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Repensando o Direito Civil Brasileiro (8): A teoria da personalidade jurídica, o nascituro e o aborto

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Felipe Quintella

Felipe Quintella

02/12/2016

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A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em 29/11/2016, no julgamento de um habeas corpus impetrado por acusados de cometer crime de aborto, decidiu revogar a ordem de prisão preventiva. O fundamento de três dos cinco votos foi o entendimento que não considerou conforme à Constituição a tipificação, como crime de aborto, da interrupção da gravidez ocorrida no primeiro trimestre da gestação, razão pela qual a respectiva norma do Código Penal de 1940 não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988. O primeiro a votar nesse sentido foi o Min. Luís Roberto Barroso, e o acompanharam os Mins. Rosa Webber e Edson Fachin. Já o relator, Min. Marco Aurélio, havia votado pela concessão do habeas corpus, sem tratar do assunto do aborto. O Min. Luiz Fux, por sua vez, também não cuidou do aborto em seu voto. Embora a decisão só se aplique ao caso concreto, sem produzir efeito erga omnes, o fato é que produziu, tecnicamente, um precedente, pelo fato de a ratiodecidendi (fundamento determinante da decisão) majoritária ter sido no mesmo sentido: o de que, à luz da Constituição de 1988, não constitui crime a interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação.

O que eu gostaria de abordar neste artigo, por constituir matéria do Direito Civil, não são, obviamente, os aspectos técnicos da decisão, e nem as bases da decisão do mérito da questão. Considerando-se que a decisão foi proferida e formou precedente, o que sinaliza para o eventual posicionamento que o STF poderá assentar ao exercer especificamente controle difuso de constitucionalidade em provável julgamento futuro, o que eu considero importante ser feito pelos civilistas é analisar o impacto da linha por ora assentada na teoria do Direito Civil.

Isso porque o voto do Min. Barroso tratou do direito à vida do nascituro — expressão que aparece em diversos trechos da decisão — sem entrar na discussão da situação jurídica do nascituro. Ocorre que a única teoria sobre o início da personalidade da pessoa natural compatível com a discussão de direitos do nascituro é a teoria concepcionista. Ou seja, parece inegável que o STF seguiu a mesma linha anteriormente descrita no STJ, em voto de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, conferindo nova interpretação ao art. 2º do Código Civil — como já vinha clamando parte doutrina há algum tempo —, compatibilizando-o com a Constituição (REsp 1415727/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 29/09/2014).

Parece necessário, pois, verificar se a teoria concepcionista é compatível com a ideia da legalidade do aborto, ainda que no primeiro trimestre da gestação.

Inicialmente, vale lembrar que há três teorias sobre o início da personalidade da pessoa natural: (1) a teoria natalista, segundo a qual a personalidade só se inicia com o nascimento com vida; (2) a teoria concepcionista, segundo a qual a personalidade se inicia com a concepção; e (3) a teoria da personalidade condicionada, que surgiu do Código Civil brasileiro, e que adotou o nascimento com vida como marco do início da personalidade, mas que resguarda os direitos que o nascituro teria desde a concepção — sua aquisição, todavia, fica condicionada ao nascimento com vida. Como costumo dizer, à luz desta teoria é necessário reconhecer que os direitos que o nascituro já teria adquirido se fosse pessoa desde a concepção ficam, durante a gestação, na expectativa de terem sujeito. Pois, em verdade, o que falta ali não é o fato gerador da aquisição do direito — por isso, não se trata de expectativa de direito. O que falta é a aptidão do ente para adquirir o direito, ou seja, o que falta é o sujeito (no sentido técnico; do ponto de vista fático, é claro que já existe o ente).

A seguir a teoria da personalidade condicionada, hoje constante no art. 2º do Código Civil de 2002, seria forçoso negar que o nascituro tenha um direito à vida, vez que não se trata de direito que se possa resguardar.

Afinal, ou o direito à vida se adquire e protege desde a concepção, ou o direito à vida somente se adquire e protege após o nascimento com vida. Por uma questão de lógica, não se trata de um direito que se possa reservar para somente atribuir ao ente após a aquisição da personalidade, como pode ocorrer com o direito à sucessão hereditária.

Ora, se hoje trabalhamos com a ideia de direitos do nascituro, ainda que nos limitemos a direitos da personalidade, como o direito à vida, então não faz sentido negar que, a despeito da interpretação imediata e tradicional do art. 2º do Código Civil, não estamos mais trabalhando com a teoria da personalidade condicionada, e sim com a teoria concepcionista.

E o fundamento dessa alteração de perspectiva seria justamente a incompatibilidade da ordem constitucional vigente com a ideia de que o nascituro não tenha desde a concepção o direito à vida e outros direitos da personalidade. Seria o caso de interpretação conforme à Constituição.

Pois bem. Se à luz da Constituição a situação jurídica do nascituro se deve regular pela teoria concepcionista, é coerente afirmar que à luz da mesma Constituição não constitui crime a interrupção da gravidez?

Mais uma vez advirto que não pretendo aqui discutir o mérito da questão do aborto. Aqui, estou repensando os pontos da teoria do Direito Civil que tratam do início da personalidade da pessoa natural e dos direitos da personalidade.

Partindo-se, como eu parto, do referencial teórico formado por Teixeira de Freitas no século XIX, o qual inspirou os Códigos Civis brasileiros e o Direito Civil brasileiro, por via de consequência, defendo ser de extrema importância separar os conceitos de personalidade jurídica e de capacidade de direito.

Na matriz freitiana, personalidade jurídica é a suscetibilidade de um ente para adquirir direitos. Em outras palavras, pessoa é o ente suscetível de aquisição de direitos (FREITAS, 1860, p. 15). Quer dizer, a personalidade jurídica constitui uma aptidão genérica, potencial, para adquirir direitos.

Já a capacidade de direito constitui o grau de aptidão para aquisição de direitos e prática, por si ou por outrem, de atos não proibidos (FREITAS, 1860, p. 23). Esse conceito nasce da constatação de que ser pessoa não implica ter aptidão para adquirir os mesmos direitos e praticar os mesmos atos. Isso porque o ordenamento jurídico restringe a certas pessoas a aquisição de certos direitos — a testemunha do testamento, por exemplo, é considerada incapaz de herdar nesse testamento (art. 1.801, II, CC/02) — ou a prática de certos atos — a pessoa que não tem o devido discernimento, v. g.,  é considerada incapaz de fazer testamento (art. 1.860, CC/02).

Por conseguinte, trabalhando-se com esse referencial, nada impede que um ente a que se reconhece personalidade tenha a aquisição de certos direitos ou a prática de certos atos restrita por alguma razão legítima. E, se é possível a restrição da aquisição de direitos, também pode haver a limitação a seu exercício, ou à sua garantia, em certas situações, principalmente quando houver conflito que tenha que ser solucionado por meio de ponderação. Em sede de direitos patrimoniais, há mais tempo se trabalha com tranquilidade com esta noção. Veja-se que o proprietário possuidor tem o exercício e a proteção da propriedade e da posse, enquanto o proprietário não possuidor, muito embora tenha o direito de possuir ius possidendi —, não tem a garantia do exercício desse direito com base apenas na posse, porquanto a ideia de inércia possessória protege a posse de quem nela está — ius possessionis. A premissa de que qualquer direito pode ter sua aquisição negada, ou seu exercício restrito, inclusive, é consectário lógico da ideia de que nenhum direito é absoluto. A ordem jurídica não seria viável se simplesmente por ter personalidade todas as pessoas adquirissem todos os direitos e os tivessem todos garantidos. Daí a necessidade do conceito de capacidade de direito, que trata de grau de aptidão, ou seja, que reconhece que a aptidão para adquirir direitos em concreto varia, muito embora toda pessoa tenha essa aptidão em abstrato. Em outras palavras: toda pessoa pode ter algum direito, mas nenhuma pessoa pode ter todos os direitos, nem todos os direitos que tem sempre prevalecerão quando houver conflito com direitos de outras pessoas. Ao mesmo tempo em que não se nega a nenhuma pessoa aptidão para adquirir direitos e os exercer, o grau desta é variável e nunca absoluto. Ademais, vale lembrar que não há hierarquia entre direitos fundamentais — como os direitos da personalidade —, razão pela qual o direito à vida não necessariamente se sobrepõe aos demais.

Logo, se, teoricamente, a ideia de um ente ser reconhecido como pessoa não é incompatível com a ideia de que esse ente tenha restrições à aquisição ou ao exercício de direitos, ou à prática de atos, conclui-se que não é incompatível com a teoria concepcionista a legalidade do aborto em determinado estágio da gestação — o qual tem de ser devidamente fundamentado por outra área do conhecimento.

Isso por resultado teoricamente possível da ponderação entre direitos da personalidade da mãe, que não quer levar a cabo a gravidez, e o direito à vida do nascituro.

Quer dizer, não é incompatível com a teoria concepcionista a ideia de que o direito à vida do nascituro — conquanto atribuído e, até mesmo, protegido — possa não prevalecer quando em conflito especificamente com certos direitos da personalidade da mãe.

Insisto: se a natureza dos direitos em conflito for tal que a única solução possível no caso concreto for a preponderância de um sobre o outro, nem por isso se vai colocar em xeque a personalidade de um ou do outro sujeito; a existência ou até mesmo a proteção de um ou do outro direito.

Na ponderação entre os bens jurídicos em questão, como fez o Min. Barroso no seu voto, a conclusão pela prevalência dos direitos da mãe no primeiro trimestre da gravidez não afasta, nem relativiza a personalidade do nascituro; significa que o grau de aptidão do nascituro para adquirir direitos é menor. Reitero: sem entrar no mérito dessa redução em especial; o que quero demonstrar é que a teoria comporta reduções no grau de aptidão para adquirir direitos do nascituro — e de qualquer outra pessoa.

Enfim: mesmo em se seguindo a teoria concepcionista, é forçoso reconhecer que o nascituro é uma pessoa de capacidade reduzida, vez que, por força das suas peculiaridades, são diversos os direitos que não pode adquirir — ou que, no caso concreto, poderão não ter seu exercício garantido —, e os atos que não pode praticar, nem por meio da representação de sua mãe.

A meu ver, a questão meramente teórica entre a situação jurídica do nascituro e o aborto encontra explicação possível nas teorias da personalidade e das capacidades de matriz freitiana, complementadas pela teoria da capacidade reduzida, derivada do mesmo referencial. Adotando-se tal marco teórico, conclui-se que a teoria concepcionista é compatível com legalidade da interrupção da gravidez. Mas, se a interrupção da gravidez é ou não compatível com a Constituição, não cabe ao Direito Civil dizer. A decisão é do Supremo Tribunal Federal.

REFERÊNCIAS:

FREITAS, Augusto Teixeira de. Esboço do Código Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1860.

A fonte das informações sobre o recente julgado do STF é o site do próprio Tribunal: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330769.

O único voto disponibilizado pelo site do Tribunal por ora (a decisão ainda não foi publicada) é o do Min. Luiz Roberto Barroso: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf.


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