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Da impossibilidade de usar a autocomposição no Direito Penal e Processo Penal Militares

DISCIPLINA

HIERARQUIA

MEDIAÇÃO

NEGOCIAÇÃO

PRÁTICAS AUTOCOMPOSITIVAS

Adriano Alves-Marreiros

Adriano Alves-Marreiros

13/11/2017

Introdução: sobre Hierarquia e Disciplina como garantias individuais e para a sociedade e peculiaridades dos militares

Ao tratar desse assunto, é preciso, primeiro, falar da importância da Hierarquia e Disciplina nas Forças Armadas. Mais que bases constitucionais: são GARANTIAS para o indivíduo e para a Sociedade.  Vejamos o que mencionamos em artigo anterior, escrito quando pretendiam afastar a parte geral do CPM, submetendo os crimes militares a ela. Começamos citando renomado autor Otávio Vejar Vasquez como epígrafe e prosseguimos com nossas considerações[1]:

(…)

Sobre a índole do CPM

“El Derecho Penal Común se elabora con la concurrencia de dos elementos: el filosófico y el histórico, tendiendo a aproximarse al ideal de justicia concebido en cada época y, en cambio, el Derecho Militar se sustrae a esas corrientes porque su objeto se limita a la defensa eficaz de la colectividad mediante la conservación de la disciplina dentro del ejército, por lo que ha llegado a decirse que la ley castrense es una ley de salud pública que descansa sobre la necesidad social. Es decir, que la ley común es cambiante porque tiene la fisonomía que le imprime la escuela filosófica en cuyos principios se orienta y la militar tiene un perfil constante porque encuentra su base en el principio de la defensa del Estado contra enemigos interiores y exteriores, que requiere el mantenimiento estricto de la disciplina en el ejército”[2]

Hierarquia e Disciplina são as bases constitucionais das Forças Armadas. Constam explicitamente do texto desde a segunda Constituição brasileira e implicitamente da Constituição Imperial. Mais que preceitos, possuem natureza de garantias individuais e garantias para a Sociedade, vez que a hipótese de milícias armadas sem estarem submetidas à hierarquia, à disciplina e ao poder civil é combatida desde as declarações de direitos do século XVIII, a exemplo da Declaração do Bom Povo de Virgínia:

Artigo 15° – Uma milícia disciplinada, tirada da massa do povo e habituada à guerra, é a defesa própria, natural e segura de um Estado livre; os exércitos permanentes em tempo de paz devem ser evitados como perigosos para a liberdade; em todo o caso, o militar deve ser mantido em uma subordinação rigorosa à autoridade civil e sempre governado por ela. (grifei)

E mais recentemente, o Pacto de San Jose da Costa Rica, vigente no Brasil:

Artigo 16 – Liberdade de associação

1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.

2. O exercício desse direito só pode estar sujeito às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

3. O presente artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia. (grifei)

São reconhecimentos explícitos de que o militar federal ou estadual têm peculiaridades que exigem certa diferenciação no tratamento, em especial quanto à análise dos crimes militares. Basta imaginarmos ou lembrarmos as conseqüências da quebra da disciplina, da hierarquia e da insubmissão ao poder civil, ocorridas a mais ou menos tempo.

A hierarquia, a disciplina e a observação das peculiaridades militares é que garantem a paz social e a segurança do indivíduo e da Sociedade em relação às forças que podem utilizar a violência em nome do Estado. São tais conceitos que garantem que há limites estritos para tal utilização.

Também mostrando a importância da Hierarquia e da Disciplina para a Sociedade e a paz social, já comentamos que:

Os militares sa?o submetidos a? hierarquia e a? disciplina em decorre?ncia da Democracia e, tambe?m por outras causas, sofrem certas restric?o?es nos seus direitos e garantias individuais e na sua cidadania. Ja? vimos gente, supostamente em nome da liberdade, querer se opor a tais restric?o?es. Datada do se?culo XVIII, a Declarac?a?o de Direitos do Bom Povo de Virgi?nia demonstra claramente isso, ao dispor:

“Artigo 15.o Uma mili?cia disciplinada, tirada da massa do povo e habituada a? guerra, e? a defesa pro?pria, natural e segura de um Estado livre; os exe?rcitos permanentes em tempo de paz devem ser evitados como perigosos para a liberdade; em todo o caso, o militar deve ser mantido em uma subordinac?a?o rigorosa a? autoridade civil e sempre governado por ela”.

