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verdade

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Ínicio

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Filosofia do Direito

FILOSOFIA DO DIREITO

Uma reflexão sobre o direito à verdade, a justiça de transição e o papel do jurista – Lauro Joppert Swensson Jr.

DIREITO À VERDADE

Seminário da Feiticeira

Seminário da Feiticeira

22/12/2014

Por Lauro Joppert Swensson Jr.[1][2]

“Ein guter Jurist würde aufhören, ein guter Jurist zu sein, wenn ihm in jedem Augenblick seines Berufslebens zugleich mit der Notwendigkeit nicht auch die tiefe Fragwürdigkeit seines Berufes voll bewußt wäre”.[3]

Gustav Radbruch, Rechtsphilosophie, §14  

1. Introdução

Se o silêncio e um certo negacionismo sobre o passado ditatorial prevaleceram por muitos anos no Brasil, tornando-se a discussão sobre determinados episódios da ditadura militar em uma espécie de tabu, por outro lado, questões relacionadas aos “porões da ditadura” começaram a ser discutidas a partir de meados dos anos 2000 sob a mote de “justiça de transição” (transitional justice, Vergangenheitsbewältigung).

Com o fim da guerra fria, os crimes cometidos pelos Estados não puderam mais ser justificados ideologicamente como meio necessário para salvaguardar o país da ameaça comunista. Em uma democracia que se diz consolidada, como a brasileira, era muito pouco provável que a sociedade, ou pelo menos parte dela, se mantivesse em silêncio, impassível diante das graves violações de direitos humanos praticadas pelos agentes estatais e seus colaboradores. É necessário enfrentar as mazelas do passado autoritário. Para tanto, é preciso definir vítimas, ouvi-las, repará-las e compensá-las; atribuir responsabilidades e encontrar formas de punição aos responsáveis; promover mudanças na legislação e em certas instituições. Mais do que isso, é preciso oferecer outra “verdade” histórica e uma nova ideologia em substituição à que orientou os atos da ditadura. São essas basicamente as propostas da justiça de transição, enquanto projeto político que visa transformar o Estado, o direito e a própria sociedade, no sentido de demarcar a diferença entre o antigo e o novo regime político.[4]

No debate nacional (e também internacional) sobre a justiça de transição é recorrente, portanto, a preocupação com a verdade. Afirma-se que estabelecer a verdade histórica sobre o regime autoritário e reconhecê-la oficialmente é uma forma de satisfazer as vítimas e de melhorar a vida política e social, possibilitando, assim, a reconciliação. O argumento é que, ao se conhecer fatos do passado e ao se compreender suas causas e consequências, torna-se possível estabelecer responsabilidades e educar as novas gerações com base na verdade histórica. Resta saber se e em que sentido essa busca pela verdade é possível e/ou desejável.

Para tratar do tema “direito à verdade em alguns aspectos políticos”, que pautou a segunda mesa de discussões do “Seminário da Feiticeira”, eu gostaria de fazê-lo levando em consideração o tema da justiça de transição brasileira – a exemplo da exposição do Ministro Nelson Jobim sobre “o direito à verdade e anistia”. Trata-se de uma reflexão que abrange não apenas o aspecto político do debate, mas também o jurídico, uma vez que a busca pela verdade na justiça de transição não é uma tarefa apenas dos atores políticos, mas também dos operadores do direito, enquanto condição primeira para se alcançar o seu objetivo principal: a justiça.[5] Em relação ao direito, há uma relação de causa e efeito entre e verdade e justiça, na medida em que o estabelecimento da verdade acerca dos fatos, ao lado da interpretação correta e adequada das normas vigentes, é o pressuposto para atingir a solução justa. Daí dizer-se que a verdade constitui uma finalidade instrumental e intermediária que permite alcançar a justiça como finalidade última da atividade jurídico-processual.[6]

Em suma, o objetivo do presente texto é compartilhar certas inquietações acerca do argumento do verdade, utilizado frequentemente pelos defensores da justiça transicional. Trata-se, pois, de um ensaio, em que se busca expor algumas ideias e pontos de vista sobre o tema da verdade na justiça de transição e no direito, sem, contudo, explora-lo de forma exaustiva. A função deste ensaio é muito mais especulativo, no sentido de levantar perguntas e problemas sobre o tema, do que “diretivo”, isto é, voltado a encontrar respostas e soluções, como se costuma fazer nos trabalhos jurídico-dogmáticos. Supostas verdades inferidas pelo leitor a partir dos nossos argumentos devem ser vistas como “verdades” relativas, servindo apenas como sugestões para reflexão. Nossa preocupação, aqui, é com as perguntas, conduzindo-nos pela busca da verdade, sem, todavia, a pretensão de encontra-la. Como disse Guimarães Rosa, no seu “Grande Sertão: Veredas”, “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”.

2. Sobre as concepções da verdade e suas antinomias

Falar sobre a verdade no direito e/ou na política significa adentrar num tema difícil e delicado. Em primeiro lugar, o argumento da verdade, tal como levantado por defensores da justiça de transição (e pelos juristas), é utilizado muitas vezes de maneira imprecisa, gerando confusão. Por exemplo, utiliza-se muitas vezes a expressão “direito à verdade”, não a diferenciando, pelo menos suficientemente, do direito à memória e do direito ao saber (direito à informação ou direito de conhecer).[7] Seriam tais expressões sinônimos? Ou haveria diferenças, que não podem ser suprimidas? Direito à memória não referir-se-ia mais ao direito de recordar e expressar publicamente tais recordações? Direito ao saber ou à informação não consistiria mais no direito subjetivo de acessar e conhecer certas informações que se encontram, por exemplo, em poder do Estado, especialmente sobre acontecimentos passados que ainda não encontram-se satisfatoriamente esclarecidos?[8] Em que sentido e medida esses direitos se relacionam com a verdade? A memória e a informação a que se têm direito precisam ser verdadeiros? A função retórica (e ideológica) desempenhada pela verdade (“não sou eu quem afirma X; X ‘é’ a verdade”), que existe em relação ao direito à verdade, existe ou deve estar presente nos direitos à memória e ao saber?

Não devemos confundir, portanto, “direito à verdade” com “direito ao saber” ou “direito à memória”. Tanto que a identificação de certos problemas relativos ao tema da verdade, como veremos a seguir, não implica, necessariamente, o reconhecimento de problemas relativos ao “direito ao saber” ou o “direito à memória”. Na nossa opinião, é deveras um imperativo ético ou da “dignidade nacional”, conforme as palavras de Sepúlveda Pertence,[9] viabilizar a reconstituição histórica daqueles tempos, através da abertura de todos os arquivos da repressão, bem como da oferta de um espaço público ao testemunho das vítimas, naquilo que Tércio Sampaio Ferraz Jr. denomina “verdade ética” [10] (a exemplo do que ocorreu no julgamento de Eichmann, em Jerusalém, onde, em contraste com o tribunal de Nuremberg, as vítimas do holocausto tiveram a oportunidade de se fazerem ouvir).[11] Inclusive, a implementação desse direito ao saber e à memória através da pesquisa de arquivos e da tomada de testemunho das vítimas já vem sendo, desde há algum tempo, realizada pelos historiadores, pelas comissões nacional e estaduais da verdade e nos processos da Comissão da Anistia, respectivamente,[12] de modo que aquilo que resta ser alcançado não é tanto o conhecimento dessa “verdade” (dos arquivos e das vítimas), mas a sua maior divulgação para atender certos objetivos políticos e sociais.[13]

Em segundo lugar, existem concepções (filosóficas) distintas e antinômicas sobre a natureza do conhecimento verdadeiro, que correspondem às diferentes origens linguísticas do termo. Como explica Marilena Chauí, verdade, em grego, se diz aletheia, significando o não oculto, o não-escondido, o não-dissimulado, ou seja, “a manifestação daquilo que é ou existe tal como é”.[14] Nesse sentido, a verdade está nas próprias coisas ou na própria realidade, de modo que o conhecimento verdadeiro possa ser entendido como a percepção intelectual e racional dessa verdade (evidência). O oposto de verdadeiro é o falso, o pseudos (aquilo que é encoberto, escondido, dissimulado) e uma ideia é verdadeira quando corresponde ao fato real, exterior ao espírito e ao pensamento humano (teoria da evidência e da adequação).

