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Filosofia do Direito

FILOSOFIA DO DIREITO

O direito à verdade no Direito Internacional – Umberto Celli Junior

DIREITO À VERDADE

DIREITO INTERNACIONAL

Seminário da Feiticeira

Seminário da Feiticeira

22/12/2014

Por Umberto Celli Junior[1]

No direito internacional, a origem do direito à verdade remonta ao direito internacional humanitário de famílias procurando saber o destino de seus familiares, reconhecido nos artigos 32 e 33 do 1º Protocolo Adicional das Convenções de Genebra de 1949[2], bem como nas obrigações das partes em conflitos armados de buscar pessoas desaparecidas. O artigo 32 do 1º Protocolo Adicional estabelece o direito das famílias “de conhecer a sorte de seus membros.” Isso significa que as partes em conflito devem, quando possível, realizar a busca de pessoas que tiveram seu desaparecimento relatado, trocando, para tal fim, todas as informações disponíveis para facilitar as buscas (BORGES, 2006, p.113).

Ao longo do tempo, o desaparecimento forçado de pessoas e outras violações graves de direitos humanos durante períodos de violência extrema patrocinada por Estados, em especial em vários países da América Latina, como o Brasil, levaram a uma interpretação mais ampla da noção do direito de se dar informações sobre pessoas desaparecidas.  Esses fatos também propiciaram a identificação e o reconhecimento de um direito, o direito à verdade, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como pelo Comitê da ONU sobre Direitos Humanos.

Em linha com essa tendência, o artigo 24 da “2006 International Convention for the Protection of All Persons from Enforced Disappearance” veio a estabelecer que: “Each victim has the right to know the truth regarding the circumstances of the enforced disappearance, the progress and results of the investigation and the fate of the disappeared person. Each State Party shall take appropriate measures in this regard.”[3]

Isso foi permitindo a construção progressiva do direito à verdade e da base para a sustentação e a reivindicação de outros direitos fundamentais, como o direito de acesso à justiça e a instrumentos efetivos de reparação. Também foi possível notar a gradual expansão do direito à verdade para além da informação a respeito de eventos relacionados a pessoas desaparecidas para incluir outras sérias violações de direitos humanos no contexto em que estes ocorreram.  De maneira ampla, o que se verifica é que o direito à verdade tem uma relação direta com a noção de vítima de uma série de violações de direitos humanos

Ele surge após a violação de outro direito humano fundamental e quando a informação relativa a essa violação não tiver sido fornecida pelas autoridades competentes, seja por meio de uma declaração oficial ou por outros mecanismos de busca da verdade. Sua rationale reside no direito das vítimas ou de suas famílias de serem informadas acerca de determinados eventos como forma de contribuição ao processo de reparação. Entre outras coisas, o direito à verdade tem um sentido de encerramento, pois permite a recuperação da dignidade e provê mecanismos de reparação para violações de direitos (NAQVI, 2006, p. 248/249).

É tanto um direito coletivo como individual. Cada vítima tem o direito de saber a verdade sobre violações que a afetaram, mas a verdade também tem de ser contada no plano da sociedade como uma “salvaguarda vital contra a recorrência de violações.” [4] Portanto, o direito à verdade é visto também como uma salvaguarda contra a impunidade. Por essa razão, ele tem sido usado para contestar a validade de leis que concedem anistia branca protegendo aqueles que violaram direitos humanos sob o direito internacional, assim como para estimular governos a ser mais responsáveis e transparentes. Após um conflito armado ou períodos de conflitos internos, o direito à verdade tem sido invocado para ajudar sociedades a entender as razões subjacentes a tais conflitos ou generalizadas violações de direitos humanos.

Muitos países têm procurado implantar o direito à verdade por meio da criação de comissões, comissões de inquérito ou comissões da verdade. Pode também ser posto em prática por outros processos ou mecanismos, como julgamentos públicos, a revelação de documentos do Estado e o próprio manuseio de arquivos, sendo assegurado o direito à informação (NAQVI, 2006, p. 248/249).

