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Reservar parte de fundo da Defensoria Pública à OAB-SP é inconstitucional

DEFENSORIA PÚBLICA

OAB-SP

Tiago Fensterseifer

Tiago Fensterseifer

14/04/2017

Por Leonardo Scofano Damasceno Peixoto e Tiago Fensterseifer

O plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou no último dia 14 de dezembro o PLC 40/2016, que altera a Lei Orgânica da Defensoria Pública de São Paulo, com o propósito de destinar 40% dos recursos do Fundo de Assistência Judiciária (FAJ, gerido pela Defensoria paulista) à assistência judiciária suplementar[1]. Esta, por sua vez, é prestada no Estado, na sua maioria, por intermédio de convênio firmado entre a Defensoria Pública e a OAB/SP, com aproximadamente 40 mil advogados conveniados.

O Poder Executivo e a seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil articularam o PLC 40/2016, reservando e contingenciando o orçamento institucional em favor da entidade classista, em absoluta afronta à decisão proferida pelo STF na ADI 4.163/SP, julgada em 29 de fevereiro de 2012, que afastou o monopólio da OAB-SP em firmar convênio com a Defensoria paulista. A referida entidade classista, por razões puramente corporativas, resiste em aceitar o modelo constitucional de assistência jurídica aos necessitados.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o modelo público de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados desde a sua gênese, com a criação da Defensoria Pública (artigo 134) e a sua consagração como um direito fundamental (artigo 5º, LXXIV). E o constituinte derivado, atento à efetivação desse regime e ciente dos óbices político-corporativos, alterou progressivamente o texto constitucional (Emendas Constitucionais 45/2004, 69/2012, 74/2013 e 80/2014), tornando ainda mais sólido o referido modelo no plano normativo.

A privação do exercício da advocacia privada pelo Defensor Público estabelecida na CF/88 é expressão da dicotomia entre o múnus público exercido pelo Defensor Público e a advocacia privada. Tal espírito constitucional é enunciado no caput do artigo 134, alterado pela EC 80/2014, ao prever que a Defensoria Pública se trata de “expressão e instrumento do regime democrático”, cabendo-lhe o papel de “promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”. Ademais, a EC 80/14, ineditamente, assegurou seção própria para a Defensoria Pública (Seção IV) no Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça, separando-a da Advocacia (Seção III) e da Advocacia Pública (Seção II), o que também foi adotado pelo Novo CPC de 2015 (artigo185).

Dentre os objetivos fundamentais da República (artigo 3º), de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (III), o compromisso de inserção dos indivíduos no pacto constitucional passa pelo tratamento jurídico-político desigual dos necessitados, justificando-se o desenho do modelo público e da Defensoria Pública. Os convênios suplementares, incompatíveis com o atual conceito e amplitude do direito fundamental à assistência jurídica aos pobres, afrontam a Constituição e o modelo público por ela desenhado.

A autonomia constitucional conferida à Defensoria Pública traduz-se em um leque de efeitos jurídicos, cujo objetivo principal é blindar a atuação institucional contra ingerências externas. É fato que tal autonomia, similar à atribuída outrora ao Ministério Público, se trata de inovação relativamente recente (desde a EC 45/04 em relação às Defensorias Estaduais), sendo, nessa perspectiva, natural certa incompreensão acerca do seu conteúdo. Para além dos efeitos trazidos para a relação entre a Defensoria Pública e os três poderes republicanos (Legislativo, Executivo e Judiciário), destaca-se a incidência da sua autonomia em face da OAB. A celebração (e pior, a perpetuação!) de convênios suplementares entre a Defensoria e a OAB ofende a autonomia institucional e o modelo público. O STF já tratou do tema, operando, até agora, como autêntico “guardião” do regime constitucional delineado para a Defensoria Pública. [2][3]

Em voto do ministro Cezar Peluso, na ADI 4.163/SP, restou assinalado o modelo público de assistência jurídica e o caráter temporário (e precário) dos convênios firmados com a OAB:

“O § 2º do artigo 14 da Lei Complementar nº 98/99 autoriza se firme convênio com entidade pública que desempenhe as funções da Defensoria, quando esta ainda não exista na unidade da federação. Velhíssima jurisprudência desta Suprema Corte já definiu que tal função é exclusiva da Defensoria, donde ser admissível exercício por outro órgão somente onde essa não tenha sido ainda criada (STF, RE 135.328/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.06.1994) […] É dever constitucional do Estado oferecer assistência jurídica gratuita aos que não disponham de meios para contratação de advogado, tendo sido a Defensoria Pública eleita, pela Carta Magna, como o único órgão estatal predestinado ao exercício ordinário dessa competência. Daí, qualquer política pública que desvie pessoas ou verbas para outra entidade, com o mesmo objetivo, em prejuízo da Defensoria, insulta a Constituição da República. Não pode o Estado de São Paulo, sob o pálio de convênios firmados para responder a situações temporárias, furtar-se ao dever jurídico-constitucional de institucionalização plena e de respeito absoluto à autonomia da Defensoria Pública. Em suma, é inconstitucional o artigo 234 da Lei Complementar nº 988/2006”.

