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O “diálogo competitivo” como modalidade licitatória e seus impactos

Thiago Marrara

Thiago Marrara

25/07/2017

Das inúmeras modalidades licitatórias previstas na Diretiva Europeia 2014/24 para aquisição estatal de obras, serviços e bens, merece redobrada atenção o “diálogo concorrencial” — nome constante da versão oficial portuguesa da normativa, mas que, no Brasil, transformou-se em “diálogo competitivo” por conta de uma tradução direta (e desnecessária) do inglês. A despeito da expressão preferida pelos brasileiros, é preciso retomar o instituto por três motivos fulcrais: seu interessante, mas perigoso caráter dialógico e negocial, seus impactos transformadores sobre o modelo tradicional de contratação pública por adesão e sua influência sobre o novo modelo de licitações que se delineia no Congresso Nacional. Por conseguinte, nas linhas que seguem, passa-se a examinar o diálogo concorrencial no intuito de desvendar suas justificativas, seu regime jurídico e seus estímulos à releitura das funções da licitação no mundo hodierno.

A doutrina europeia insere o diálogo concorrencial na categoria dos procedimentos com elementos de negociação (cf. Martin Burgi, Vergaberecht, 2016), que aqui chamarei de modalidades dialógicas. Dentro dessa categoria, o direito comunitário insere duas espécies: 1) o “procedimento concorrencial com negociação” (artigo 29) e 2) o “diálogo concorrencial” (artigo 30). Ambos foram valorizados pelo legislador europeu com o objetivo, expressamente consignado na Diretiva, de conferir mais flexibilidade aos órgãos públicos na escolha da estratégia dialógica de licitação. Por trás desta opção legislativa, figura inicialmente a constatação de que procedimentos marcados pelo diálogo lograram mais sucesso na promoção do comércio transfronteiriço, ou seja, mostraram-se mais aptos a promover a competição efetiva entre agentes econômicos dos mais diversos países membros da União.

Mas a razão para a valorização de uma cultura dialógica não se exaure na proteção do fluxo de bens e serviços dentro da zona de integração. Referidos procedimentos negociais destinam-se igualmente a superar as deficiências e os limites das licitações tradicionais à satisfação de uma demanda estatal. Essas deficiências ou falhas são comuns no modelo de contratação pública por adesão e ocorrem quer porque os órgãos contratantes não logram definir com exatidão a maneira pela qual pretendem satisfazer suas necessidades, quer porque não conseguem avaliar as soluções que o mercado coloca à sua disposição. Com isso, muitas vezes são elaborados contratos que não produzem os efeitos esperados, não atendem as necessidades do Estado ou mal conseguem ser executados na prática.

Problemas como os narrados se vislumbram especialmente em contratos com objetos inovadores ou extremamente complexos, como infraestrutura de transporte, redes de informática, edifícios não normalizados ou sob concepções inovadoras, assim como em relação a projetos que exijam financiamentos intricados. Não raramente, eles também aparecem na aquisição de produtos sofisticados, serviços intelectuais, como consultoria em arquitetura ou engenharia, e grandes projetos de tecnologia de informação ou comunicação. Para todos esses casos, o direito comunitário europeu considera os procedimentos dialógicos mais apropriados. Eles não foram forjados, porém, para situações em que o mercado já fornece serviços ou produtos capazes de bem suprir as demandas da Administração Pública. Para isso, a Administração dispõe das modalidades licitatórias tradicionais.

Em coerência com as justificativas apontadas, o artigo 26 da Diretiva 2014/24 impõe aos Estados-membros da União Europeia que autorizem a utilização das modalidades dialógicas (ou seja, do “procedimento concorrencial com negociação” e do “diálogo concorrencial”) quando:

a) O órgão contratante necessitar adaptar soluções de mercado para atender a suas demandas; os produtos ou serviços exigirem uma elaboração ou solução inovadora; a negociação prévia se mostrar essencial em razão de circunstâncias especiais, como a natureza do contrato, sua complexidade, sua modelagem jurídica ou financeira ou devido a riscos associados a ela; as especificações técnicas não puderem ser definidas com precisão mediante referência a normas, homologações, especificações técnicas; ou

b) Em um concurso aberto ou limitado, quando só tiverem sido apresentadas propostas irregulares ou inaceitáveis. Nesta situação específica, a publicação de novo ato convocatório será prescindível, contanto que se convidem ao diálogo todos os proponentes, e exclusivamente os proponentes, que satisfizerem os critérios de habilitação e que, na licitação fracassada, tenham apresentado proposta formalmente aceitáveis. Para além dessa hipótese, a modalidade dialógica, aqui utilizada como procedimento supletivo, poderá ser empregada desde que precedida de ato convocatório.

Apesar da identidade das hipóteses de utilização, as duas modalidades de licitações dialógicas previstas na Diretiva Europeia 2014/24 diferem em termos procedimentais.

No diálogo concorrencial, qualquer agente econômico poderá apresentar, no prazo mínimo de 30 dias da publicação do ato convocatório, um pedido de participação, contendo as informações necessárias à seleção qualitativa a se realizar pelo órgão contratante. Para tanto, no referido ato convocatório, as autoridades divulgarão suas necessidades e os seus requisitos, bem como os critérios de julgamento escolhidos e o cronograma procedimental.

Aberto o procedimento e apresentadas as propostas dos candidatos interessados, a Administração Pública avaliará as informações e convidará os agentes econômicos a participarem do certame. Ao fazê-lo, poderá discricionariamente optar por restringir o número de candidatos. Em todo caso, não deverá reduzir a competição a menos de três agentes econômicos ou a um número que, não obstante superior a três, seja insuficiente para garantir a concorrência real.