Já, em latim, verdade se diz veritas. Nesse caso, ela refere-se “à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato, no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu”.[15] O conhecimento verdadeiro diz respeito, destarte, à própria linguagem, e depende da coerência lógica das ideias que formam a narrativa (validade lógica dos argumentos). “Agora, não se diz que uma coisa é verdadeira porque corresponde a uma realidade externa, mas se diz que ela corresponde à realidade externa porque é verdadeira.”[16] O oposto do verdadeiro não é o falso, como no caso da aletheia, mas é a mentira ou a falsificação. Desse modo, são os relatos e os enunciados que podem ser verdadeiros e falsos, enquanto que as coisas e os fatos podem ser reais ou imaginários.

Por sua vez, em hebraico, verdade se diz emunah, significando “uma crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que será ou virá”.[17] A verdade se relaciona aqui com a presença e com a espera de que a promessa ou o pacto irá cumprir-se ou acontecer, a exemplo do Deus verdadeiro, que é fiel às alianças firmadas com os homens, que não trai a confiança Nele depositada. Em outras palavras, a verdade é compreendida muito mais como o resultado de um acordo ou de um pacto de confiança entre os pesquisadores e estudiosos, que definem um conjunto de convenções universais (sobre o conhecimento verdadeiro), que devem ser respeitadas por todos.

Ao lado das teorias da correspondência (aletheia), coerência (veritas) e do consenso (emunah) sobre a verdade, existe ainda uma quarta teoria que se diferencia das anteriores, porque define o conhecimento verdadeiro a partir de um critério prático, e não teórico. Trata-se da teoria pragmática, segundo a qual um conhecimento é verdadeiro em razão dos seus resultados e das suas aplicações práticas, devendo ser verificado ou verificável pela experimentação e pela experiência (verificabilidade dos resultados).[18]

Todas essas teorias sobre a verdade – formadas historicamente através das mudanças na estrutura e organização das sociedades, bem como a partir das mudanças ocorridas no interior do próprio conhecimento filosófico – compõem o entendimento atual sobre a verdade e o verdadeiro, de sorte que as peculiaridades, diferenças, complementaridades e incompatibilidades entre elas não podem ser ignoradas.

Sem querer aqui tratar das diferentes concepções da verdade e dos problemas relacionados à possibilidade ou à impossibilidade filosófica de se encontrar um critério de verdade consensual ou mais satisfatório,[19] parece-nos suficiente, como ponto de partida, assumir a necessidade e a utilidade da ideia de verdade para orientar nossas ações cotidianas, ou seja, de uma objetividade que esteja além de nosso poder de decisão e que não se confunda, por sua vez, com a prática de justificação.[20] Mais do que isso, é possível sustentar, para além das aporias que envolvem o seu conceito, que essa objetividade pode ser obtida através da adoção do critério de senso comum, isto é, de uma teoria da correspondência entre fato e representação. Graças ao emprego de meios racionais, acreditamos ser possível, a princípio, conhecermos a verdade sobre algo que efetivamente ocorreu, quando há provas que o afirmam com credibilidade, gerando certeza em seu auditório.[21]

3. Alguns problemas relativos à busca da e ao direito à verdade

Além dessas questões envolvendo as várias concepções da verdade, existem vários outros problemas a ela relacionados, especialmente no que diz respeito à possibilidade de se buscar a verdade ou à existência de um direito à verdade no plano jurídico. São problemas de certa forma conhecidos e que já foram, em relação à justiça de transição brasileira, lucidamente apontados por Dimitri Dimoulis, contrariando o otimismo assumido por certos autores brasileiros, que acreditam existir uma verdade em relação aos acontecimentos do passado que poderia ser buscada, tal como procuramos um objeto perdido, e que essa busca consistiria numa das finalidades centrais não só da justiça de transição, mas do próprio direito.[22]

O que significa, afinal, “direito à verdade”? É um direito no sentido jurídico, judicialmente exigível? Ou trata-se muito mais de um artifício retórico para indicar os anseios de determinados grupos sociais, tal como alguém invoca o “direito de ser feliz”? Existe proclamado no ordenamento brasileiro a ele incorporadas um “direito à verdade”?[23] Ou trata-se, no máximo, de um direito ainda “em construção”, conforme disse Umberto Celli, em sua exposição? Mas o que significa um “direito em construção”? Ele pode ser judicialmente exigível? Já encontra-se juridicamente protegido?

Exigir que o Estado adote e divulgue certas “verdades” históricas não viola, afinal, o direito à liberdade de pensamento e de desenvolvimento da personalidade ou mesmo o imperativo da neutralidade estatal diante crenças e posições dos indivíduos? Em outras palavras, esse suposto “direito à verdade” não constitui violação ao dever estatal de respeitar a liberdade de opinião (art. 5o, IV, VI, IX, LII e art. 220 da CF), de preservar o pluralismo político (art. 1o, V, da CF), assim como de proibir a criação de preferências entre brasileiros, enquanto especificação do princípio da igualdade (art. 19, III, da CF)?

O que existiria, afinal, em relação à verdade no direito, não seria um direito à não verdade, no sentido do dever de abstenção do Estado, a quem não cabe avaliar opiniões de pessoas e grupos ou fazer proselitismo a crenças oficiais? Conforme o exemplo apresentado por Dimoulis, “a Constituição Federal garante a quem assim o desejar o direito de se considerar reencarnação de “Inri Cristo” e de se apresentar como tal. Não porque isso seja verdade, mas porque o Estado não pode impedir a manifestação de nossas opiniões, sendo elas verdadeiras ou falsas.”[24]

Admitamos, contudo, que houvesse um direito à verdade: quem está apto a declarar a verdade? Um historiador? Um filósofo? Um religioso? Um parlamentar? O Presidente da República? Um juiz de direito? Um membro de uma comissão da verdade? Sob quais critérios e limites dever-se-ia buscar a verdade? Observando-se garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito, mesmo sob o risco dessa busca se transformar em processos demorados e socialmente estéreis? Ou através de uma procura totalmente livre de parâmetros jurídicos? Informações trazidas à luz sobre acontecimentos ilícitos ou delitivos praticados pode (ou deve) ensejar a responsabilizar dos seus autores. Seria, destarte, possível utilizar as informações obtidas através de uma busca livre, isto é, sem estar pautada em garantias constitucionais do investigado, como provas para futuras responsabilizações?