Em que pese o respeito aos advogados conveniados, empenhados dignamente a prestar tal assistência, a Defensoria Pública tem um espectro infinitamente maior de atuação, para além da mera assistência judicial individual. Nesse sentido, possui uma atuação extrajudicial abrangente, a saber (LC 80/94): a mediação, conciliação e primazia da resolução extrajudicial de conflitos (artigo 4º, II); o atendimento multidisciplinar psicossocial (artigo 4º, IV); a convocação de conferências e audiências públicas para participação da sociedade civil nos temas afetos ao necessitados (artigo 4º, XXII); as práticas de orientação jurídica e educação em direitos (artigo 4º, I e III); a postulação aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos (artigo 4º, IV); a fiscalização e participação na gestão de políticas públicas, inclusive com assento de Defensores nos conselhos temáticos municipal, estadual e federal (artigo 4º, XX). A própria atuação judicial coletiva da Defensoria não pode ser olvidada desse espectro (artigo 4º, VII, da LC 80/94 e artigo 5º, II, da Lei 7.347/85).

É preciso, nesse sentido, o voto do ministro Joaquim Barbosa na ADI 4270/SC, sobre o convênio entre o estado de Santa Catarina e a OAB-SC:

“Não se pode ignorar, também, que, enquanto o Defensor Público integrante de carreira específica dedica-se exclusivamente ao atendimento da população que necessita dos serviços de assistência, o advogado privado convertido em defensor dativo certamente prioriza, por uma questão de limitação da jornada de trabalho, os seus clientes que podem oferecer uma remuneração maior do que aquela que é repassada pelo Estado, a qual observa a tabela de remuneração básica dos serviços de advogado. Essas observações sugerem que a questão da criação de um serviço de assistência judiciária não pode ser vista apenas sob o ângulo estatístico e muito menos da perspectiva da mera economia de recursos. Veja-se, a título de exemplo, o fato de que a defensoria dativa organizada pelo Estado de Santa Catarina com apoio da seção local da OAB não está preparada e tampouco possui competência para atuar na defesa de direitos coletivos, difusos ou individuais homogêneos dos hipossuficientes e dos consumidores, atribuição que hoje se encontra plenamente reconhecida à defensoria pública (incs. VII e VIII do artigo 4º da LC 80/94, na redação da LC 132/09). Note-se, também, que a ênfase do modelo catarinense na assistência jurídica prestada sob o ângulo do apoio ao litígio judicial deixa de lado todos os esforços que vem sendo empreendidos por várias organizações no sentido de consolidar a cultura da resolução extrajudicial de disputas. A Defensoria Pública como instituição do Estado encontra-se apta para atuar nessa frente, linha de ação essencial para reduzir a quantidade de processos e tornar mais ágil o funcionamento da justiça (inc. II do artigo 4º da LC 80/94, na redação da LC 132/09)”.

Ante a omissão ou atuação insuficiente do estado ao manter tais convênios com a OAB e não criar e estruturar adequadamente a Defensoria Pública, há flagrante prejuízo a direitos fundamentais dos necessitados, perpetuando situação de “inconstitucionalidade progressiva”, conforme consagrado pelo STF (na interpretação do artigo 68 do CPP).[4]

Ademais, os convênios com a OAB burlam a exigência constitucional de concurso público. Não por outra razão, na ADI 4.163/SP, o Min. Cezar Peluso acenou que a realização de concurso público “é regra primordial para prestação de serviço jurídico pela administração pública, enquanto atividade estatal permanente”, tratando-se de situação excepcional e temporária a assistência jurídica aos pobres “por profissionais outros que não Defensores Públicos estaduais concursados, seja mediante convênio com a OAB, seja mediante alternativas legítimas”.

No cenário destacado, cabe situar o PLC 40/16 no regime constitucional e nas particularidades da Defensoria Pública de São Paulo. O orçamento da Defensoria paulista é constituído por duas fontes principais: o Tesouro e o FAJ. Esta última fonte, afetada diretamente pelo PLC 40/16, representa 90% do orçamento total da Defensoria. Logo, o PLC 40/16 reserva 40% da maior fonte de recursos da Defensoria em favor de uma entidade privada de classe. O FAJ é tão importante que a maior parte dos cargos de Defensores Públicos (500 de um total de 900) foi criada tendo como fonte de custeio esse fundo. No mesmo sentido, ocorre com os servidores e a remuneração do quadro geral da instituição, onde quase a totalidade é custeada pelo FAJ. Assim, a instituição está impedida de livremente administrar seu orçamento, pois quase metade do que lhe é destinado deve ser reservado à OAB/SP.

O PLC 40/16 traz como consequência a mutilação da autonomia funcional, administrativa, orçamentária e financeira da Defensoria. Não é possível, sequer, o ajuste interno do orçamento, o pagamento dos convênios com verba do Tesouro e outras despesas com o FAJ. A reserva de mercado ao convênio OAB/SP é nítida, já que que todo ano teria mais de R$ 250.000.000,00.