O problema é que, apesar de a existência e a importância do direito à verdade já serem largamente reconhecidas e identificadas, ainda é difícil delinear seus exatos contornos jurídicos no direito internacional. Isso porque ele não está explicitamente consubstanciadoper se” nos tratados ou nas convenções regionais e internacionais, isto é, não foi estabelecido como uma norma clara e inquestionavelmente validada em um tratado ou convenções internacionais.

Assim, muitos autores o consideram um conceito emergente no direito internacional dos direitos humanos, com execução bastante diferenciada pelos Estados (MARCON, 2013, p. 2).[5] Outros entendem que ele poderia ser classificado como um costume internacional, o que seria de difícil comprovação, ou um princípio geral de direito, no caso, mais especificamente, como um dos “emerging principles in international law” (ver NAQVI, 2006, p. 268).

Como se sabe, ao lado das convenções internacionais (gerais e especiais), o costume internacional e os princípios gerais de direito são fontes de direito internacional que estão expressamente reconhecidas no artigo 38 (1) (a)-(c) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

A questão das fontes em direito internacional, notadamente nos casos dos costumes e dos princípios gerais, contém, contudo, com frequência, um elemento de incerteza que deriva da dificuldade de se identificar quando exatamente elas criam normas com força vinculante. Identificar normas em um tratado ou convenções internacionais não traz grandes problemas.

Por outro lado, tarefa muito mais complicada é identificar quando algo se torna uma norma parte dos costumes ou de princípios gerais de direito. Isso ocorre porque o critério para o reconhecimento dessas normas é menos claro. Para circunscrever claramente “the rights and obligations that derive from sources of international law other than treaties, in particular custom and general principles of law, and to apply them to a given case may even be more difficult.” (PAUWELYN, 2008, p. 91-93).

O direito à verdade estaria muito mais próximo de um “princípio emergente no direito internacional”, daí resultando uma série de obstáculos à sua plena aplicação e implantação.  É certo que ele pode ser usado como um meio de se inferir a existência de regras mais abrangentes a partir de regras mais específicas por um processo indutivo, como tem demonstrado a jurisprudência das cortes de direitos humanos. Ainda assim, como não está bem delineado como uma norma com força vinculante, as dificuldades persistem na sua compreensão e aplicação.

Isso pode explicar também outro tipo de obstáculo com que se defronta frequentemente o direito à verdade: o fato de ser confundido com o direito à justiça e reconciliação. A reconciliação serviu de base e fundamento para leis de anistia em diversos países, inclusive para a Lei de Anistia do Brasil, a Lei No. 6683, de 28 de agosto de 1979.

Apesar de terem ocorrido graves violações de direitos humanos durante a ditadura, como desaparecimento forçado, tortura, homicídio e sequestro, dentre tantos outras, a lei brasileira concedeu anistia ampla, total e irrestrita a todos os agentes públicos que os perpetraram, bem como àqueles da resistência armada.

A lei de anistia brasileira tem sido historicamente contestada por violação e inconsistência com os dispositivos e os julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por estar embasada e ter como premissa um princípio geral de direito, o direito à verdade, que não deve ser entendido como reconciliação, para a Corte, as vítimas das violações de direitos humanos e seus familiares deveriam ser informados acerca de seus desaparecidos e dos eventos que os causaram, bem como obter a devida reparação. Ainda, segundo a Corte, os agentes públicos que violaram direitos humanos deveriam ser responsabilizados e punidos e a sociedade brasileira deveria entender as razões subjacentes das generalizadas violações de direitos humanos que ocorreram no país durante o período da ditadura militar.

Em 2010, instado a se posicionar sobre a lei de anistia em um contexto pós-Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal validou sua constitucionalidade. Ainda que não possa ser desconsiderado o caráter político dessa decisão, talvez ela pudesse ter sido diferente, fosse o direito à verdade uma norma explícita e, portanto, dotada de força vinculante, nas convenções internacionais e regionais.

