GENJURÍDICO
A Beleza, O Humano e O Fascismo

32

Ínicio

>

Artigos

>

Filosofia do Direito

ARTIGOS

FILOSOFIA DO DIREITO

A Beleza, o Humano e o Fascismo: Considerações precisas a partir do “Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde

BELEZA

BELO

CONDIÇÃO HUMANA

DIREITO

FASCISMO

POLÍTICA

José Manuel de Sacadura Rocha

José Manuel de Sacadura Rocha

19/09/2017

“Não! Nada mais havia. Por vaidade a tinha respeitado. Por hipocrisia, havia afivelado a máscara da bondade. Por curiosidade, tinha permitido a si mesmo aquela renúncia. Reconhecia-o agora. Mataria o passado e tornar-se-ia livre. Mataria aquela monstruosa alma visível e, sem suas hediondas advertências, recuperaria o sossego. Apanhou a faca e enterrou-a no retrato. Ouviu-se então um grito e o ruído de um corpo que caía. Ao entrar, encontraram pendurado na parede um esplêndido retrato de seu patrão, que o representava como estavam acostumados a vê-lo, em toda a pujança de sua rara juventude e beleza. Estendido no solo, encontrava-se um homem morto, em traje de cerimônia, com uma faca cravada no coração. Era velho, cheio de rugas e seu rosto inspirava repugnância. Só o reconheceram quando examinaram os anéis que usava.”[i]

A barbárie: não começa com a política e o direito! – Seria mais sábio que a política e o direito aprendessem algo com as Artes; – A história nos ensina que na multiplicidade de circunstâncias os eventos raramente têm apenas uma causa, ainda que seja a complexidade que nos embota o olhar; – Tenho pensado muito que, possivelmente de forma sistemática, a “civilização” ocidental se de um lado incentiva a cultura, por outro a usa como instrumento de domesticação das mentes e dos sentidos, e as manifestações artísticas contemporâneas servem muito para nos “desviar” o olhar do que realmente interessa, do que efetivamente é importante, pois a Arte não é “isenta”, “neutra” nem tampouco “livre”, completamente “subjetiva”, ao contrário, ela sempre se interessa pelos seus espectadores e pela alienação das massas, de uma forma ou de outra, cujo campo próprio não está imune às ideologias e aos interesses dominantes de seu tempo; – Se a Arte moderna é filha da complexidade – técnica, científica, mas igualmente da criação cognitiva em mais alto grau de abstração – mais essa complexidade tende a velar a ideologização possível dos que detêm o poder [o capital!]; – Não gostaria de ser mal entendido: a Arte tem esse direito, ela deve ser iconoclasta e “filosofar às marteladas” (Nietzsche, 1888)[1]; mas estou convencido que, ao mesmo tempo, ela deve prescindir cada vez mais de “mecenas” e “intérpretes” para fazer seu papel crítico da realidade política caótica e da condição humana paradoxal, quer dizer, proporcionar ao espectador [às massas] o desvelamento dos poderes – pelo olhar deste!;

O peso: da consciência humana não é a consciência de si mesmo, mas o que esta provoca: o “medo”!; como sabemos, a finitude [a consciência da morte] é a mãe de todos os medos (Shopenhauer, 1818)[2]; – Daí que a condição humana dada por sua consciência é a irrecusável tendência a maximizar o desejo, o querer, a satisfação [prazer], o “ter sobre o ser” (Fromm, 1976)[3], porque sobre nós cai todo o peso do tempo limitado entre algum ponto após o nascer e o momento derradeiro – inexorável, tanto quanto inapreensível – do fim; – Mesmo para os que acreditam que esse fim é relativo, que ele de fato não existe e que a imortalidade se dá em outros planos e de outras formas, ainda assim, creio eu, foi a diabólica consciência pelo menos desta limitação e seu mistério que levou às grandes religiões: a possibilidade de seus discursos de vida eterna só pode chegar ás massas pelo medo – não só a perda das coisas desta vida, mas a morte e o mistério pós-morte-vida, normalmente punitivo [dialogia com a salvação ou bem aventurança da alma], portanto as religiões, também a filosofia, de forma geral têm por mesmo fundamento a consciência da finitude humana e da continuidade da vida, “mais para continuar tendo do que para ser” – no caso da melhor filosofia “mais para ser do que continuar tendo”; – Na contemporaneidade é indubitável que a par das tecnociências e farmacotecnologias, que prolongam a vida do corpo, a depressão e a histeria só tendem a aumentar porque apesar deste alongamento do tempo de vida a vida não está melhor; mas fundamentalmente, porque a bipolaridade entre esse tempo maior e a consciência que ele é afinal limitado leva à esquizofrenia do tipo temporal-existencial: quanto mais se prolonga a vida por meios artificiais mais o medo da perda [coisas, vida] e a angústia da morte se intensificam (as sociedades, inclusive as mais aparelhadas, já estão vivenciando essa realidade conforme indicam os dados sobre saúde mental, suicídio e violações à vida [própria e alheia])[4]; – “Só” por aqui pode-se entender melhor o que leva de forma consciente pessoas aparentemente “normais” e até “comuns” a comportamentos tão perniciosos, sem qualquer pudor e constrangimento [corrupção, prevaricação, falso testemunho, violação, crime] que nos fazem incrédulos de sua própria sanidade (Preciado, 2008)[5];