A Declarac?a?o de Independe?ncia dos EUA tambe?m nos mostra a raza?o, ao dizer que o enta?o rei da Gra?-Bretanha:

Tentou tornar o militar independente do poder civil e a ele superior.

E? em nome da Liberdade, da Democracia, que ha? restric?o?es aos direitos e garantias sociais e individuais em geral dos militares. A mili?cia armada sem controle e? perigosa, pode causar grandes danos. Os militares sa?o admira?veis, inclusive porque abdicam de parcela de sua liberdade para garantir a nossa, a da sociedade. A Liberdade de todos depende dessas restric?o?es e da Hierarquia e da disciplina. Alia?s, e? necessa?rio dizer: sociedade na?o e? uma entidade ete?rea, nem uma pessoa juri?dica, nem nada parecido. Sociedade e? um conjunto de individualidades, de indivi?duos e cada um deles deve ter sua dignidade de pessoa humana preservada. Quando se faz um confronto entre a dignidade da pessoa humana de um criminoso e a necessidade da sociedade, na?o e? um confronto entre Estado e indivi?duo: e? um confronto entre indivi?duo e indivi?duo, um criminoso e uma vi?tima ou candidato a vi?tima, vulnera?vel, amedrontado.[3]

E não se diga que tais conclusões seriam mera suposição acadêmica.  Aqui mesmo em Salvador, antes do carnaval de 2012, ficamos presos em nossas casas, temerosos do que poderia acontecer, enquanto militares grevistas fechavam a Avenida Paralela, de armas na mão, além de deixarem de combater o crime…

Sobre aplicabilidade de medidas despenalizadoras no âmbito dos crimes militares e a falta de liberdade do militar para a justiça consensual:

Já sobre medidas despenalizadores, como  essas agora estimuladas pelo CNMP, com sua razão de ser no Direito comum, pudemos observar, comentando a Lei 9.099 e sua aplicação ou não aos crimes militares, que:

Em todo caso, e? interessante destacar texto que explica sobre a inaplicabilidade da Lei 9.099/1995 a? Justic?a Militar,

“A ratio legislativa que levou a criac?a?o da Lei 9.839/1999, visava proteger os princi?pios da hierarquia e disciplina que poderiam ser maculados pela medida despenalizadora, de forma que a transac?a?o penal poderia colocar em risco a disciplina militar e, na hipo?tese de representac?a?o (lesa?o corporal dolosa e lesa?o corporal culposa), na?o se ajustava a hierarquia militar, podendo levar a impunidade, visto que se um militar fosse vi?tima de um desses delitos jamais representaria contra o ofensor. Desse modo, o objetivo da Lei 9.839 foi excluir do a?mbito da justic?a militar os institutos caracteri?sticos da chamada justic?a criminal consensuada. (grifamos)[4]  (…)

Daí, podemos notar que o uma concordância do autor citado com o principal ponto que pretendemos provar: o militar não tem liberdade para uma justiça consensuada. O inferior se sentirá em perigo, ou ferindo a hierarquia ao ter que negociar ou representar contra um superior.  Mas também o superior entenderá que não deve agir penalmente contra o inferior temendo perder até parcela de sua liderança por fazer isso. Prosseguindo com o trecho:

Cuidando bem de razo?es que justificam a inaplicabilidade, na?o se pode olvidar artigo do promotor de Justic?a de Goia?s, Jose? Eduardo do Nascimento.

(…) Vejamos a questa?o da representac?a?o, ainda no mesmo artigo.