Mesmo inexistindo, hipoteticamente, obstáculos normativos e fáticos para a busca da verdade, como tempo, pesquisadores e dinheiro totalmente ao dispor, pergunta-se: existe, afinal, uma verdade histórica, acessível a certa autoridade estatal ou comissão independente, quando se trata de acontecimentos complexos, que envolvem milhões de pessoas, acirrados conflitos políticos e intrincadas relações sociais? A análise de arquivos estatais e testemunhos de pessoas, geralmente com forte engajamento ideológico a favor ou contra o regime, permite esclarecer causas e consequências da atuação do Estado durante a ditadura, mediante investigações promovidas, atualmente, pelo próprio Estado?[25] Até que ponto é possível pensar a declaração da verdade, livre de uma manifestação de poder (de quem a declara)? Como lidar com a verdade, estando ela circularmente ligada a sistema de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem?[26]

4. A verdade como princípio regulador

Como se vê, o argumento da verdade, utilizado com frequência pelos partidários da justiça de transição, traz consigo difíceis problemas, que deveriam ser enfrentados ou, pelo menos, não omitidos – especialmente por aqueles que desejam (ou deveriam desejar) empreender uma argumentação honesta, sincera, em que ideários abstratos e altamente controvertidos não fossem furtivamente apresentados como dotados de consistência e coerência.

Se, por um lado, existem sérios (e muitas vezes intransponíveis) problemas relativos à definição do melhor critério do conhecimento verdadeiro, à busca da verdade e ao direito à verdade etc., por outro lado, não há como negar que a verdade não seja, de fato, um importante princípioregulador[27] ou um valor fundamental,[28] não apenas da justiça de transição, enquanto projeto político, mas também do próprio direito.[29]

Em relação à justiça transicional, por exemplo, apesar de todos os problemas acima mencionados, o tema da verdade não deixa de aparecer como um dos quatro pilares da justiça transicional, ao lado da responsabilização dos perpetradores de violações contra os direitos humanos (justiça), da mudança de legislação, jurisprudência e instituições estatais e da reparação financeira e simbólica às vítimas. Como dissemos acima, sustenta-se que o estabelecimento da verdade histórica sobre o regime autoritário e o seu reconhecimento oficial é uma forma de satisfazer as vítimas e parcelas da sociedade, bem como de melhorar a vida política e social, de sorte a tornar a reconciliação nacional possível.

Em relação ao direito, por sua vez, o apego à verdade pode ser constatado, por exemplo, nas finalidades atribuídas ao direito processual. Segundo a doutrina majoritária, o processo objetiva não apenas a solução da lide através de uma decisão impositiva do Estado, de modo a encerrar juridicamente a controvérsia e pacificar os conflitos sociais. Sua finalidade é, mais do que isso, encontrar a verdade e, a partir dela, oferecer a solução justa ao caso concreto (Einzelfallgerechtigkeit).[30] Em relação ao processo penal, especificamente, o conceito de verdade material se impõe como forma de contenção do poder punitivo, na medida em que impede a legitimação de uma condenação baseada apenas em probabilidades ou incertezas.[31]

Enfim, não é porque não consigamos alcançar, em inúmeros casos, “a verdade”, isto é, uma verdade que possa valer de forma objetiva ou pelo menos intersubjetiva sobre determinados acontecimentos ou, então, encontrar no ordenamento jurídico um “direito à verdade”, judicialmente protegido, que a verdade não exista ou seja uma quimera. Não há como negar que a verdade, enquanto valor, confere às coisas, aos seres humanos e ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados indiferentes à ela.[32] Qualquer que seja o seu entendimento, a verdade se projeta como elemento decisivo para a formação das identidades dos indivíduos e das coletividades.[33] Tanto defensores da justiça de transição, quanto os operadores do direito acreditam e/ou devem acreditar no caráter verdadeiro daquilo que defendem e decidem.[34] A verdade apresenta-se, de fato, como um princípio regulador da justiça de transição e do direito, no sentido de orientar suas deliberações e decisões. É justamente nesse sentido, ao mesmo tempo fictício e real, que procede a afirmação doutrinária de que não é possível abrir mão da busca da verdade.[35]

Assim, uma pergunta central que deve ser feita não diz respeito apenas à possibilidade ou à impossibilidade de se encontrar “a verdade” através da justiça de transição e do direito, ou então à existência mesma de um “direito à verdade”. Ela consiste em saber por que a justiça de transição e o direito insistem em assumir a “verdade” como um seu princípio regulador, mesmo com todos os problemas relacionados à busca e ao direito à verdade. Não seria mais racional, prudente e honesto abrir mão da verdade entre as finalidades pretendidas pela justiça de transição e pelo direito?

5. A verdade como mito: Salomão e Azdak

A possibilidade de o julgador ou o intérprete autêntico do direito encontrar a verdade, como finalidade do direito e da justiça de transição, aparece, ao nosso ver, como um mito que, justamente por ser mito, não deve ser desprezado. Se, por um lado, estamos sempre em busca de significados para a nossa vida, como uma forma de situar-nos e orientar-nos no mundo, por outro lado, tais significados decorrem de crenças, muitas delas não adequadamente bem fundamentadas. Quando essas crenças são consideradas imprescindíveis, mesmo com a defasagem entre a confiança que fazem emergir e sua racional avaliação, elas tornam-se verdadeiros mitos.

Ao tentarmos, por exemplo, falar sobre o sagrado ou sobre a dor da condição humana, nós muitas vezes não conseguimos expressar essas nossas experiências em termos lógicos, discursivos. É preciso recorrer à mitologia, em que se atribui um “poder mágico” a determinado ente, objeto ou potência ignorada. Mesmo Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, que foram os primeiros a mapear a chamada busca científica da alma, empregaram os mitos da Antiguidade clássica ou da religião ao tentar descrever esses eventos interiores e elaboraram também alguns mitos próprios. [36] É no mito, especialmente no que se refere ao sagrado, que buscamos encontrar uma “realidade” mais sólida, capaz de explicar, dar sentido e “substância” à existência humana, mais fragmentada. [37]

É difícil, portanto, negarmos a existência de certos mitos, presentes no pensamento de sistemas políticos e jurídicos atuais. Conforme disse André Ramos Tavares, algumas instituições do direito se inseririam nesse marco dogmático, de representações míticas, como ocorre com a Constituição, o poder constituinte e o Tribunal Constitucional.[38] O mito do intérprete ou do juiz de direito, capaz de basear sua decisão na verdade, enquanto condição da sua justiça, compõe, ao nosso ver, esse universo.

Tomemos, por exemplo, as conhecidas figuras de Salomão e Azdak. Tanto o julgamento de Salomão, do primeiro livro de Reis da Bíblia, quanto o do juiz Azdak, do “Circulo de Giz Caucasiano” de Bertold Brecht, sobre quem seria a verdadeira mãe de uma criança em disputa, fazem parte, enquanto representações, da compreensão que nós temos sobre o direito e sua relação com a verdade. Trata-se de importantes modelos de como os juízes de direito devem decidir, que compõem, de certa forma, o inconsciente coletivo dos juristas.

No caso do julgamento de Salomão, a disputa ocorre entre duas prostitutas. Tendo uma delas deitado sobre o seu bebê durante a noite, asfixiando-o, ela troca a criança morta com a da sua colega, enquanto ela dormia. No caso do julgamento de Azdak, trata-se da disputa entre Natella Abaschvíli, a viúva do governador que, mais preocupada em salvar sua própria cabeça e seus vestidos, abandonou o filho durante uma revolta e agora o quer de volta, para ter acesso aos bens do defunto, vinculados à pessoa do herdeiro, e a serviçal Grucha, que salvou a criança e sacrificou-se para cuida-la como seu próprio filho. Salomão manda entregar-lhe uma espada para repartir a criança em duas e, dessa forma, reparti-la entre as duas mulheres. Aquela que preferisse abrir mão da criança, para não vê-la morta, seria a “verdadeira” mãe. Azdak, por sua vez, decide colocar a criança no centro de um círculo de giz, a ser puxada pelas duas mulheres. Aquela que tivesse mais força e conseguisse tirar a criança para fora do círculo, seria a “verdadeira” mãe.