Com os candidatos selecionados, inicia-se a fase de diálogo propriamente dita. Sua finalidade maior consiste em identificar e definir os meios que mais bem atenderão às necessidades do contratante. Por conseguinte, ao longo do diálogo, todos os aspectos do objeto contratado serão passíveis de debate (o objeto em si, a modelagem jurídica, financeira etc.), mas caberá às autoridades garantir a igualdade de tratamento a todos os participantes, sobretudo mediante a divulgação equânime de informações estratégicas  isto é, informações que, se fossem oferecidas de forma discriminatória, confeririam vantagem a certos licitantes em detrimento de outros. Também para se proteger a isonomia e a competitividade, proíbem-se a revelação de soluções propostas por um licitante a outro e a transferência de informações confidenciais de um dos candidatos a outros sem seu consentimento específico.

O diálogo propriamente dito se desenvolverá em fase única ou em fases sucessivas. Nesta última hipótese, devidamente indicada na abertura da licitação, o número de participantes será gradualmente reduzido ao longo de subfases em consonância com critérios pré-estabelecidos no ato convocatório. Em virtude dessa variante procedimental, a Diretiva diferencia as figuras do “candidato” (aquele que se interessa pelo certame e é convidado a participar) e do “proponente”, que efetivamente é chamado a apresentar propostas conforme a solução indicada pela Administração. Embora todo proponente seja um candidato, o inverso não é verdadeiro.

Com ou sem fases sucessivas, o diálogo prossegue até que o Poder Público identifique a solução ou as soluções suscetíveis de atender a suas demandas. Nesse momento, declarar-se-á encerrado o diálogo e as autoridades solicitarão aos candidatos restantes que apresentem as propostas finais com base em uma ou mais soluções especificadas ao longo do procedimento. São estas propostas que se submeterão a julgamento sempre à luz do critério da proposta economicamente mais vantajosa, tendo em vista a melhor relação de qualidade/preço (conforme o artigo 67 da Diretiva).

Diversamente do que o ocorre no “procedimento concorrencial com negociação”, no diálogo concorrencial não se permitirão diálogos depois de entregue definitivamente a proposta. Nesta modalidade, a interação entre o contratante e os licitantes se concentra antes da entrega das propostas. Após o julgamento, a Diretiva autoriza ao órgão contratante “negociar” com o vencedor unicamente com o escopo de “confirmar os compromissos financeiros ou outros termos” constantes da proposta para finalizar o contrato, sempre em respeito aos aspectos materiais essenciais previstos no edital. Encerrado o julgamento, passa-se finalmente à habilitação (ou melhor, à aplicação dos critérios de seleção e de exclusão) e à celebração do contrato, que poderá tanto prever o pagamento pelo objeto licitado por meio de recursos financeiros ou de prêmios.

A partir dessa sumária descrição das normas europeias, compreende-se que o diálogo concorrencial é marcado: 1) pela intensa comunicação da Administração contratante com os licitantes ao longo da fase de elaboração das soluções contratuais; 2) pela ausência de um contrato pré-definido no ato convocatório; 3) pela alta flexibilidade procedimental, sobretudo em termos de redução de licitantes, escolha de soluções etc.; 4) pela obrigatoriedade de sigilo em relação a informações confidenciais e de divulgação isonômica de informações estratégicas; 5) pela obrigatoriedade de um julgamento com base no critério de qualidade/preço a partir da solução considerada adequada pela Administração e 6) pela faculdade de remunerar o contratado com prêmio ou valores pecuniários.

Dessas características se extrai que a grande vantagem do diálogo concorrencial reside na possibilidade de se abrir a licitação ao mercado antes mesmo da definição da minuta contratual, fugindo-se da tradição de contratação por adesão que marca o direito administrativo. Embora eficiente em alguns casos, a presunção de que o Estado seja capaz de elaborar as minutas de modo unilateral e isolado antes da fase externa da licitação, na prática, muitas vezes dá vida a contratos deficientes ou que não guardam qualquer aderência ao que o mercado oferece. Em piores cenários, a lógica da adesão, resultante do isolamento dos órgãos contratantes e da impermeabilidade da fase interna, origina minutas defeituosas, irreais, demasiadamente obscuras ou completamente inviáveis, fazendo fracassar a licitação.

Mais que romper com o dogma da contratação por adesão, o diálogo concorrencial afasta por definitivo a presunção de que o Estado é infalível, capaz de avaliar os incontáveis segmentos de mercado em todos os contextos, capaz de elaborar isoladamente as soluções de que necessita dentro dos mais diferentes e complexos ramos de atividade em que atua e, muitas vezes, sem os recursos humanos necessários para tanto. A modalidade em questão, em última instância, atribui à licitação muito mais que uma mera função de seleção do agente econômico que será contratado. Nela, a licitação assume uma função de aprendizado, de desenvolvimento e de inovação. Pelo diálogo, a licitação passa a gerar conhecimento, novos produtos e serviços em benefício do Estado, da efetividade de suas tarefas e do atendimento das necessidades coletivas. Todavia, a produção dos efeitos esperados  é indubitável  dependerá de agentes públicos devidamente preparados e pessoalmente engajados para atuar com respeito incondicional às normas de boa-fé, de isonomia e promoção da competição real, justa e ampla. Ausentes essas condições, o diálogo concorrencial correrá o risco de se transformar facilmente em um nicho de corrupção e de benefícios indevidos.


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