“Embora a integridade fi?sica na?o seja bem juri?dico disponi?vel, o legislador da Lei 9.099/1995 entendeu criar nova forma despenalizadora, ao ditar que a persecuc?a?o criminal referente aos delitos de lesa?o corporal leve e culposa exigira? representac?a?o como condic?a?o de procedibilidade, condic?a?o superve- niente da ac?a?o ou de prosseguibilidade para os processos em curso. Entretanto, assim na?o ocorre na Justic?a Militar. Quando um policial militar, no exerci?cio de suas func?o?es, comete um crime de lesa?o corporal, ao lado da vi?tima, en- quanto sujeito passivo da violac?a?o, surge o interesse do Estado e da sociedade, no correto e regular desempenho do poder de poli?cia por seus agentes, que nesta qualidade atuem. E este interesse pu?blico, tendo como titulares o Estado e a sociedade, na?o pode ficar sujeito a? discricionariedade do ofendido em oferecer representac?a?o.

Neste sentido, e? a sistema?tica da legislac?a?o penal militar, que em seu art. 121 determina:

Art. 121. A ac?a?o penal somente pode ser promovida por denu?ncia do Ministe?rio Pu?blico da Justic?a Militar

E diz o art. 29 do CPPM:

Art. 29. A ac?a?o penal e? pu?blica e somente pode ser promovida por denu?ncia do Ministe?rio Pu?blico Militar.

As u?nicas hipo?teses de requisic?a?o referem-se aos arts. 136 a 141, sendo do Ministe?rio Militar ou do Ministe?rio da Justic?a, conforme a hipo?tese, em cri- mes contra a seguranc?a externa do pai?s que, por sua especificidade, exigem manifestac?a?o dos referidos o?rga?os quanto a? convenie?ncia da ac?a?o penal, que, em qualquer caso, sera? pu?blica.

Ademais, o direito penal militar desconhece os institutos do perda?o do ofendido, perempc?a?o e decade?ncia, inerentes a? ac?a?o penal privada e pu?blica condicionada, esta na hipo?tese da representac?a?o. (grifamos)[5]

Vejamos que aqui fica claro que o legislador entendeu, e manteve, apesar da CF de 1988 e das alterações em 1996 e 2011 feitas no CPM, esse entendimento de que o crime militar envolve sempre o interesse público e impondo que toda e qualquer ação deve ser pública, sem estar submetida a discricionariedade de ofendido.  Mesmo as ações condicionadas, o são mediante manifestação de relevantes agentes e não de particular individualmente considerado. A inexistência do perdão do ofendido, da perempção e da decadencia são estranhos ao CPM, o que só reforça a completa indisponibilidade que aqui defendemos.

E não é só o CPM que impõe essa indisponibilidade. Também o faz o Código eleitoral, como mostramos na obra citada:

Da mesma forma, encontraremos formida?vel exemplo da indisponibilidade do interesse pu?blico na persecuc?a?o criminal no Co?digo Eleitoral. Diz o art. 355:

Art. 355. As infrac?o?es penais definidas neste Co?digo sa?o de ac?a?o pu?blica.

Esta norma aplica-se a tipos penais definidos como crimes eleitorais, como os crimes contra a honra – calu?nia, inju?ria e difamac?a?o, (arts. 324, 325 e 326 do Co?digo Eleitoral), quando praticados em propaganda eleitoral ou visando a fins de propaganda. E isto se explica pelo fato de que, quando algue?m calunia, injuria ou difama outrem, em virtude de propaganda eleitoral, na?o e? apenas a vi?tima ferida em sua moral externa ou interna o sujeito passivo da violac?a?o. O pro?prio Estado e? violado em seu interesse em que as eleic?o?es se procedam em clima de normalidade, e na?o de turbule?ncia. Por isso, a ac?a?o e? pu?blica incondicionada nestes casos, eis que [sic], na?o pode a vi?tima lesada em sua moral interna ou externa dispor do interesse estatal na regularidade das eleic?o?es. [6]

Vez que começamos a falar da ação penal militar, importante é citar, também belo trecho do Promotor de Justiça Militar Guilherme Rocha sobre o assunto:

Considerando a redac?a?o dos arts. 122 do CPM, 31 do CPPM, e 95, para?grafo u?nico, da Lei 8.457/1992 – LOJMU (Lei de Organizac?a?o Judicia?ria Militar da Unia?o), sa?o de ac?a?o penal militar pu?blica incondicionada, tanto as perpetradas em tempo de paz quanto as realiza?veis em tempo de guerra, qualquer que seja o agente (militar ou civil), independentemente da natureza do crime (crime pro?pria ou impropriamente militar; doloso, culposo ou preterdoloso; formal, material ou de mera conduta; comissivo ou omissivo) e inde- pendentemente da natureza ou do quantum da pena cominada. [7]

Ele bem cita e analisa a ação penal privada subsidiária da pública, mas nem precisamos falar sobre ela vez que ela visa, justamente, a evitar que a omissão leve à impunidade, inclusive pela violação dessa indisponibilidade.