Como observa Rudolf Wiethölter,[39] em sua análise sobre esses dois julgamentos, Salomão é um rei poderoso, um juiz carismático, temido pelo seu povo e inquestionável sobre suas decisões (“E todo o Israel ouviu o juízo que havia dado o rei, e temeu ao rei; porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça”, 1 Reis 3:28). Azdak, por sua vez, é um beberrão; nas suas sentenças ele ofende a todos e, mesmo assim, acende uma centelha de justiça – centelhas essas que, segundo Brecht, representam alguma “séssil” esperança em relação ao direito, especialmente para os desamparados, os aflitos e os oprimidos (“No sistema em que ele atua, a humanidade é uma exceção”). O mundo de Salomão é o da cura, o de Azdak é incurável. A sentença de Salomão é precisa (“esta é sua mãe”), a de Azdak imprecisa (“E com isso (?!?) averiguou o Tribunal quem é a verdadeira (?!?) mãe).[40] O procedimento aparentemente racional de Salomão é profundamente irracional, porque dirigido de maneira especulativa a um determinado modelo de mãe.[41] O procedimento aparentemente irracional de Azdak é profundamente racional, porque dirigido à justiça de classes.

Salomão realiza uma especulação psicológica, ao estilizar as duas mulheres em modelos abstratos de maternidade: uma boa mãe é aquela que prefere perder o seu filho, ao invés de sacrifica-lo; uma mãe má é aquela que prefere ter as duas crianças mortas, ao invés de perdê-la para a sua concorrente. O juízo de Azdak, por sua vez, representa os valores do operariado. A mulher do governador não quer o filho, mas a sua herança. Ela não seria, portanto, uma “verdadeira” mãe. cha, por sua vez, não deseja nenhuma riqueza. (“[Azdak] faz sinal a cha para que ela se aproxime e inclina-se para ela sem severidade. Verifiquei que tens um certo senso da justiça. Não acredito em tua palavra. Mas se ele fosse teu, mulher, não gostarias que fosse rico? Para isso, bastaria dizeres que não é teu. E imediatamente teria ele um palácio, uma porção de cavalos em suas cavalariças, numerosos mendigos à sua porta, e muitos soldados a seu serviço, e muitos solicitantes na sua ante-sala, não é verdade? cha não responde. […] Azdak: Creio que te compreendo, mulher).[42] Grucha deseja apenas ficar com a criança (“Não entrego mais ele. Foi criado foi mim e ele me conhece”),[43] e por isso seria a “verdadeira” mãe. Na verdade, ela não quer somente a criança para si, mas também para a classe operária. Enquanto o sentimento de humanidade e a justiça na sentença de Salomão são um clichê (um lugar comum), na decisão de Azdak, trata-se de uma questão política (“Politikum”).[44]

6. O apartar das disposições legais

O que chama-nos, contudo, a atenção, é o fato de tanto a sabedoria psico-especulativa de Salomão como a justiça dialético-política de Azdak serem modelos de como os juízes de direito devem decidir e, não obstante, mostrarem-se altamente prejudiciais ao direito e, em especial, a uma política coerente de justiça de transição. Se, por um lado, os julgamentos de Salomão e Azdak fazem parte, enquanto representações míticas, da compreensão que nós temos sobre o direito, por outro lado, simbolizam parâmetros supostamente equivocados para as decisões jurídicas, utilizando-se do argumento da verdade. Isso, pelo menos, por dois motivos.

Em primeiro lugar, o argumento da verdade é utilizado como uma maneira de apartar o intérprete do direito das disposições legais que, como sabemos, são constitutivas do direito dos Estados modernos, especialmente os Democráticos de Direito (no caso do ordenamento jurídico brasileiro, especificamente, estabelece o artigo 5o, II da Constituição Federal de 1988 que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e também o artigo 35, I da Lei Orgânica da Magistratura Nacional,[45] que “são deveres do magistrado cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais”).

Conforme Wiethölter, essa negação aos dispositivos legais através do argumento da verdade (e da justiça) não é uma novidade. Pelo contrário. A história do direito natural pode ser vista, em certo sentido, como uma cadeia de sucessivas alterações entre meios e fins, isto é, entre a exigência do respeito às normas e procedimentos legais estabelecidos, por um lado, e a sua desconsideração em razão das consequências e finalidades almejadas, por outro. O resultado jurídico pretendido é, a partir de seus pressupostos normativos e de vida, ora preso em dispositivos legais, ora liberto de tais dispositivos (a exemplo da utilização da Fórmula de Radbruch, utilizada nos tribunais alemães para justificar a punição dos “criminosos” nazistas e, mais tarde, dos delitos praticados pela ex-República Democrática Alemã).[46] Desse modo, é possível afirmar que a humanidade encontra-se até hoje ziguezagueando entre ordens e liberdades, idealidades e realidades, intelectualizações e voluntarismos. E sempre em nome da verdade, da justiça humana ou divina, do direito natural, de uma essência, razão intrínseca ou natureza das coisas. Como afirma Antoine de Rivarol (1753-1805), cujo aforismo é citado por Wiethölter: “com as palavras ordem e liberdade a humanidade dirige-se constantemente do despotismo para a anarquia e da anarquia para o despotismo”.[47]

Ilustrativa, nesse sentido, é a fundamentação do Corregedor Geral de Justiça de São Paulo e autor de vários livros jurídicos, José Renato Nalini, para retificar a causa mortis do registro de óbito de Vladimir Herzog:[48]

O compromisso dos Registros Públicos é com a verdade real. O anacronismo da cultura jurídica ainda não se compenetrou de todo com a atual realidade brasileira, resultado da opção constituinte por verdadeira constitucionalização da ordem jurídica. O positivismo esgotou seu ciclo histórico, na linguagem de Manuel Atienza. Assim como Bloch escreveu que “a escola histórica crucificou o Direito natural na cruz da história”, hoje não é heresia asseverar que “o constitucionalismo crucificou o positivismo jurídico na cruz da Constituição”.[49] A ordem cidadã impõe-se e prepondera sobre o fetiche da lei. Significa isso que a interpretação das leis se fará conforme a Constituição. Ou seja: “de todas as interpretações possíveis de uma lei, o juiz deve descartar todas aquelas que vulnerem (ou que sejam incompatíveis) com a Constituição”.[50] (…) A decisão não é meramente formal, senão emblemática, assim como o fora a corajosa e destemida atuação jurisdicional de Márcio José de Moraes ao condenar a União pelo homicídio do jornalista Vladimir Herzog. Pois “para o juiz, ‘a escolhaentre uma norma válida e outra inválida obedece a considerações que se encontram para além das próprias normas:[51] aética, se se admitir que o direito contém uma representação da obrigação fundada no respeito pelos outros e pelo seu projetode vida em comum; a política, se se admitir que esta se encontra, em parte, vinculada a formas institucionais pré-estabelecidas,ordenadas em função de uma comunidade que pretende, ela própria, apagar os traços da violência originária do poder”.[52] É exatamente disto que se trata. O constituinte de 1988 abomina a violência e quis bani-la da realidade brasileira. Por isso é que o direito não pode desprezar princípios meta-jurídicos, situados para além da norma, calcados na inevitável conclusão de que os seres humanos têm direitos morais contra o Estado.