No mesmo ano, pela segunda vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou ser a lei de anistia incompatível com a Convenção Americana e, portanto, inconstitucional. Como resultado, foi determinado ao governo brasileiro que efetuasse a investigação dos assassinatos, da tortura e dos desaparecimentos forçados e buscasse a responsabilização pelas graves violações de direitos humanos praticadas durante o regime militar.

Após essa decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, várias ações penais têm sido propostas com sucesso pelo Ministério Público Federal, como no caso dos réus Curió e Ustra. O poder judiciário brasileiro tem respondido favoravelmente às demandas e, talvez, o próprio Supremo Tribunal Federal possa vir a rever sua posição no futuro.

Essa tarefa poderia ser facilitada se o direito à verdade adquirisse contornos jurídicos mais precisos nas convenções internacionais e regionais, figurando como norma explícita, dotada de inquestionável força vinculante.

Referências bibliográficas

BORGES, Leonardo Estrela. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

GROOME, Dermot. “The right to the truth in the fight against impunity”, in Berkeley Journal of International Law, vol. 29:1, 2010.

MARCON, Glafira A. “Does Brazil have the right to truth?”, the Macalester Review, vol. 3: Iss.2, Article 8, 2013.

NAQUVI, Yasmin. “The right to the truth in international law: fact or fiction?”, in International Review of the Red Cross, vol. 88, No. 862, junho 2006.

PAUWELYN, Joost. Conflict of Norms in Public International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

Documentos

Working Group on Enforced or Involuntary Disappearances. General Comment on the Right to the Truth in Relation to Enforced Disappearances (http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Disappearances/GC-right_to_the_truth.pdf) (acesso em 21/11/2014).

Decreto No. 849, de 25 de junho de 1993 (http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/113221/decreto-849-93) (acesso em 22/11/2014)

Set of Principles for the Protection and Promotion of Human Rights Through Action to Combat Impunity (E/CN.4/2005/102/Add.1.), http://www.derechos.org/nizkor/impu/principles.html (acesso em 20/11/2014).

2006 International Convention for the Protection of All Persons from Enforced Disappearance (http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CED/Pages/ConventionCED.aspx) (acesso em 20/11/2014).

Estatuto da Corte Internacional de Justiça. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm) (acesso em 20/11/2014)

Lei No. 6683, de 28 de agosto de 1979 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm) (acesso em 22/11/2014).


[1] Professor de Direito Internacional da USP. Diretor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

[2] As quatro Convenções de Genebra de 1949 trouxeram um grande avanço para o direito internacional humanitário. Foram complementadas em 1977 com a adoção dos Protocolos I e II, promulgados no Brasil pelo Decreto No. 849, de 25 de junho de 1993. Artigo 32: “Na aplicação da presente Sessão, as atividades das Altas Partes Contratantes, das Partes em conflito e das organizações humanitárias internacionais mencionadas nas Convenções e no presente Protocolo deverão estar motivadas primordialmente pelo direito que têm as famílias de conhecer a sorte de seus membros”.

[3]http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CED/Pages/ConventionCED.aspx (acesso em 20/11/2014).

[4] Ver Princípio 2 do “Set of Principles for The Protection And Promotion of Human Rights Through Action to Combat Impunity (E/CN.4/2005/102/Add.1.), nos termos do qual “the right to the truth is both a collective and an individual right. Each victim has the right to know the truth about violations that affected him or her, but the truth also has to be told at the level of society as a “vital safeguard against the recurrence of violations” http://www.derechos.org/nizkor/impu/principles.html (acesso em 20/11/2014).

[5]  Diz a autora: “The “right to truth” is an emerging concept in international human rights law, but it is by no means enforced equally across nations. The body of literature on the explicit right to truth is limited because although it is a developing principle of human rights, there is no official universal right to truth in regional or international convention”.


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