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Repensando o Direito Civil Brasileiro (23): Notas sobre a história do conceito de posse no Direito Civil Brasileiro (parte 2)

A POSSE NO DIREITO BRASILEIRO

CÓDIGO DE 1916

CURSO DIDÁTICO DE DIREITO CIVIL

DIREITO DAS COISAS

EVIDÊNCIA DO DOMÍNIO

EXCEÇÃO DE DOMÍNIO

EXCEPTIO DOMINI

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Felipe Quintella

Felipe Quintella

18/08/2017

O texto de hoje decorre de um trabalho apresentado no I Encontro de Pesquisaem Direito realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2011, e foi publicado originalmente na obra Temas em História do Direito brasileiro.[1] Considerando o limite de conteúdo que adotei para esta coluna, dividi o trabalho original em duas partes, a serem publicadas agora em agosto. Segue, agora, a segunda parte.

Caso ainda não tenha lido a Parte 1, acesse-a aqui antes de ler o texto de hoje.

4 QUARTA NOTA: SOBRE O PROJETO DE CÓDIGO CIVIL DE CLÓVIS BEVILÁQUA E O CÓDIGO DE 1916

A generalização revelada no art. 818 da Consolidação talvez não tivesse tanta importância na história do conceito de posse do Direito brasileiro, não fosse pelo fato de ter inspirado Clóvis Beviláqua na elaboração de seu projeto de Código, que veio a se tornar o primeiro Código Civil brasileiro.

Eis a redação do preceito já no texto aprovado em 1916 (art. 505): “não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse, em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio”.

Nos comentários ao referido dispositivo, Clóvis Beviláqua argumenta que a segunda parte do preceito, justamente a que admite a exceptio domini, teria reproduzido o Assento de 16 de fevereiro de 1786, o qual “consagra um princípio modificativo da regra geral”.[2] Admite, todavia: “princípio que era, diversamente, entendido pelos nossos juristas”.[3] E ainda adverte: “cumpre atender ao pensamento do Código, a fim de se não reproduzirem os dissídios de outrora”.[4]

Ou seja, Beviláqua confessa ter o Código consagrado entendimento que, anteriormente, não era pacífico, e que era, até mesmo – ao que tudo indica – minoritário.

Prosseguindo em seus comentários, admite ter adotado a orientação de Teixeira de Freitas no referido art. 582 do Esboço.

A Câmara, por sua vez, aceitara o posicionamento, tendo, porém, o Senado o rejeitado, sob o argumento de que, tendo o Código adotado a teoria de Jhering, a exceção de domínio era descabida.[5]

Sobretudo após a defesa de Juvenal Lamartine, o Congresso teria resgatado a norma, por prevalecer o entendimento de Lamartine no sentido de que, “se, no pensamento de Jhering, é o interesse da propriedade que justifica a defesa da posse, em vez de contrária à doutrina do grande romanista, é um corolário dela a exceção em favor do domínio”.[6]

A peleja nem assim se resolveu, segundo nos dá notícia, ainda, o próprio Beviláqua. Projetou-se para após a promulgação da Lei 3.071/16. Astolpho Rezende condenou não apenas a doutrina do preceito, mas também a observância das formalidades constitucionais. Conforme anota Beviláqua, foi Justiniano de Serpa – presidente da comissão responsável pela elaboração do Código Civil no Congresso – quem respondeu à crítica, pontuando que não apenas a exceptio domini se harmonizava com a doutrina do Código, mas também ressaltando “a incompetência do judiciário para declarar se o Congresso seguiu ou não a ordem normal na formação das leis, quando se ocupou da espécie”.[7]

O autor do projeto primitivo do Código de 1916 finaliza os comentários ao art. 505, então, explicando como poderia a exceção de domínio ser utilmente invocada: quando (1) “a posse disputada se apresentar como exterioridade do domínio do possuidor”; quando (2) “evidentemente, o domínio não pertencer ao contendor”.[8] Essa última hipótese se referiria ao caso de duas pessoas pretenderem a posse a título de proprietário.[9]

5 QUINTA NOTA: SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO EXCEÇÃO DE DOMÍNIO AO LONGO DO SÉCULO XX

Dali em diante, a exceção de domínio tornou-se uma verdadeira pedra no calcanhar da doutrina no século XX.

Convém a referência a obras representativas de algumas fases da doutrina do século XX, posterior ao Código Civil.

Clóvis Beviláqua, em seu Direito das Coisas, publicado meio século após sua primeira obra de Direito Civil, pontua que a norma da segunda parte do art. 505 aplica-se aos casos de posse a título de proprietário, porquanto, “se ambos os contendores reclamam a posse como emanação de sua propriedade, nada mais racional e justo do que não julgar a posse em favor daquele a quem, evidentemente, não pertencer o domínio”.[10] Expende, ademais, que “somente quando, nessa emergência, é evidente que uma das partes não é proprietária, é que o juiz julgará a posse em favor da outra”.[11]

Segundo explica, Astolpho Rezende, o vigoroso opositor da orientação do Código, teria apoiado essa interpretação do dispositivo em sua obra A posse e a sua proteção[12], de 1937.[13]

Da mesma fase, também Tito Fulgêncio aceita a exceção de domínio. Explica que, tal como autorizada pela segunda parte do art. 505, a exceção não se considera uma exceção à regra geral da primeira parte, senão uma particularização. O mesmo ocorreria no Direito alemão.[14] Segundo argumenta, “não se trata por nada neste mundo de uma permissão de opor uma exceção petitória a uma ação possessória”[15]. E prossegue:

Na alínea o que se decretou foi uma aplicação do princípio de que ao autor na posse incumbe o ônus da prova de ser titular da posse turbada, espoliada ou ameaçada, e uma vez que o domínio está evidentemente firmado, o ato considerado molestante é ato de proprietário autorizado por lei, e não se pode julgar a posse, base de toda a ação possessória, em favor do A.[16]

A próxima geração de civilistas é a que teve como maiores expoentes Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes, entre outros.