Também é importante lembrar que o legislador optou por não estabelecer penas pecuniárias ( e optou por vedar a transação penal da Lei 9.099 na Justiça Militar). Vejamos o que comenta o Procurador de Justiça Militar Dr. Ricardo Freitas sobre a inexistência de penas pecuniárias e restritivas de direito no Direito millitar brasileiro:

Por outro lado, o Co?digo Penal Militar tambe?m na?o preve? a existe?ncia de penas restritivas de direito e pecunia?rias, a exemplo da multa, diferenciando-se, assim, neste particular aspecto, o direito penal militar do direito penal comum. Reafirmando tal orientac?a?o poli?tico-criminal, o Superior Tribunal Militar reconheceu a “inexiste?ncia de previsa?o de penas restritivas de direito e de multas na legislac?a?o penal militar”.55 Em julgado posterior, o mesmo tribunal voltou a denegar pedido de condenado militar no sentido da conversa?o de pena privativa de liberdade em restritiva de direito com apoio no seguinte argumento: “Esta Corte tem entendimento firme no sentido de na?o aceitar a aplicac?a?o da Lei 9.714/1998, que dispo?e sobre penas restritivas de direitos, na?o so? em raza?o da especialidade e autonomia do direito penal militar, mas, tambe?m, por sua incompatibilidade com as peculiaridades atinentes a? vida militar e ao militar”. Especificamente no que diz respeito ao crime de deserc?a?o, o Superior Tribunal Militar tambe?m se manifestou pela impossibilidade de substituic?a?o da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.57 Em outra oportunidade, a mesma Corte decidiu ser “inaplica?vel a imposic?a?o da obrigac?a?o de prestar servic?os em favor da comunidade ante a ause?ncia dessa regra na legislac?a?o substantiva castrense”.58 Por fim, de maneira semelhante, decidiu o Supremo Tribunal Federal em aco?rda?o que merece transcric?a?o integral de sua ementa por sua exemplaridade:

“Ementa. Habeas corpus. Crime militar. Substituic?a?o de pena privativa de liberdade por restritiva de direito. Impossibilidade na espe?cie. Habeas corpus denegado. 1. E? firme a jurisprude?ncia deste Supremo Tribunal Federal no sentido de na?o se admitir a aplicac?a?o da Lei 9.714/1998 para as condenac?o?es por crimes militares, sendo esta de aplicac?a?o exclusiva ao direito penal comum. Precedentes. 2. A conversa?o da pena privativa de liberdade aplicada pela Justic?a Militar por duas restritivas de direitos podera? ocorrer, pelo menos em tese, desde que o paciente tenha de cumprir pena em estabelecimento prisional comum e a pena imposta na?o seja superior a dois anos, nos termos previstos no art. 180 da LEP, por forc?a do que dispo?e o art.2.o, para?grafo u?nico, daquele mesmo diploma legal. 3. Na espe?cie, contudo, a pena fixada ao paciente foi de dois anos, nove meses e dezoito dias de reclusa?o. Na?o ha?, portanto, como ser reconhecido a ele o direito de substituic?a?o da pena privativa de liberdade por restritiva de direito. 4. Habeas corpus denegado.”[8]

Isso reforça tanto a indisponibilidade absoluta da persecução penal militar, a necessidade da ação penal ser sempre pública e, quando condicionada, apenas a agentes politicos em casos muitos específicos e que há grandes problemas para penas retritivas de direitos e até pecuniárias pelas peculiaridades militares. Acrescento que o espírito de corpo do militar, mais até que qualquer relação entre  superior e inferior hierárquicos impede qualquer liberdade de negociar, até mesmo entre iguais, diante do próprio custo social que representa.

Sobre a necessidade de se coibir, cada vez mais, a cultura de tentar resolver internamente certos crimes militares

Sabemos que existem certas tendências corporativistas de evitar levar ao MP e à Justiça certos crimes militares. Isso só reforça o que dissemos sobre o constrangimento do próprio superior em agir penalmente contra um subordinado e sobre a pressão social que até o superior sente, supondo ameçada parcela de sua liderança.  Mais que isso, por vezes vemos até juízes auditores reforçando a cultura, hoje mais próxima da extincão,  de resolver internamente.  Vejamos o que diz o Dr. Ricardo Freitas, ao tratar de transgressão e crime:

No entanto, se a criminalizac?a?o for necessa?ria de acordo com o princi?pio da intervenc?a?o mi?nima, na?o pode o Poder Judicia?rio considerar arbitrariamente a conduta delituosa como mera infrac?a?o disciplinar, subtraindo, assim, a sua dignidade penal por razo?es de convenie?ncia e oportunidade. Tipificada uma conduta atentato?ria a? hierarquia e a? disciplina, ou seja, ajustando-se a conduta do agente a um determinado modelo de fato puni?vel, apenas argumentos deduzidos do pro?prio direito penal militar podem legitimar a decisa?o judicial que o considera na?o um crime militar, mas simples transgressa?o disciplinar.  (grifamos)[9]

Em reforço a isso, temos o próprio fato, já citado, de que todos os crimes militares são de ação pública, bem como o s fundamentos que levaram ao art. 90A da lei 9.099.

Também sobre crime e transgressão, nos manifestamos sobre o assunto:

Apesar de tudo, muitos insistem em tratar como transgresso?es ou contravenc?o?es disciplinares casos tipificados como crime, ou por tambe?m estarem previstos como transgressa?o, ou porque julgam que, pelo famigerado bom senso, assim devem fazer, ainda que ao arrepio da lei. O curioso e? que, ainda que se recorra ao Estatuto e regu- lamentos militares, o fato de ser crime prevalece. Vejamos. Do Estatuto dos Militares, Lei 6.880/1980 e que teve reviso?es recentes, consta:

 “Art. 42. A violac?a?o das obrigac?o?es ou dos deveres militares constituira? crime, contravenc?a?o ou transgressa?o disciplinar, conforme dispuser a legislac?a?o ou regulamentac?a?o especi?ficas.

1.o A violac?a?o dos preceitos da e?tica militar sera? ta?o mais grave quanto mais elevado for o grau hiera?rquico de quem a cometer.

2.o No concurso de crime militar e de contravenc?a?o ou transgressa?o discipli- nar, quando forem da mesma natureza, sera? aplicada somente a pena relativa ao crime”. (Grifei).

Conforme a lei, ratione legis, e regulamentac?a?o, que na?o pode ser contra legem. E na?o e?, como veremos infra. Ainda do Estatuto:

“Art. 46. O Co?digo Penal Militar relaciona e classifica os crimes militares, em tempo de paz e em tempo de guerra, e dispo?e sobre a aplicac?a?o aos militares das penas correspondentes aos crimes por eles cometidos”.

Consagra o CPM para definir crimes militares.

Ja? nos regulamentos militares, temos os arts. 6.o do RDM, 14 do RDE e 8.o do RDAer, dispondo, todos os tre?s no mesmo sentido:

RDE – “Art. 14. Transgressa?o disciplinar e? toda ac?a?o praticada pelo militar contra?ria aos preceitos estatui?dos no ordenamento juri?dico pa?trio ofensiva a? e?tica, aos deveres e a?s obrigac?o?es militares, mesmo na sua manifestac?a?o ele- mentar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”.

Este conceito ontolo?gico poderia causar certa confusa?o, e causa, mas o § 1.o a resolve.

“§ 1.o Quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenc?a?o penal, na?o se caracterizara? transgressa?o disciplinar”.

Logo, de forma bem feliz, fica clara a prevale?ncia da hipo?tese de crime, embora em termos de direito administrativo em geral na?o houvesse o?bice para tratar como crime e transgressa?o em esferas independentes. Alia?s, apesar desta excec?a?o, o para?grafo seguinte dispo?e:

“§ 2.o As responsabilidades nas esferas ci?vel, criminal e administrativa sa?o in- dependentes entre si e podem ser apuradas concomitantemente”.

O dispositivo na?o vale para a dupla natureza de crime e transgressa?o, versando sobre outros aspectos administrativos, o que se confirma no § 4.o:

“§ 4.o No concurso de crime e transgressa?o disciplinar, quando forem da mesma natureza, esta e ?absorvida por aquele e aplica-se somente a pena relativa ao crime”.

No mesmo sentido, mas de forma mais sucinta, ha? previsa?o semelhante nos regulamentos disciplinares da Marinha e da Aerona?utica:

RDM – “Art. 6.o Contravenc?a?o Disciplinar e? toda ac?a?o ou omissa?o contra?ria a?s obrigac?o?es ou aos deveres militares estatui?dos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposic?o?es em vigor que fundamentam a Organizac?a?o Militar, desde que na?o incidindo no que e? capitulado pelo Co?digo Penal Militar como crime”.

RDAer – “Art. 8.o Transgressa?o disciplinar e? toda ac?a?o ou omissa?o contra?ria ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que e? ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislac?a?o penal militar.

Art. 9.o No concurso de crime militar e transgressa?o disciplinar, ambos de ide?ntica natureza, sera? aplicada somente a penalidade relativa ao crime.

Para?grafo u?nico. A transgressa?o disciplinar sera? apreciada para efeito de punic?a?o, quando da absolvic?a?o ou da rejeic?a?o da denu?ncia da Justic?a”.

Na?o ha?, portanto, que se prosseguir com o equi?voco, ale?m do que, a definic?a?o ontolo?gica, geral, na?o poderia prevalecer sobre a especi?fica, o mesmo se dando em relac?a?o a?s corporac?o?es militares estaduais. [10]

Os próprios regulamentos militares (recepcionados pela CF como lei, na parte referente à tipificação de trangressões, ao menos) e o Estatuto dos Militares (Lei e que sofreu revisões em 2003, sem mudanças neste aspecto) vedam que se trate crime como transgressão.  Inviável qualquer argumento nesse sentido.

Enfim,  de todos esses aspectos, reiteramos: a hierarquia e a disciplina, garantias individuais e da Sociedade,  têm o decorrente: menor liberdade do militar para tudo, um sacrifício a que ele é constitucionalemnte submetido para que a Democracia seja mantida: e isso com base na CF e em tratados assinados pelo Brasil, inclusive o Pacto de San Jose da Costa Rica, considerado supralegal pelo STF, que dispõe, expressamente:

Artigo 16. Liberdade de associac?a?o

1. Todas as pessoas te?m o direito de associar-se livremente com fins ideolo?gicos, religiosos, poli?ticos, econo?micos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.

2. O exerci?cio desse direito so? pode estar sujeito a?s restric?o?es previstas em lei e que se fac?am necessa?rias, em uma sociedade democra?tica, ao interesse da se- guranc?a nacional, da seguranc?a e da ordem pu?blicas, ou para proteger a sau?de ou a moral pu?blicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

3. O presente artigo na?o impede a imposic?a?o de restric?o?es legais, e mesmo a privac?a?o do exerci?cio do direito de associac?a?o, aos membros das forc?as armadas e da poli?cia”. (Grifamos).

Sobre as razões do CNMP para a resolução sobre autocomposição: análise dos considerandos.

A autocomposição tem por fundamentos, elencados nos seus considerandos, resumidamente os numerados adinate. Comentaremos cada um deles:

1) o acesso a? Justic?a com?o direito e garantia fundamental da sociedade e do indivi?duo abrangendo acesso ao Judicia?rio, mas, também,  o direito de acesso a outros mecanismos e meios autocompositivos de resoluc?a?o dos conflitos e controve?rsias

O acesso à Justiça Militar é plenamente livre, o MP consegue atender quem representa, mas é importante ressaltar o que já foi dito supra: não há liberdade plena para negociação e autocomposição em grupos fechados e dominados por espírito de corpo como o dos militares.  Lideranças e condições de superior, inferior ou igual impedem tal liberdade.