A condição humana: “política” (“zoon politikón” – Aristóteles) e “econômica” (“homo economicus” – Marx) é, fundamentalmente, orientada para retardar a morte; porém ela é tal que antes do fim está o envelhecimento, antes da morte o definhamento; – Acho que é este o entendimento maior de Dorian Gray: se a finitude pudesse ao menos ser imediata!, (bem-aventurados os que morrem antes; que o fim seja imediato!); – Mas também raramente aceitamos, enquanto vivos-conscientes dessa finitude irreversível, a morte – isto parece paradoxal: somos seres da “recusa” da doença e do sofrimento, não suportamos o fim, mas fundamentalmente nem o tempo intermediário antes dele [deterioração do corpo, definhamento mental]; não suportamos sequer a fatalidade (amor fati: Nietzsche, 1881-1882)[6]– não podemos, não há lugar nem tempo para isso, “Time is Money!”;

O Belo: na obra de Oscar Wilde (1891) relaciona-se com as forças portentosas [arquitetura] do Universo que condenaram os humanos a perderem a beleza, o vigo: enrugados, claudicantes, desmemoriados, sem forças, doentes, perdas parciais, lentamente, perdas totais, na melhor das hipóteses concertados através de próteses; a Força é tão medonha que todo esse definhamento antes do derradeiro é inelutável, e nos leva muito a desejar a brevidade de todos esses tormentos; – Diante dessa realidade, duas opções, pensa Dorian Gray: a morte fulminante [uma arma, um cálice de veneno, um duelo provocado], ou o encontro com o outro lado do medonho – o outro lado que se equipara em energia, recursos e determinação, capaz de manter a juventude sem definhamento e morte, é o demoníaco, uma força equivalente à Arquitetura do Universo; – E afinal, bem vistas as coisas, tanto o Bem como o Mal nos cobram o mesmoquantum– simplesmente a vida!: Dorian Gray pensa assim: “Que diferença é realmente diferente? Diferença não é apenas uma questão de tempo? E se eu não quero certo tempo, ou o quiser de outra forma? No final dá no mesmo! Negocie o que negociar, seja quem for o comprador, tudo se reduz a alguns míseros anos! E o que é isso para a eternidade, se é que ela existe?! O que tenho para te oferecer, Oh Boy? O tempo! Antes que o tirem eu a ti ofereço!”; – Dorian Gray morreu naquele instante, não quando olha anos mais tarde, sem envelhecer ou adoecer, e após ter assassinado o pintor, o retrato que reflete sua verdadeira condição decrépita ao extremo; mas ainda ali, ele foi soberano quanto a suas escolhas!; – Talvez contra a tirania demoníaca apenas isso nos reste: negociar e pôr fim à negociação…;