Por mais que prevaleça, na prática, um positivismo jurídico “intuitivo” e “espontâneo”,[53] e a maioria dos autores contemporâneos rejeite a existência ou, pelos menos, a validade jurídica de um direito supra- ou pré-positivo, natural, considerando-o mais como um sistema de normas criadas e aplicadas pelo Estado para regulamentar o comportamento social ou, então, como uma técnica destinada a solução de conflitos sociais a partir de um conjunto de normas, instituições e decisões,[54] parece que esses autores não conseguem livrar-se do antigo brocardo romano, de que é do direito que decorrem as normas jurídicas e não o contrário (“Non ex regula ius sumatur, sed ex iure, quod est, regula fiat”).[55] Existiria, portanto, um direito além das normas, instituições e decisões jurídicas, de onde decorrem as regras jurídicas. Esse direito além da lei é consubstanciado nas ideias de verdade e justiça e, não obstante, pode e deve ser buscado pelos juristas, a exemplo das decisões tomadas por Salomão e Azdak.

Se o direito não deve consistir apenas nas disposições legais, mas em algo além da lei, há de se perguntar, por conseguinte, em que medida o aplicador do direito está ou deve estar atrelado às normas jurídicas positivadas e tão somente a elas, ou, ao contrário, o julgador deve decidir pensando nas finalidades e nas consequências da sua decisão. E para essa pergunta não há respostas satisfatórias e consensuais, consistindo, pois, numa vexata quaestio. Não estando o juiz atrelado às normas jurídicas positivadas, haveria ainda que se indagar em que medida o juiz estaria pessoalmente responsável pelas consequências das suas decisões. Se o juiz assume para si a tarefa de alcançar certas finalidades e consequências, sobrepujando, no exercício do seu poder criativo de interpretar e aplicar o direito, os limites impostos pela lei positiva e, dessa forma, afastando-se completamente da ideia de que ele é “la bouche de la loi” (Montesquieu), não tornar-se-ia ele pessoalmente responsável pelas consequências de suas decisões?

7. A circularidade do argumento

A necessidade em se fundamentar, num Estado Democrático de Direito, toda a decisão jurídica, especialmente aquela que contrarie a lei, leva-nos ao segundo problema do argumento da verdade. Se partirmos da premissa que não é mais possível abnegar-se, sob o argumento da autoridade (sic volo, sic jubeo), do dever de fundamentar as decisões, as sentenças, os juízos, [56] quem diz que determinado comportamento é verdadeiro ou falso e, por isso, justo ou injusto, precisa explicitar as razões dessa sua afirmação. Acontece que o argumento da verdade é utilizado muitas vezes como artifício retórico ou “fórmula mágica” para encobrir decisões dogmáticas sem fundamentação suficiente e/ou coerente, baseada, por vezes, em meras intuições morais.

O problema reside no fato de as dicotomias verdadeiro ou falso, justo ou injusto, resultarem de imputações feitas a partir de modelos pré-estabelecidos pelo sujeito, distanciados, portanto, das disposições legais positivadas no ordenamento jurídico, que atribuem o significado jurídico objetivo aos fatos naturais.[57] O resultado esperado ou a decisão pretendida já são definidos de antemão num modelo hipotético, criado pelo próprio julgador. O que não se enquadra nesse modelo, não é levado em consideração.

Desse modo, a possibilidade de a mãe natural não ser amorosa com o seu filho, não se importar em perde-lo, em maltrata-lo ou inclusive mata-lo (como infelizmente vê-se com certa frequência nas páginas policiais) ou, inversamente, a hipótese de uma mulher assumir a criança de outrem como se fosse sua, de ama-la, mesmo não sendo seu filho natural, a ponto de preferir deixa-la a sua rival, ao invés de vê-la repartida em duas, não são admitidas por Salomão como mães verdadeiras. O mesmo acontece, embora com um sentido diferente ao do julgamento de Salomão, com Azdak. Uma mulher egoísta, mesquinha, “capitalista”, que se preocupa mais consigo mesma, com seu conforto e com suas riquezas do que com o seu próprio filho, não é considerada uma verdadeira mãe.

A própria justiça de transição, enquanto topos argumentativo da realidade brasileira,  constitui um exemplo dessa circularidade ou hipostasiação, que mais encobre do que fundamenta as decisões dogmáticas propostas. No Brasil, justiça de transição é definida não de uma maneira pretensamente neutra (que evita as preferências pessoais, buscando determinar o conceito o mais objetivamente possível), tampouco crítica (que enfatiza os seus aspectos negativos, através de juízos de valor), mas predominantemente apologética (que defende, elogia e justifica determinada significação, através de um discurso engajado, parcial e muitas vezes apaixonado).[58] Atribui-se, assim, aos termos “transição” e “justiça”, um sentido axiológico, de sorte de a “transição” ser apresentada como sinônimo de progresso moral e civilizatório e a “justiça” como sinônimo de correto e adequado, “sinalizando o triunfo do Bem contra o Mal, dos Justos contra os Injustos e apresentando o regime anterior como espécie de doença maligna que deve ser extirpada”.[59]

Ao exibir a transição como sinônimo de progresso moral e civilizatório e a justiça como o triunfo do bem contra o mal, as mudanças almejadas e as medidas a serem adotadas através do projeto político da justiça transicional são de antemão consideradas legítimas, justificadas. Justiça de transição apresenta-se, pois, como um standard ou “plataforma” de justificação, a partir do qual se realizam avaliações críticas sobre o passado, todavia sem ela mesma se submeter a um juízo crítico. De que maneira? Assumindo na sua definição e utilizando em seu discurso conceitos que já estariam presumidamente justificados: direitos humanos, democracia, dignidade humana, paz, justiça, verdade. Concretamente em relação ao Brasil, por estarem tais conceitos supostamente consagrados no próprio ordenamento jurídico, seja pela Constituição, seja por força do direito internacional dos direitos humanos, seja pela jurisprudência e doutrina majoritárias que os deslumbram. Como se infere da própria expressão: justiça de transição é a transição justa.[60]

Essas fascinantes fórmulas vazias, magníficas tautologias ou pseudo-fundamentações, tão facilmente oferecidas pela justiça de transição e pelo direito, em muito pouco ou quase nada ajudam na solução dos conflitos sociais. Isso é proibido porque é proibido; as alegações do meu adversário político não merecem crédito, porque não merecem crédito; auto-anistias não são válidas porque não são válidas; os resultados das investigações da Comissão Nacional da Verdade são verdadeiros porque são verdadeiros; os torturadores da ditadura devem receber uma pena porque devem receber uma pena. Trata-se, metaforicamente falando, de empreendimentos típicos de um Barão de Münchhausen, que libertou-se do pântano puxando os seus próprios cabelos.

Qual modelo de justiça de transição deve ser seguido no Brasil? Quais estratégias e mecanismos devem ser utilizados? As respostas a essas perguntas dependem inevitavelmente de opções políticas pessoais e, num Estado Democrático de Direito, dos limites impostos pela lei,[61] de modo que não seja possível, em nome da verdade (e da justiça), suprimir a reflexão crítica e o debate através das mais variadas formas de censura.

8. O papel do jurista: desmistificar o mundo jurídico

Se a verdade apresenta-se como um dos alicerces principais da justiça de transição, por outro lado, ela pode destruir, paradoxalmente, o próprio projeto de justiça transicional, enquanto política consolidadora do Estado de Direito e da Democracia no novo regime político.

Como dissemos, justiça de transição consiste em um projeto político que visa transformar o Estado, o direito e a sociedade. Um primeiro sentido refere-se, pois, ao conjunto de julgamentos, depurações e reparações que se realizam após a mudança de um regime político para outro. Trata-se, em poucas palavras, de um “acerto de contas” com o passado, após mudanças de regime. O novo Estado, para construir seu plano de futuro, deve antes resolver feridas pretéritas que ficaram abertas.[62] Tornando-se os direitos humanos, após as experiências trágicas das duas grandes guerras, modelos político-emancipatórios globais e língua franca entre as nações[63] e a democracia, por sua vez, o regime político mais apto a fomentar o seu respeito, [64] prevalece na doutrina internacional e brasileira um sentido mais estrito e apologético de justiça de transição. Assume-se a perspectiva da vítima, dotada de direitos subjetivos inatos, como orientadora das ações de justiça transicional e ela passa a ser entendida como resposta às extensas e sistemáticas violações de direitos humanos, com fins ao (re)estabelecimento da paz, do Estado de Direito e da democracia sustentáveis.

Mas o que significa o Estado de Direito, senão a “despersonificação” do poder estatal através da lei ou no domínio da lei (Herrschaft des Gesetzes), naquilo que John Adams denomina “government of laws and not of men”?[65] Não se trata, afinal de contas, da defesa de um design institucional do Estado, através do qual o poder estatal passa a ser fundado nos princípios da reserva legal (Gesetzesvorbehalt), da primazia da lei (Vorrang des Gesetzes) e do império da lei (Gesetzmäßigkeit der Verwaltung)?[66] Ao se buscar, através do argumento da verdade, flexibilizar o respeito aos ditames da lei, defende-se, paradoxalmente, a implosão do próprio Estado de Direito, que a justiça de transição diz querer assegurar e fortalecer.

Por sua vez, o que significa a democracia, senão a participação dos cidadãos em uma práxis comum (gemeinsamen Praxis), em um processo inclusivo, plural e tolerante de formação das vontades e opiniões políticas, através do exercício de direitos (subjetivos) de participação e comunicação? Falar em democracia não significa necessariamente falar em relativismo, no sentido de o sistema democrático não poder basear-se em pretensões de verdade (a exemplo do comunismo ou do catolicismo), mas em uma maneira correta de procedimentalizar a livre participação discursiva com o fim de gerar instituições aptas a fomentar novas discussões?[67] Ao se insistir, através da justiça de transição, elencar certas “verdades” que devem ser assumidas pelas pessoas, porque são verdades, implode-se a essência mesma da democracia, que consiste na administração e no fomento do dissenso, de maneira pertinaz e perene, objetivando a sua superação. Ou seja, não se permite o diálogo inclusivo, tolerante, amplo, que leva em consideração os vários pontos de vista e, por conseguinte, age-se contra a própria democracia.

Em suma, embora a verdade (e a justiça) motive as importantes transformações do direito e gere esperança para a término de situações de injustiça,[68] causadas muitas vezes pelo próprio direito positivo, dependendo da maneira como o argumento da verdade (e da justiça) é utilizado, ele pode representar uma forma dissimulada de negar a participação das pessoas no processo inclusivo, plural e tolerante de formação das vontades e opiniões políticas. Mais do que isso, ele pode representar uma forma sorrateira de afastar ou manipular as disposições legais, de modo a abster-se das exigências procedimentais impostas pelas normas jurídicas para atingir certas consequências ou certas finalidades desejadas.[69] E isso vai em sentido contrário ao proposto e defendido pela própria justiça de transição.

Há de sermos justos (e verdadeiros) com a justiça de transição. É preciso ter seriedade e ser responsável com ela. E a justiça que deve ser feita não consiste em oferecer “a verdade”, mas busca-la incessantemente, escutando (como fazem a deusas Diké e Justitia com seus olhos vendados, mas os dois ouvidos bem atentos), preocupando-se em entender a razão do outro, em dissecar-lhe o vocábulo, em transitar por mundos e submundos culturais diferentes do seu, em decodificar e descontruir mitos, místicas e rituais, em desautorizar visões unívocas do comportamento humano em realidades sociais marcadas pelo jogo da diferença e da identidade, em compreender as singularidades aos quais a justiça se destina.[70]

Não é, portanto, admissível, em nome da verdade, subtrair a liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte; de não continuarmos a adotar uma atitude crítica em relação ao conhecimento, desvencilhando-nos de preconceitos e hábitos do senso comum; de sermos coagidos a não transmitir, divulgar e discutir as nossas opiniões. Por mais que certas ideias sobre a verdade, (sobre a justiça de transição e o próprio direito) sejam ou pretendam constituir-se mitos em nossas vidas, que nos enchem de sentido e nos fascinam, não podemos nos esquecer da realidade em que nós nos encontramos – realidade esta que, feliz ou infelizmente, é muito diferente do mundo mitológico em que desejamos, muitas vezes, nos apoiar – e devemos estar sempre atentos a ela. (Uma audiência sobre a definição de quem serão os pais de uma criança em disputa, por exemplo, tem muito pouco ou nada a ver com os julgamentos de Salomão ou Azadack).

O que queremos, afinal de contas, com a verdade? Verdades, enquanto conteúdos conhecidos, e ideias da verdades, enquanto formas de se conhecer, são passageiras. Elas mudam com o tempo. O que não muda é a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro. O que não muda é a exigência de vencer o senso comum, o dogmatismo, a atitude natural e seus preconceitos. É somente nesse sentido que a verdade se conserva como o valor mais alto a que aspira o pensamento.[71] Conforme escreveu Kant, não se ensina ou aprende a filosofia, mas a filosofar.[72] Nos dizeres de Ferraz Jr.: “A ciência não nos liberta porque nos torna mais sábios, mas é porque nos tornamos mais sábios que a ciência nos liberta. Adquirir a sabedoria não é ato nem resultado da ciência e do conhecimento, mas é experiência e reflexão, exercício do pensar”.[73]

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[1] Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Doutor em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main, Professor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) em Americana e da Universidade Paulista (UNIP), em Limeira.
[2] O presente ensaio reproduz algumas breves reflexões feitas a partir do Seminário da Feiticeira, ocorrido em novembro de 2014, em Ilhabela. Além dos organizadores e interlocutores do seminário, agradeço imensamente ao Dr. Maurício Bronzatto, ao Dr. Ricardo Leite Camargo e, em especial, a Me. Erika Camargo Vegners pelas leituras críticas do e pelas importantes sugestões ao manuscrito.
[3] “Um bom jurista deixaria de sê-lo se a cada momento da sua vida profissional não se conscientizasse tanto da necessidade quanto, ao mesmo tempo, da profunda fragilidade de sua profissão”.
[4] United Nations, Office of the High Commissioner for Human Rights. Rule of Law Tools for Post-Conflict States: Prosecution Initiatives, HR/PUB/06/4, 2006, p. VI. Disponível em: http://www.refworld.org/cgi-bin/texis/vtx/rwmain?docid=46cebb6c2. Acesso em: 28.2.2015.
[5] Como termina o “Manifesto público dos juristas em prol do debate público nacional sobre o alcance da lei de anistia”, lançado da faculdade de direito do Largo São Francisco em 29 de agosto de 2008 e que contou com a assinatura de mais de 270 reconhecidos juristas brasileiros: “E ainda, por fim, presta solidariedade a todos os perseguidos políticos que, a mais de três décadas, fazem coro por uma única causa, a própria razão de ser do Direito: que se faça a Justiça”. Manifesto público dos juristas em prol do debate público nacional sobre o alcance da lei de anistia, 2008. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4134:manifesto-pblico-dos-juristas-em-prol-do-debate-nacional-sobre-o-alcance-da-lei-de-anistia&catid=33:noticias-em-destaque. Acesso em: 28.02.2015. Conforme disse Dimitri Dimoulis (2010, p. 101): “O modelo da verdade se baseia na dupla ideológica “justiça/verdade” que costuma ser apresentada como finalidade da aplicação das previsões jurídicas.”
[6] Lunardi, Dimoulis, 2007, p. 177.
[7] Por exemplo, Barbosa, Vanuchi, 2009, p. 57-60; Sampaio, Almeida, 2009, p. 249 ss.
[8] Cf., por exemplo, a proteção constitucional prevista no art. 5o, XIV e XXXIII da Constituição Federal de 1988.
[9] Cf. entrevista do Ministro Sepúlveda Pertence ao Carta Maior em 18 de janeiro de 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16339&editoria_id=4. Acesso em: 28.02.2015.
[10] Cf. exposição de Tércio Sampaio Ferraz Jr. no Seminário da Feiticeira: “Direito à verdade: verdade no sentido ético ou epistemológico?”.
[11] Cf. exposição de Leora Bilsky: “O direito à verdade transforma a figura da testemunha?”.
[12] Por exemplo: Fico, 2001.
[13] Nesse sentido, Dudena, 2013, p. 316-335. Como afirmamos em outro artigo (Swensson Jr, 2013, p. 73), aquilo que por anos obstaculizava o conhecimento de certos documentos relativos ao período da repressão nunca foi a anistia, no seu sentido jurídico-penal, mas normas outras que desafortunadamente os cobriam de sigilo (Leis 8.159/91 e 11.111/05). Conforme o parecer do Conselheiro José Paulo Sepúlveda Pertence sobre o Projeto de Lei de Anistia em tramitação no Congresso Nacional, de 24 de julho de 1979: “não é preciso acentuar, de seu turno, que a extensão da anistia aos abusos da repressão terá efeitos meramente penais, não elidindo a responsabilidade civil do Estado, deles decorrentes”. Como disse Paulo Brossard, em discurso proferido no Senado em 17 de março de 1981: “Estejam tranquilos os torturadores. O caráter bilateral da anistia os beneficiou: estão eles a salvo da lei penal pelos crimes que tenham cometido. O fato da tortura, porém, é inapagável. É uma nódoa histórica que a anistia desgraçadamente não apaga. Antes apagasse”. Conforme ainda o Ministro Eros Grau no final do seu voto, como relator, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153 (ADPF/153): “Há coisas que não podem ser esquecidas”. APDF/153, Voto Eros Grau, p. 45.
[14] Chauí, 2001, p. 99.
[15] Ibidem, p. 99.
[16] Ibidem, p. 100.
[17] Ibidem, p. 99.
[18] Ibidem, p. 100.
[19] Sobre as aporias e dificuldades relacionadas à verdade, cf., entre outros, Arzt, 1996, p. 53; Martins, 2010, p. 61- 90; Dimoulis, 2010, p. 99-106; Lunardi, Dimoulis, 2007.
[20] Martins, 2010, p. 67.
[21] Dimoulis, 2010, p. 101; Lunardi e Dimoulis, 2007, p. 184-187.
[22] Dimoulis, 2010, p. 99 ss.
[23] O direito à verdade aparece apenas na “Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado”, assinada em Paris em 6 de fevereiro de 2007, cujo texto foi aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 661, de 1o de setembro de 2010. Cf. Art. 24, 2. “A vítima tem o direito de saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida. O Estado Parte tomara? medidas apropriadas a esse respeito”.
[24] Dimoulis, 2010, p. 103.
[25] A esse respeito, por exemplo, a instigante citação feita por Ferraz Jr., na sua exposição, ao trecho do Denktagebuch de Hannah Arendt. “na frase, ‘como as coisas realmente foram’ está algo como ‘de outro modo não poderia ter sido’. A testemunha ocular de um acontecimento visto (versus: aquilo que eu mesmo fiz!) e a dubitabilidade de toda documentação histórica. Quanto mais documentos, mais duvidoso se torna tudo”.
[26] Cf. Foucault, 2008, p. 14.
[27] Lunardi, Dimoulis, 2007.
[28] Chauí, 2001.
[29] Sobre a diferença entre princípio e valor, ver, entre outros, La Taille, 2006, p. 73 ss.
[30] Dimoulis, Lunardi, 2007, p. 177, com diversas indicações bibliográficas. Cf. tb. Sampaio, Almeida, 2009, p. 262.
[31] Martins, 2010, p. 82, 83, com ampla bibliografia. Além das referências à verdade pela doutrina, elas também são constantes na legislação processual (são 22 citações dos termos “verdade” e “verdadeiro” no CPC e 16 no CPP), bem como no discurso rotineiro das partes durante o processo. Conforme Lunardi e Dimoulis (2007, p. 186), “as controvérsias sobre as provas durante o processo e os eventuais recursos se baseiam em avaliações sobre ‘o conteúdo de verdade’ (Wahrheitsgehalt) da decisão. Mesmo se o inconformismo for motivado pelo interesse pessoal da parte, isso será necessariamente “traduzido” em termos de verdade de certa premissa do silogismo jurídico”.
[32] Chauí, 2001, p. 90.
[33] Sampaio, Almeida, 2009, p. 250.
[34] Martins, 2010, p. 82, 83; Dimoulis, Lunardi, 2007, p. 186, 187.
[35] Ibidem, 2007, p. 186.
[36] Armstrong, 2011, p. 16.
[37] “Hoje a palavra mito tem sido um tanto aviltada em nossa cultura, que em geral a utiliza para designar algo que não é verdadeiro. Fatos que são “apenas” mitos não merecem consideração.  É o que ocorre no debate acerca de Jerusalém. Os palestinos argumentam que não existe nenhuma evidência arqueológica do reino judeu fundado por Davi e que nunca se encontrou um único vestígio do Templo de Salomão. Com exceção da Bíblia, nenhum texto contemporâneo menciona o reino de Israel – o qual, portanto, provavelmente não passa de um “mito”. Os israelenses consideram absurda e não demonstrável a história de que o profeta Maomé subiu ao céu a partir do Haram al-Sharif de Jerusalém – um mito que está no próprio cerne da devoção dos muçulmanos a al-Quds. Concluí que isso denota ignorância. A mitologia surgiu não para descrever fatos historicamente verificáveis, e sim para tentar expressar seu significado interior ou ressaltar realidades por demais elusivas para serem discutidas de maneira coerente. Porque aborda dimensões internas do eu – tão misteriosas e ao mesmo tempo tão fascinantes para nós –, ela é bem definida como uma forma antiga de psicologia. Tocando nas fontes obscuras da dor e do desejo humano, podem desencadear emoções intensas. Não se devem descartar certas histórias de Jerusalém porque “não passam de mitos”: sua importância se deve justamente ao fato de serem mitos.” Ibidem, p. 16.
