios e nos Estados (Art. 95). O Procurador Geral da República é o chefe do Ministério Público Federal, cargo nomeado pelo Presidente da República mediante aprovação do Senado Federal (Art. 95, §1°). Os chefes do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios são nomeados pelo Presidente da República, escolhido dentre eleitores alistados acima de 30 anos de idade e com reputação ilibada, os vencimentos equiparam-se aos dos desembargadores (Art. 95, § 2°). O Ministério Público nesta Constituição de 1934 está inserido no Capítulo VI ‘Dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais’, no Título I ‘Da Organização Federal’.

A Constituição de 1937, outorgada com a imposição do Estado Novo do presidente Getúlio Vargas, é inexpressiva. Faz apenas breves referências no título referente ao Poder Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal. No art. 99 prevê a investidura do chefe do Ministério Público Federal; no artigo 101, parágrafo único, a possibilidade de interposição de recursos pelo Ministério Público; e, finalmente, no artigo 105 estipula a cláusula do chamado “quinto constitucional” a ser aplicada somente nos tribunais superiores[92].

Assim dispõe o artigo 105 da Constituição de 1937: “Na composição dos Tribunais superiores, um quinto dos lugares será preenchido por advogados ou membros do Ministério Público, de notório merecimento e reputação ilibada, organizando o Tribunal de Apelação uma lista tríplice”. Em contraposição, a Constituição de 1946 estipula título especial ao Ministério Público, posicionando-o independentemente dos outros Poderes do Estado. “Importante previsão era a do artigo 127, que proclamava três importantes regras: concurso público, estabilidade e inamovibilidade”[93].

A Constituição de 1967, por sua vez, contribui para a conquista da autonomia e independência do órgão, através da equiparação com os juízes, pois – nesse momento – o Ministério Público faz parte do Poder Judiciário. Se a Constituição de 1967 traz importantes inovações, a Constituição Federal de 1969 suprime relevantes disposições:

A Constituição Federal de 1967 trouxe importantes inovações ao subordinar o Ministério Público ao Poder Judiciário, criando a regulamentação “séria” do concurso de provas e títulos, abolidos os “concursos internos” que davam margem a influências políticas. Ao vir a integrar o Poder Judiciário, o Ministério Público deu importante passo na conquista de autonomia e independência, através da assemelhação com os magistrados. Tais “conquistas” somente seriam consagradas constitucionalmente na Constituição Federal de 1988. A Constituição Federal de 1969 (Ou Emenda Constitucional n° 1 de 17 de outubro de 1969) retirou as mesmas condições de aposentadoria e vencimentos atribuídos aos juízes (pela supressão do § único do art. 139) e perda de sua independência, pela subordinação no capítulo do Poder Executivo.[94]

Portanto, do descobrimento do Brasil até a década de oitenta do século XX, o Ministério Público Brasileiro revela-se dependente dos arbítrios do Poder Executivo, o que mudaria somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir dela, o Ministério Público seria apartado do âmbito dos Poderes Executivo e Judiciário, para figurar em capítulo próprio do Título IV, destinado à Organização dos Poderes, sob a rubrica “Das Funções Essenciais à Justiça”. Com a atual Constituição, o Ministério Público ganha autonomia em relação aos outros poderes e, finalmente, a função de zelar por interesses realmente públicos, os interesses sociais e individuais indisponíveis.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A figura do acusador público e do defensor da sociedade não aparecem na Anti­guidade, pelos componentes culturais, morais e políticos que compõem Atenas e Roma. Contudo, institutos do direito romano, bem como dos princípios da democracia ateniense simbolizam um legado à história do ocidente. O Brasil, pelo fato de ter sido colónia por­tuguesa, tem seu sistema jurídico ligado ao desenvolvimento da história do direito e das instituições greco-romanas e europeias.

Na Antiguidade o espaço para a acusação pública já existia, mas é de responsabilidade das vítimas ou de suas famílias, ou de oradores não profissionais. O sentido de justiça para os antigos corresponde à livre participação na vida política da cidade. Porém, esta participação estava restrita aos homens da classe cidadã ou patrícia, considerada superior pelo critério sanguíneo. Assim, não é possível identificar nos estados de Atenas e Roma, uma ampla esfera de direitos que abrangia a totalidade das pessoas, independente de gênero ou de vínculo familiar e, por conseguinte, um órgão especializado de defesa de tais direitos.

Na Idade Média, a Igreja Católica assume o exercício de atividades que são propriamente do estado. As infrações civis e criminais estão definidas nas leis da Igreja e são julgadas por clérigos que se baseam nas compilações do direito canónico. Isto porque, ela pretende um status de universalidade, superior ao direitos humanos, impondo suas determinações com a finalidade de manter as desigualdades sociais e económicas até então existentes. O direito natural da Igreja é um direito natural restrito aos interesses do clero.