O fascismo: como “projeto de vida eterna pela política” anda de mãos dadas com o ressurgimento do belo, da beleza, e, consequentemente, com a supressão de tudo que represente ou possa a vir a representar a decadência, a decrepitude, a doença, a indigência e a desarmonia [reforço da ordem pelo belo na obra de arte][7]– o projeto filosófico-político do fascismo reforça-se em um projeto estético primoroso (Peter Cohen, 1989)[8], Arte só vista antes no Ocidente na arte greco-romana; – O convencimento das massas desesperadas, angustiadas, envergonhadas, sem autoestima são terreno fértil para uma redenção: nestas circunstâncias a política é uma religião para elas, dá-lhes uma sobrevida, mesmo que a destruição seja evidente e iminente (Arendt, 1951)[9]; – É bem possível que no começo acreditem em algum poder constituído e nas instituições que vigem, que acreditem na preservação e funcionalidade das leis e dos protocolos morais, nas forças de mercado, na Justiça, no Estado; ou, pior, caiam no “culto da personalidade”, idolatrem este ou aquele governante e alguns que aparecem como justiceiros: alguns “heróis” surgem das brumas da obscuridade e das instituições superadas, e estes serão vistos, precisamente, como parte do projeto político-estético necessário, ainda que fascista e mentiroso – e então, mesmos estes serão (a)traídos pelos circuitos demoníacos da “restauração” e dos sistemas de destruição que são a fuga para todos os medos e desamparos – contudo, logo todos perceberão aturdidos que o demônio do outro lado do retrato já os possuiu – tarde demais!, agora só resta sobreviver sem olhar para trás!;

Afinal: queimar tudo antes do fracasso da soberba e da loucura, destruir tudo que manche o belo (como o sangue que escorre no retrato de Dorian Gray), tudo que seja velho, feio, mal formado, mal acabado, o que não guarda as “proporções áureas” – os miseráveis, os doentes, os gays, os de raças impuras, os derrotados; limpar, limpar para surgir a “vida” e derrotar a morte – a vida nessas condições (a)parece tão vergonhosa quanto a morte e o envelhecimento são indesejáveis: por isso é tão fácil passar da situação de fracasso e desesperança para a mesma lógica estética fascista da destruição e aniquilamento em massa; – Os fascismos foram contemporâneos, essa é a cara da modernidade, é a aceitação da barbárie porque se acredita passageira e necessária para a construção da pureza e da beleza além, da mesma forma que se aceita a acumulação desmedida, o fetiche das coisas, o conluio com o poder e o Estado; – “Mefistófeles” sabe que a vida breve precisa deixar uma obra de arte monumental, os homens acreditam se perpetuar nas obras, melhor nas grandes obras, acreditam nisto quanto menos têm, menos a perder mais a ganhar, e assim as massas acreditam poder contornar a sua condição de sofrimento e morte; creem rumar para fora da miséria, da indigência da dor, creem fugir da brevidade da vida que envelhece e morre, e vão com relativa facilidade da santidade às câmaras de gás,  do holocausto à vida eterna; – Procuram a permanência e a juventude na redenção do Apocalipse: descontrole, histeria, esquizofrenia;


[1] Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos – Ou Como Filosofar Com o Martelo. 3. ed. In Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1983.
[2] Arthur Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
[3] Erich Fromm, Ter ou Ser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
[4] “Estima-se que um milhão de pessoas morram desta forma anualmente (suicídio), uma a cada 40 segundos, o que equivale a 1,4% dos óbitos totais” (172 países, segundo a OMS). Veja-se em: .
[5] “Nessas condições, o dinheiro se torna uma substância psicotrópica significante, abstrata.” Paul B. Preciado, Testo yonqui. Madri: Espasa, 2008, p. 37.
[6] Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência. Livro IV, § 276: “Amor fati: seja esse de agora em diante o meu amor”.
[7] Nosso cérebro (uma “pequena” traição?) comporta-se de forma seletiva e voltado, então, para a restruturação, pondo ordem aos caos seletivo que ele mesmo provocou. Veja-se Ernst Hans Gombrich: “O Sentido da Ordem – Um estudo Sobre a Psicologia da Arte Decorativa”. São Paulo: Editora Bookman, 2012.
[8]Arquitetura da Destruição, Documentário, Dir. Peter Cohen, 1989.
[9] “Em épocas de crescente miséria e desamparo individual, é tão difícil resistir à piedade, quando ela se transforma em paixão, como deixar de condenar a sua própria universalidade, que parece matar a dignidade humana, mais definitivamente do que a própria miséria”. Hannah Arendt, O Sistema Totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978, p. 420.

[i] Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 267-268.

Veja também:

Conheça as obras do autor (Clique aqui!)

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA