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Ações possessórias X grande número de pessoas

AÇÕES POSSESSÓRIAS

CPC 2015

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Andre Vasconcellos Roque
Andre Vasconcellos Roque

10/07/2017

ANDRE ROQUE
JULIANA PROVEDEL CARDOSO

Uma inovação do CPC/2015: art. 554, §§ 1º a 3º

Um assunto que não costuma ser tão comentado no novo CPC diz respeito às inovações que constam nos procedimentos especiais – tema, aliás, que é frequentemente deixado em segundo plano até mesmo nas aulas de Processo Civil no curso de graduação em Direito.[1]

Entre vários pontos em matéria de procedimentos especiais que poderiam aqui ser tratados, focamos nossa atenção nas ações que tutelam a posse, mais precisamente no art. 554, §§ 1º a 3º, que tratam das ações possessórias envolvendo no polo passivo “grande número de pessoas”.[2]

Referidos dispositivos, sem dúvida, focam nos casos de “grandes invasões de terra, normalmente promovidas por movimentos de dinâmica organizada, como o movimento dos sem-terra”[3] ou , ainda, grupos organizados que invadem áreas rurais ou urbanas, pelas mais diversas razões.[4]

De acordo com o § 1º do art. 554, tratando-se de ação possessória “envolvendo grande número de pessoas”, serão feitas: (i) a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local; (ii) a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, (iii) a intimação do Ministério Público e, (iv) se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública. Observe-se que o Código não detalha sobre a natureza da intimação do Ministério Público e da Defensoria Pública, mencionando apenas para esta as situações de hipossuficiência econômica.

A questão que se abre, nesse ponto, é saber se a hipótese versa sobre um caso de litisconsórcio (ainda que multitudinário) ou se seria uma espécie de ação coletiva passiva. Não se trata de indagação puramente acadêmica, pois uma solução ou outra teria consequências práticas, quais sejam:

  • caso todos os ocupantes sejam identificados e citados pessoalmente, ainda assim seria necessária a atuação do Ministério Público?
  • quem será a parte que constará no polo passivo dessas ações? O grupo de ocupantes? Quem irá falar pelo grupo em juízo?
  • seria possível a intervenção no processo dos próprios ocupantes citados por edital?

Vamos, então, buscar responder à questão posta anteriormente, se este seria um caso de litisconsórcio ou de ação coletiva passiva.

Litisconsórcio ou ação coletiva passiva?

Investigar se o art. 554, § 1º do CPC envolve caso de litisconsórcio ou uma ação coletiva passiva não é tarefa das mais simples.

A redação de referido dispositivo parece dizer respeito a um simples litisconsórcio, pois se refere a “ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas” (grifou-se). Se são os próprios ocupantes que figuram como partes no polo passivo, a situação seria de litisconsórcio, e não de uma ação coletiva, a qual se caracterizaria por alguém figurar no processo, em nome próprio, na defesa do interesse de um grupo.[5]

Não por acaso, parte significativa da doutrina tem se inclinado a interpretar a regra como um caso específico de litisconsórcio multitudinário.[6]

O litisconsórcio, isto é, o cúmulo de diversos litigantes em um dos polos da ação, para a defesa de seus direitos subjetivos individuais, contrapõe-se às ações coletivas, que são identificadas pela matéria litigiosa e não pela estrutura subjetiva do processo.[7] Assim, dada a sua natureza coletiva, estas impõem um tratamento molecular[8] do litígio. Por isso, a ação coletiva não se confunde com o litisconsórcio multitudinário.

No entanto, em que pese a literalidade do disposto no art. 554, § 1º, é possível considerá-lo como hipótese de ação possessória coletiva passiva.

Nessa direção, o art. 565, caput, do CPC/2015,[9] faz referência ao “litígio coletivo pela posse de imóvel”, expressão que guarda afinidade muito maior com as ações coletivas. Também aqui, à semelhança do que ocorre no art. 554, o legislador prevê a intimação do Ministério Público para comparecer à audiência de mediação, assim como da Defensoria Pública, sempre que houver parte beneficiária de gratuidade de justiça (art. 565, § 2º).

Há que se admitir que a previsão do art. 565, caput, por si só, não resolveria a discussão. Nessa linha, Erik Navarro Wolkart[10] suscita a possibilidade de divergência sobre o que pode ser considerado como “litígio coletivo pela posse” e considera que o referido art. 565 abrange duas situações: (i) as ações possessórias do art. 554, §1º (as quais, aparentemente, considera como um litisconsórcio multitudinário), e (ii) a tutela coletiva possessória por meio de ação civil pública (por exemplo, ajuizada pela FUNAI para defender a posse de determinada aldeia indígena invadida por garimpeiros).

O autor[11] argumenta, ainda, que “enquanto um dos legitimados do art. 5º da LACP substitui um grupo de pessoas no polo ativo, nas ações multitudinárias temos um grupo ordinariamente legitimado no polo passivo”. Não se concorda, todavia, com esse ponto de vista.

A rigor, o que se tem na hipótese do art. 554, § 1º do CPC é tipicamente o interesse de um grupo – elemento essencial para que se tenha uma ação de natureza coletiva[12]. Quando o § 1º dispõe que no polo passivo figura grande número de pessoas (expressão que poderia, em tese, ser associada a uma forma de litisconsórcio multitudinário, como vem fazendo parcela da doutrina), não significa que todo o grupo será parte formal do processo – sob pena de inviabilizar o acesso à justiça para o autor, que muitas vezes não terá como identificar todos os ocupantes.

Some-se a isso o problema de que esses grupos de ocupantes nem sempre são estáveis: muitos deles podem se retirar da área rural ou urbana ou nela ingressar na pendência do processo, não sendo razoável que seu polo passivo permaneça suscetível a tais vicissitudes.

O que o legislador quis dizer com figurar “no polo passivo grande número de pessoas”, simplesmente, foi que essa coletividade será substituída em juízo por alguns integrantes do próprio grupo (em regra, os líderes do movimento responsável pela ocupação da área rural ou urbana), e não por algum ente intermediário (por exemplo, Ministério Público, associações ou órgãos públicos), como normalmente ocorre nas ações coletivas brasileiras.

Essa legitimidade de alguns integrantes da coletividade no polo passivo não tem nada de estranho e não retira desse processo o caráter coletivo. Se assim não fosse, a ação popular (em que o cidadão é o principal legitimado) não seria considerada uma ação coletiva. O mesmo se diga em relação às conhecidas class actions do direito norte-americano, em que o grupo é ordinariamente representado por um de seus integrantes.[13]

Em síntese, portanto, tem-se aqui uma verdadeira ação coletiva passiva, cujo polo passivo será formado por integrantes do próprio grupo de ocupantes. Esses integrantes atuarão no processo como porta-vozes do grupo, sem prejuízo da atuação do Ministério Público e, eventualmente, da Defensoria Pública.

Conclusões

A partir da premissa de que o art. 554, § 1º consiste em uma espécie de ação coletiva passiva, podemos chegar a algumas conclusões.

O Ministério Público atuará neste processo como fiscal da ordem jurídica, pois se trata de litígio coletivo pela posse da terra (art. 176, III), independentemente de terem sido ou não identificados pessoalmente todos os ocupantes (providência relevante apenas para determinar se haverá ou não a citação por edital dos ocupantes não identificados, não comprometendo, porém, o caráter coletivo do litígio).[14]

Reforça tal conclusão a redação do art. 554, § 1º, o qual determina a simples “intimação” do Ministério Público (e não a sua citação). O Parquetnão atuará no processo, portanto, como parte, nem como representante do grupo, mas apenas como fiscal da ordem jurídica.