Com o processo de concentração dos poderes, dispersos entre os senhores feudais, reis e a Igreja, o Estado – no sentido de ente executor da soberania nacional – se consolida personificado na figura do monarca. É nesse momento que o Estado reúne as atividades de regulação da vida em sociedade, inclusive a gestão dos conflitos existentes, arrogando para si a legitimidade das funções judiciais. Nesse contexto, surge o Ministério Público, através do exercício dos cargos de procuradores dos reis. Estes são os olhos dos reis nos tribunais,responsáveis por cobrar impostos, e exercer a acusação pública. A política criminal do Estado é realizada por estes procuradores profissionais, nomeados e demitidos a critério dos reis, para se constituírem na autoridade do monarca que representa, à época, a própria lei.

À medida em que o Estado transforma-se, em razão de mudanças sociais de caráter econômico, e o poder absoluto do soberano é questionado, uma nova visão das finalidades e funções do Estado se propõe. Inicia-se uma era de direitos que desafia a instituição dos procuradores do rei a adaptar-se aos novos tempos e exigências da vida em sociedade. O Parquet paulatinamente reorganiza seus princípios para atender a essa demanda por direitos, pretendendo a defesa de interesses públicos, defendidos pela classe burguesa.

No Brasil, voltando apenas para o processo de colonização e consolidação do Estado, verifica-se o mesmo movimento de nascimento do Ministério Público pela monarquia portuguesa e desenvolvimento inconstante com a concessão/supressão de direitos ao longo da história das Constituições. Nota-se que nos períodos autoritários, assim como no Estado Moderno, o Ministério Público perde liberdade de atuação para funcionar como “braço do poder executivo”, agindo conforme os interesses dos governantes que, ao restringirem as funções do Parquet, admitem o potencial de defesa dos interesses sociais contra seus interesses “reais”.

No Estado Contemporâneo, a emancipação do indivíduo através do reconhecimento das liberdades públicas, dos direitos da cidadania e dos moldes da democracia representativa, coloca o Ministério Público em uma posição cada vez mais autônoma e independente dos outros poderes do Estado.

Ao exercer parcela da soberania estatal, o Ministério Público reorganiza seus princípios e funções para realização dos fins a que o Estado se propõe na Constituição vigente, como órgão desvinculado que transita entre os demais poderes para a promoção dos direitos humanos. É um órgão que tem em sua funcionalidade o potencial e o poder de fiscalizar a atuação da administração pública e do judiciário, no sentido de garantir o efetivo respeito à dignidade humana.

Vale a ressalva, por fim, de que esta reflexão acerca de uma história do Ministério Público não pretende esgotar as possibilidades de discussão do tema. Afinal, como defende Veyne[95]:

O que se pode exprimir igualmente sob esta forma: a História, com maiúscula […] não existe: só existe “história de…”. Um acontecimento só tem sentido numa série, o número de séries é indeterminado, não se dirigem hierarquicamente e como veremos tão pouco tendem para um geometral de todas as perspectivas. A ideia de História é um limite inacessível, ou antes, uma ideia transcendental; não se pode escrever esta história, as historiografias que se crêem totais enganam sem saberem o leitor […].

Ou ainda, sob a perspectiva de Ianni[96], que percebe a viagem como metáfora da pesquisa nas ciências sociais, no sentido de que a viagem é trabalhada e retrabalhada em todas as formas de sociedade, motivada pela curiosidade, inquietação e interrogação em descobrir “outro” ou o “eu”. A viagem tem o condão de “descortinar horizontes”, desbravar fronteiras, sendo impossível falar em uma viagem, mas em viagens, haja vista que cada pesquisador abre rotas únicas, singulares. “Nas ciências sociais, a viagem revela-se um recurso comparativo excepcional. Permite colocar lado a lado configurações sociais, econômicas, políticas ou culturais diversas, próximas e distantes, presentes e passadas”. Como aponta o autor, a viagem sempre está presente no imaginário das ciências sociais seja sob a forma de realidade ou de metáfora, pois, todo cientista social, quando estuda ou pesquisa, realiza essa viagem.

Mas os caminhos do mundo não estão traçados. Ainda que haja muitos desenhados nas cartografias, emaranhados nos atlas, todo viajante busca abrir caminho novo, desvendar o desconhecido, alcançar a surpresa ou o deslumbramento. A rigor cada viajante abre seu caminho, não só quando desbrava o desconhecido, mas inclusive quando redesenha o conhecido. Caminante no hay camino, se hace camino al andar.


REFERÊNCIAS
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[1] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.329.
[2] MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva: 2003. p.280.
[3] GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p.43.
[4] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
[5] Ibid, p.38-40.
[6] Expressão utilizada por MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. O Ministério Público 500 anos após o descobrimento. Disponível em: < www.dhnet.org.br.:>. Acesso:  set. 2006.
[7] COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Texto integral. Tradução de João Melville. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.66.
[8] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.255.
[9] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.259.
[10] DIAKOV, V.; KOVALEV, S., op. cit., p.53.
[11] SOUZA, Osvaldo Rodrigues de. História geral. 14. ed. São Paulo: Ática, 1976. p.84.
[12] COULANGES, Fustel, op. cit.
[13] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993. P.191.
[14] SOUZA, Osvaldo R. de. op. cit., p.79.
[15] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.191.
[16] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.191-208.
[17] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.353.
[18] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.357.
[19] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.353-357.
[20] DIAKOV, V.; KOVALEV, S., op. cit., p.53.
[21] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.101.
[22] MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p.36.
[23] MIRABETE, Júlio Fabrini, op. cit., p.36.
[24] SAUWEN FILHO, João Francisco. Ministério Público Brasileiro e o estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.18-19. No mesmo sentido também VIEIRA, Judivan. J. Ministério Público: o 4º poder. Porto Alegre: Síntese, 2003.
[25] FIGUEIRA, Divalte Garcia. História. 1.ed., 5. impr.. São Paulo: Ática, 2002. p.43.
[26] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. op. cit., p.191.
[27] COULANGES, Fustel de, op. cit.
[28] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.190.
[29] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.190.
[30] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.384.
[31] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.219-225.
[32] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.384-387.
[33] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.387-390.
[34] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.192.
[35] COULANGES, Fustel de, op. cit., p.385.
[36] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p. 192-193.
[37] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p. 197.
[38] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12 ed. São Paulo: Ática, 1999. p.385.
[39] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.197-198.
[40] CHAUI, Marilena, op. cit., p.385.
[41] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.198-199.
[42] O Álbum Senatorial era uma lista elaborada pelos censores com nomes de antigos magistrados, para o recrutamento de novos membros do Senado.
[43] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.199-200.
[44] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p.24.
[45] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2005.
[46] GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação e Bolsas 2003. p.125.
[47] ARRUDA, José Jobson de A., op. cit., p.281-288. p.353-367.
[48] REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues, 1962, p.76 apud SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p.28.
[49] SUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p.27-34.
[50] GILISSEN, John, op. cit., p.127-139.
[51] GILISSEN, John, op. cit., p.140-141.
[52] FIGUEIRA, Divalte Garcia. História. 1. ed. 5. impr. São Paulo: Ática, 2002. p.95-99.
[53] MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.36.
[54] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.01.
[55] Apud MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit.,
[56] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.451
[57] Apud MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit.,
[58] (SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p. 38).
[59] BOBBIO, Norberto, op. cit., 1997, p.11-13.
[60] GILISSEN, John, op. cit., p.142
[61] COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1998. p.40.
[62] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.02.
[63] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit.
[64] MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 5. ed. ver., ampl. e atual.à luz da Reforma do Judiciário (EC n. 45/04). São Paulo: Saraiva, 2005.
[65] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p.101.
[66] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p. 93 e p.101.
[67] ALMEIDA, Fernando H. Mendes de. Ordenações Filipinas: Ordenações do Reino de Portugal recopiladas por de’l Rei D. Filipe, o Primeiro. São Paulo: Saraiva, 1957. v. 1, p.6-8.
[68] GUSMÃO, Paulo Dourado de, op. cit., p.330 (em nota de rodapé)
[69] ALMEIDA, Fernando H. Mendes de, op. cit., p.8.
[70] ALMEIDA, Fernando H. Mendes de, op. cit., p.9.
[71] MORAES, Alexandre de, op. cit., p.451.
[72] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p.103.
[73] FIGUEIRA, Divalte Garcia, op. cit., p. 101.
[74] “A título de esclarecimento: “fuero” significa lei. GUSMÃO, Paulo Dourado de, op. cit., p.330 (em nota de rodapé)
[75] ALMEIDA, Fernando H. Mendes de, op. cit., p.10.
[76] MORAES, Alexandre de, op. cit., p.451.
[77] ALMEIDA, Fernando H. Mendes de, op. cit., p.10, 12 e.13.
[78] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p.103.
[79] ALMEIDA, Fernando H. Mendes de, op. cit., p.15.
[80] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p. 104.
[81] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.2.
[82] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p. 105.
[83] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.2.
[84] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.02.
[85] GUSMÃO, Paulo Dourado de, op. cit., p.329.
[86] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.2.
[87] SAUWEN FILHO, João Francisco, op. cit., p. 122.
[88] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.3.
[89] MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 5. ed. rev., ampl. e atual. à luz da Reforma do Judiciário (EC n. 45/04). São Paulo: Saraiva, 2005. p.38.
[90] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.3.
[91] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p.04.Disponível em: < http://www.iedc.org.br/publica/500anos/ ronaldo.htm>
[92] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 453.
[93] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 453.
[94] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto, op. cit., p. 5.
[95] VEYNE, Paul, 1983, p.38-39, apud PONTES, Felipe Simão. Nuances de uma análise histórica do jornalismo: homens e mulheres nas páginas do Diário dos Campos (1910-1923). Trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social-Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ponta Grossa , 2006.
[96] IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.13-31.

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