[38] Tavares, 2005, p. 540.
[39] Wiethölter, 1986, p. 12 ss.
[40] Brecht, (1955), 2002, p. 188.
[41] O próprio texto bíblico profetiza, em ameaça, pais comendo a carne dos próprios filhos e filhas, por descumprirem os mandamentos de Deus (Levítico 26, 29: “Porque comereis a carde de vossos filhos e a carne de vossas filhas comereis”) e descreve, no cerco a Samaria por Ben-Hadade, rei da Síria, o acerto entre duas mulheres para comerem seus filhos, em razão da fome (2 Reis 6, 27-29: “E sucedeu que, passando o rei pelo muro, uma mulher lhe bradou, dizendo: Acode-me, é rei, meu senhor. E ele lhe disse: Se o Senhor te não acode, de onde te acudirei eu, da eira ou do lagar? Disse-lhe mais o rei: Que tens? E disse ela: Esta mulher me disse: Dá cá o teu filho, para que hoje o comamos e amanhã comeremos o meu filho. Cozemos, pois, o meu filho e o comemos; mas, dizendo-lhe eu ao outro dia: Dá cá o teu filho, para que o comamos, escondeu o seu filho”).
[42] Brecht (1955), 2002, p. 185, 186.
[43] Ibidem, p. 186.
[44] Wiethölter, 1986, p. 16.
[45] Lei Complementar 35/1979.
[46] A “Fórmula de Radbruch”, apresentada pelo professor de Heidelberg no seu artigo Gesetzliches Unrecht und übergesetziches Recht (in: Süddeutsche Juristenzeitung, vol. 1, 1946, p. 105-108), sustenta que “o conflito entre a justiça e a segurança jurídica deveria ser resolvido no sentido de que o direito positivo, garantido através da legiferação e do poder, deve prevalecer mesmo quando, do ponto de vista do conteúdo, é injusto e inadequado. A não ser que a contradição entre a lei positiva e a justiça alcance um nível tão insuportável, que a lei, enquanto ‘direito injusto’, deve recuar diante da justiça. (…)”. Sobre a fórmula de Radbruch, entre outros: Alexy, 1993, p. 3-7; Dreier, 1993; Hassemer, 2002; Naucke, 1996, p. 44 e ss; Neumann, 2010, p. 129 ss; Saliger, 1995. Conforme explicação de Lafer, remetendo-se ao pensamento de Arendt sobre a “criminalidade estatal” corrida durante regimes totalitários do início do século XX: “as pessoas não agem anarquicamente e não cometem crimes ao acaso, por força de acidentes da fortuna: ‘they too act according to a law, but this law has become the opposite of those laws which are behind all legal systems’”. Lafer, 1999, p. 108-109. Nesse sentido, Arendt, 2003, especialmente p. 275-302.
[47] “On mènera toujours les peuples avec ces deux mots, ordre et liberté: mais l’ordre vise au despotisme, et la liberté à l’anarchie. Fatigués du despotisme, les hommes cirent à la liberté: froissés par l’anarchie, ils crient à l’ordre. L’espèce humaine est comme l’Océan, sujète au flux et au reflux: elle se balance entre deux rivages qu’elle cherce et fuit tour à tour, en les couvrant sans cesse de ses débris”. Rivarol, 1808, p. 348.
[48] Processo N. 2012/137854 – São Paulo – Ministério Público do Estado De São Paulo – Parte: Comissão Nacional da Verdade. Decisão: 07.01.2013. http://registrocivil.wordpress.com/2013/01/07/retificacao-de-causa-mortis-vladimir-herzog-verdade-real-a-ser-prestigiada-inclusao-possivel-de-lesoes-e-maus-tratos/
[49] Atienza, 2006, p. 44.
[50] Regla, 2012, p.103.
[51] Dworkin. Taking Rights Seriously, p. 27.
[52] Dworkin. Law’s Empire, p. 206 ss. Citações ambas de Queiroz, 2000, p. 85.
[53] Sobre a prevalência prática de um positivismo jurídico “intuitivo” e “espontâneo”, em que juristas, magistrados, advogados etc., devido à sua formação acadêmica e às suas experiências no cotidiano forense, optam, na sua maioria, por se manter fiéis ao significado dos textos normativos e por não realizar flexibilizações e relativizações dos dispositivos vigentes em vista de princípios, de imperativos éticos ou de considerações consequencialistas sobre a utilidade de certa solução, ver Dimoulis, 2011, p. 215-253.
[54] Ferraz Jr., 2013, p. 57.
[55] Digesto 50. 17. 1. Sobre isso, Vesting, 2007, p. 12.
[56] Neumann, (2005), 2008, p. 76-78.
[57] Kelsen, 2000, p. 46 s.
[58] Sobre as abordagens neutra, crítica e apologética a respeito da definição do direito, cf. Dimoulis, 2003, p. 39-44.
[59] Dimoulis, 2010, p. 118, 119.
[60] Segundo, por exemplo, Kai Ambos (2008, p. 21): “While regime change is not at all a new phenomenon the concept of TJ is recent and innovative in that it recognizes the importance of “justice” in processes of transition; in short, TJ deals with justice in transition.”
[61] Nas palavras de Kai Ambos: “Every transition is different and requires taking into account the specific circumstances of its contexto.” (Ambos, 2008, p. 26. Ambos cita na nota 46 vários outros autores que corroboram com essa afirmação). Segundo Antonio Martins, por exemplo, as limitações impostas pela atenção a princípios de garantia integram o próprio conceito de verdade no direito, isto é, os princípios do Estado de direito têm força constitutiva para a própria fundamentação da verdade. Martins, 2010, p. 83.
[62] Swensson Jr., 2007, p. 77, 78.
[63] Menke, Pollmann, 2007, p. 11.
[64] Comparato, 1999, p. 215.
[65] Conforme artigo XXX da Constitution of the Commonwealth of Massachussets de 1780.
[66] Em outras palavras, significa que as decisões estatais mais importantes, como a interferência na liberdade e na propriedade dos cidadãos, só podem ser tomadas pelo poder legislativo (princípio da reserva legal); que a lei, em sentido estrito, possui primazia em relação às demais fontes formais do direito – salvo, claro, as normas constitucionais produzidas pelo poder constituinte originário e reformador (princípio da primazia da lei); que a Administração Pública deve ser programada e “guiada” pelas leis que compõe o ordenamento jurídico estatal, assim como os poderes legislativo e judiciário do Estado (princípio do império da lei). Cf. Doehring, 2004, p. 172 ss.
[67] Cf. Martins, 2013, p. 210; Habermas, 1999, p. 277 ss.
[68] Como disse Jacques Derrida (2002, p. 35): “El derecho es esencialmente desconstruible, ya sea porque está fundado, construido sobre capas textuales interpretables y transformables (y esto es la historia del derecho, la posible y necesaria transformación, o en ocasiones la mejora del derecho), ya sea porque su último fundamento por definición no está fundado. Que el derecho sea desconstruible no es una desgracia. Podemos incluso ver ahí a oportunidad política de todo progreso histórico. (…). La justicia em sí misma, si algo así existe fuera o más allá del derecho, no es descontruible. Como no lo es la desconstrucción, si algo así existe. La desconstrucción es la justicia.
[69] Wiethölter, 1986, p. 17.
[70] Derrida, 2002, p. 46.
[71] Chauí, 2001, p. 106.
[72] “[…] aquele que propriamente aprendeu um sistema de filosofia, o wolffiano, por exemplo, nada mais possui do que um conhecimento histo?rico completo da filosofia wolffiana, mesmo que tenha presente na mente e possa contar nos dedos todos os princi?pios, explicac?o?es e provas junto com a divisa?o de todo o sistema; ele so? sabe e julga quanto lhe foi dado. Contestai-lhe uma definic?a?o e ja? na?o sabe de onde deve tirar outra. Formou-se segundo uma raza?o alheia, mas a faculdade imitativa na?o e? a faculdade produtiva, ou seja, o conhecimento na?o se lhe originou a partir da raza?o; embora, e? verdade, se trate objetivamente de um conhecimento racional, subjetivamente na?o passa de um conhecimento histo?rico. Compreendeu e guardou bem, isto e?, aprendeu bem, constituindo-se numa co?pia de gesso de um ser humano vivo. Dentre todas as cie?ncias racionais (a priori), portanto, so? e? possi?vel aprender Matema?tica, mas jamais Filosofia (a na?o ser historicamente); no que tange a? raza?o, o ma?ximo que se pode e? aprender a filosofar.” Kant, 1987, p. 236, 237.
[73] Ferraz Jr, 2013, p. 8.

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