Como partes da ação coletiva de natureza possessória, constarão os integrantes do grupo de ocupantes (normalmente, seus líderes), os quais atuarão em juízo em nome próprio e no interesse de todos os demais ocupantes. Tratando-se de ação coletiva passiva, justifica-se a providência prevista no § 3º do art. 554 (conferir ampla publicidade ao processo e aos respectivos prazos processuais), podendo ainda o juiz promover o controle da representatividade adequada – providência essencial para resguardar o devido processo legal coletivo[15] quando o grupo está substituído em juízo por seus integrantes.

Admite-se, ainda, de maneira a proteger os interesses de todos os integrantes do grupo de ocupantes – e parece ser essa a razão pela qual o CPC  estabelece a citação pessoal do número máximo possível de seus membros (art. 554, § 2º) e a publicidade qualificada do processo (art. 554, § 3º) – a intervenção do legitimado ordinário (ou seja, dos ocupantes que não figuram em juízo como porta-vozes do grupo), autorizada pelo art. 554, § 1º, CPC e controlada pelo juiz para evitar prejuízos à razoável duração do processo coletivo.

Por hoje, ficamos por aqui. Esperamos desenvolver essas primeiras reflexões sobre o art. 554, § 1º do CPC/2015 em outra oportunidade – trata-se de assunto rico de discussões de variadas espécies, as quais não podem ser esgotadas neste espaço. Até a próxima!


[1] Para se ter uma ideia, em diversas faculdades de Direito (como na UFRJ, em que um dos autores desse texto é professor), o tema dos procedimentos especiais é tratado em uma matéria eletiva, não compondo a grade obrigatória de Direito Processual Civil. Em tese, portanto, é possível que um aluno se forme em Direito sem nunca ter estudado os procedimentos especiais.

[2] Art. 554, §§ 1º a 3º do CPC/2015: “§ 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública. § 2º Para fim da citação pessoal prevista no § 1º, o oficial de justiça procurará os ocupantes no local por uma vez, citando-se por edital os que não forem encontrados. § 3º O juiz deverá determinar que se dê ampla publicidade da existência da ação prevista no § 1º e dos respectivos prazos processuais, podendo, para tanto, valer-se de anúncios em jornal ou rádio locais, da publicação de cartazes na região do conflito e de outros meios”.

[3] WOLKART, Erik Navarro. Comentários aos arts. 554 a 568. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 895.

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. Salvador: Juspodivm: 2017, p. 1009. Caso emblemático, que retrata a espécie de conflito em discussão, foi a desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), uma área de terreno de 1,3 milhão de metros quadrados ocupada por cerca de 1600 famílias.

[5] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro, Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 30

[6] Nesse sentido, um dos autores desta coluna assim já escreveu, em comentários ao art. 554 do CPC: “O litisconsórcio passivo multitudinário nas ações possessórias recebeu atenção especial do Código, especificamente no tocante à citação e representação dos demandados. Comum no cotidiano nacional invasões possessórias por grupos, por vezes organizados (movimentos de sem-terra ou sem-teto) e com objetos específicos (reforma agrária, urbanística etc.), mas cujos indivíduos são de difícil determinação” (OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte. Comentários ao art. 554 in GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença – Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016, p. 923).

[7] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. v.4. p. 31.

[8] WATANABE, Kazuo. Comentários aos arts. 81 a 90. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 742.

[9] Art. 56, caput, do CPC: “No litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 (trinta) dias, que observará o disposto nos §§ 2º e 4º”.

[10] WOLKART, Erik Navarro. Comentários aos arts. 554 a 568. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 903.

[11] WOLKART, Erik Navarro. Comentários aos arts. 554 a 568. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 903.

[12] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, v. 4. p. 31.

[13] ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions – Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Salvador: Juspodivm,, 2013, p. 88 e ss.

[14] Contra, porém, indicando que, se identificados todos os réus, seriam aplicáveis as regras do litisconsórcio, FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários aos arts. 554 a 568. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.605.

[15] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, v. 4. p. 104.


VEJA AQUI OUTROS TEXTOS DA SÉRIE CPC 2015

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