Caio Mário, após explicar porque não é cabível a exceção de domínio nas ações possessórias, como esse entendimento se considera conforme à teoria de Jhering, e como se consagrou a norma na primeira parte do art. 505, comenta, porém, sobre a segunda parte do dispositivo:

O mesmo inciso, entretanto, que vem do direito pré-codificado, talvez pelo receio de sustentar a posse em qualquer circunstância, acrescenta que se não deve julgar a posse a favor daquele a quem evidentemente não pertencer a propriedade. Esta disposição, cujo pressuposto é a evidência do domínio, não encontrou na justiça a medida adequada, causando ao revés a quebra do sistema legal da posse. Na justiça a questão tem sido colocada em termos de que a exceptio domini somente tem cabida quando a posse é disputada a título de domínio, inclusive pelo STF.[17]

Orlando Gomes segue a mesma linha. Taxa o entendimento preceituado na segunda parte do art. 505 de “manifestamente incorreto”[18] e afirma que, ainda que a orientação fosse consequência da teoria objetiva da posse, seria “absurda”[19]. Conclui, pois, que “a exceptio domini deve ser repelida, como uma excrescência no terreno da proteção possessória”.[20]

A súmula nº 487 do Supremo Tribunal Federal, publicada em 1969, pretendeu resolver a controvérsia reavivada, determinando que “será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”.

Muito embora escrevendo obra de Direito Processual Civil, Humberto Theodoro Júnior chegou a abordar a questão em seu Curso de Direito Processual Civil. Para os fins desta nota, a análise de posicionamentos doutrinários se encerra aqui, com as observações do processualista.

Travou-se, de logo, enorme controvérsia na doutrina, a propósito desse inconveniente adendo. Astolfo Rezende, por exemplo, advertia, com toda razão, contra o erro cometido pelo legislador e reclamava corrigenda pronta do texto legal. (…)

Foi, por sua vez, Azevedo Marques que, interpretativamente, corrigiu a equivocada norma legal, dando-lhe um sentido restritivo que pudesse harmonizar-se com o sistema geral da tutela possessória. Assim, partindo da observação de que o conteúdo da 2ª parte do artigo 505 era inútil, observa que sua significação real só podia ser a seguinte: “a manutenção ou reintegração da posse não pode ser negada, na ação possessória, ao verdadeiro possuidor pelo simples fato de alguém alegar e provar ter domínio sobre a coisa legitimamente possuída por aquele. Entretanto, se, na ação possessória, os litigantes disputarem a posse fundados somente no domínio que cada um se arroga, não deverá o juiz conceder a posse àquele que evidentemente não for o proprietário da coisa”.[21]

Em seguida, Humberto Theodoro se propõe a resolver “um equívoco histórico”, segundo suas palavras. Voltando ao segundo quesito decidido pela Casa da Suplicação no Assento de 16 de fevereiro de 1786, conclui que: “a doutrina, porém, foi que ampliou desmesuradamente a última frase sublinhada do Assento, e passou a admiti-la como aplicável a qualquer interdito possessório, mesmo fora da disputa hereditária”.[22]

CONCLUSÃO

Será que a segunda parte do art. 505 do Código de 1916 revelava a consagração de uma falha hermenêutica, ou, será que, talvez, representava o desenvolvimento de um conceito peculiar de posse no Brasil, com características peculiares com relação aos conceitos propostos pelas teorias de Savigny e de Jhering?

Se, por um lado, não há, preliminarmente, elementos que permitam identificar com clareza quais os elementos integrantes de um conceito vivo de posse no Direito brasileiro, para se concluir sobre a anacronia ou não da exceptio domini, também não há, por outro lado, a priori, elementos que apontem para o sentido contrário.

A única conclusão possível, pois, é no sentido de que há necessidade de que se realize um estudo científico acerca da história do conceito de posse no Direito Civil brasileiro, por meio da metodologia da história dos conceitos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. Vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958.

_______. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941.

FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. 3. ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876.

FREIRE, José Pascoal de Melo. Instituições de Direito Civil português. Liv. II. T. I. Trad. de Miguel Pinto de Menezes. Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, 1967.

FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias. São Paulo: Saraiva, 1922.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. IV. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. III. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.


[1] ROBERTO, Giordano Bruno Soares et al. (Coord.) Temas em história do direito brasileiro. Belo Horizonte: Initia Via, 2012.
[2] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. Vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958. P. 26.
[3]Id. Ibid. P. 26.
[4]Id. Ibid.
[5]Id. Ibid. P. 26-27.
[6]Id. Ibid. P. 27.
[7]Id. Ibid. P. 27.
[8]Id. Ibid. P. 27.
[9]Id. Ibid. P. 27.
[10] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941. P. 82.
[11]Id. Ibid. P. 82.
[12] Infelizmente, não tivemos acesso a essa obra quando da elaboração destas notas, mas sua aquisição já foi providenciada, para pesquisas futuras.
[13] BEVILÁQUA. Direito das Coisas. Cit. P. 82.
[14] FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias. São Paulo: Saraiva, 1922. P. 114-116.
[15]Id. Ibid. P. 117.
[16]Id. Ibid. P. 117.
[17] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. IV. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. P. 55.
[18] GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 1958. P. 113.
[19]Id. Ibid. P. 114.
[20]Id. Ibid. P. 114.
[21] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. III. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. P. 141-142.
[22]Id. Ibid. P. 143.

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