Em ofensa à prerrogativa constitucional da Defensoria Pública de enviar sua proposta orçamentária, o PLC 40/16 contingenciará o orçamento dessa instituição fora das peças orçamentárias. Assim, a Defensoria Pública continuará impedida de exercer plenamente a sua missão constitucional.

Claramente isso vai de encontro com o artigo 98 do ADCT (incorporado ao texto constitucional pela EC 80/14), que assegura a presença de Defensores Públicos em todas as unidades jurisdicionais da Federação no prazo de oito anos, atendendo-se às regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.

Sobre esse ponto, o STF, na ADI 4.163-SP, praticamente previu o futuro, nos debates entre os Ministros Joaquim Barbosa e Marco Aurélio:

“O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – A Defensoria Pública saberá muito bem o que fazer porque o Supremo Tribunal Federal terá restituído a ela um poder que lhe vinha sendo subtraído. Essa é a nossa missão. Acabou. Acompanho.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Sim, compelida pelo Estado que não criará novos quadros. Estará sempre compelida a contratar advogados”.

É de fato o que vai acontecer em mais um retrocesso social em período de crise econômica, em total descompasso com o comando constitucional que impõe o dever estatal de ampliação progressiva do serviço público essencial aqui tratado, a prejudicar os reais destinatários do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita: os pobres.

* Leonardo Scofano Damasceno Peixoto é defensor público do estado de São Paulo, doutor e mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Também é presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep).
Publicado originalmente em: http://www.conjur.com.br/2016-dez-27/tribuna-defensoria-reservar-parte-fundo-defensoria-oab-sp-inconstitucional

[1] O Projeto de Lei Complementar 40/2016 tratou de inserir os §§ 3º e 4º no art. 236 da Lei Complementar Estadual n. 988/2006: “Artigo 236 – O Fundo de Assistência Judiciária, instituído pela Lei nº 4.476, de 20 de dezembro de 1984, e regulamentado pelo Decreto nº 23.703, de 27 de maio de 1985, destinado a custear despesas concernentes à prestação de assistência judiciária gratuita, vincula-se, a partir da promulgação desta lei complementar, à Defensoria Pública do Estado, que passará, imediatamente, a gerir os seus recursos, inclusive o saldo acumulado. (…) § 3º – Da totalidade das receitas que compõem o Fundo de que trata o “caput” deste artigo, 40% (quarenta por cento) serão destinados à prestação de assistência judiciária suplementar. § 4º – Caso as despesas afetas à prestação de assistência judiciária suplementar não alcancem no mesmo exercício financeiro o percentual de que trata o § 3º deste artigo, o saldo restante será aplicado às demais despesas suportadas pelo Fundo de Assistência Judiciária”.
[2] “EMENTA: 3. INCONSTITUCIONALIDADE. Art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e art. 234 da LC estadual nº 988/2006. Defensoria Pública. Assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. Previsões de obrigatoriedade de celebração de convênio exclusivo com a seção local da OAB-SP. Inadmissibilidade. Desnaturação do conceito de convênio. Mutilação da autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria. Ofensa consequente ao art. 134, § 2º, cc. art. 5º, LXXIV, da CF. Inconstitucionalidade reconhecida à norma da lei complementar, ulterior à EC nº 45/2004, que introduziu o § 2º do art. 134 da CF, e interpretação conforme atribuída ao dispositivo constitucional estadual, anterior à emenda. ADI conhecida como ADPF e julgada, em parte, procedente, para esses fins. Voto parcialmente vencido, que acolhia o pedido da ação direta. É inconstitucional toda norma que, impondo a Defensoria Pública Estadual, para prestação de serviço jurídico integral e gratuito aos necessitados, a obrigatoriedade de assinatura de convênio exclusivo com a OAB, ou com qualquer outra entidade, viola, por conseguinte, a autonomia funcional, administrativa e financeira daquele órgão público” (STF, ADI 4163/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 29.02.2012).
[3] “EMENTA: Art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina. LC estadual 155/1997. Convênio com a seccional da OAB/SC para prestação de serviço de “defensoria pública dativa”. Inexistência, no Estado de Santa Catarina, de órgão estatal destinado à orientação jurídica e à defesa dos necessitados. Situação institucional que configura severo ataque à dignidade do ser humano. Violação do inc. LXXIV do art. 5º e do art. 134, caput, da redação originária da CF/88. Ações diretas julgadas procedentes para declarar a inconstitucionalidade do art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina e da LC estadual 155/1997 e admitir a continuidade dos serviços atualmente prestados pelo Estado de Santa Catarina mediante convênio com a OAB/SC pelo prazo máximo de 1 (um) ano da data do julgamento da presente ação, ao fim do qual deverá estar em funcionamento órgão estadual de defensoria pública estruturado de acordo com a CF/88 e em estrita observância à legislação complementar nacional” (STF, ADI 4270/SC e ADI 3892/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 14.03.2012).
[4] STF, RE 135.328/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.06.1994.

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