2) uma tendência mundial à adoc?a?o de mecanismos de autocomposic?a?o paci?fica dos conflitos, controve?rsias e problemas e? uma tende?ncia mundial e necessidade disso ser incentivado e aperfeiçoado no MP.

Desconhecemos a existência de tal tendência nas forças militares de outros países, mas, ao menso na cultura militar brasileira, a ilberdade para tal é inviável e isso pode gerar sérios danos ao militar que se sentir constrangido, senão coagido a agir de tal forma em relação a colega, inferior ou superior.

3) a necessidade de resolver conflitos de forma Celere, justa, efetiva e implementável

A Justiça Militar é Celere, os processo são individualmente tratados e isso gera efetividade.

4) que a negociac?a?o, a mediac?a?o, a conciliac?a?o, as convenc?o?es processuais e as pra?ticas restaurativas sa?o instrumentos efetivos de pacificac?a?o social, resoluc?a?o e prevenc?a?o de liti?gios, controve?rsias e problemas e que a sua apropriada utilizac?a?o em programas ja? implementados no Ministe?rio Pu?blico te?m reduzido a excessiva judicializac?a?o e te?m levado os envolvidos a? satisfac?a?o, a? pacificac?a?o, a na?o reincide?ncia e ao empoderamento; bem como a reparação por dano e a colaboração premiada.

Os litigios não são alarmantes entre militares federais, ou isso repercutiria em caos na própria Sociedade. Não há excessive judicialização, na verdade, podemos crer que ainda há condutas que deveriam chegar à Jusiça Militar e nem sempre chegam; não se vislumbra alta reincidência por parte de militares, a reparação estaria sujeita ao tabu moral de resolução financeira violando o pundonor militar e o próprio espírito de corpo.  A colaboração premiada, por outro lado, é o único mecanismo citado que poderia ser adotado na Justiça militar, até porque há, mesmo, tipos penais militares que estimulam a colaboração, por meio de reforço negativo, como se diz em psicologia: o crime de Omissão de Lealdade Militar, por exemplo.

Conclusão: só em questões coletivas e difusas, jamais entre sujeito ativo e passivo de crime.

Assim sendo, chegamos à conclusão que, das práticas autocompositivas  mencionadas na resolução do CNMP, apenas seriam aplicáveis ao MPM a negociação e a mediação:

1) A negociação prevista no art. 8o e seu Parágrafo único, vez que seriam negociações de direitos coletivos e difusos, mas sempre ad cautelam visando a evitar politização de e ideologização de questões militares. E entre grupos e a Administração Militar (que não violarem preceitos militares como, v.g. sindicatos de millitares ou associações de caráter sindical) nunca simplesmente entre dois indivíduos.

2) A mediação prevista no artigo 9o, com as mesmas restrições que comentamos sobre a mediação;

Para tais fins, evidentemente será essencial o treinamento e aperfeiçoamentos dos membros nessas areas de atuação coletiva e difusa e nas duas práticas citadas.


[1]ALVES-MARREIROS, Adriano. Hierarquia e disciplina como garantias individuais e para a sociedade: fundamento para afastar a extinção da parte geral do Código Penal Militar. Uma análise das diferenças mais relevantes e essenciais. Publicado originalmente em Jus Navigandi e, recentemente em https://blog.grupogen.com.br/juridico/2015/05/18/a-extincao-da-parte-geral-do-codigo-penal-militar/. Acesso em 12 de junho de 2015.
[2]VASQUEZ, Octavio Vejar. “Autonomia del Derecho Militar”, apud in www.cesdim.org.br.
[3] ALVES-MARREIROS, Adriano. FREITAS, Ricardo. ROCHA, Guilherme. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. 1a Edição, Editora Método. São Paulo, 2015 .p.p. 1000-1001.
[4] Obra citada. p. 71.
[5] Obra citada. p.p. 72-73.
[6] ALVES-MARREIROS, Adriano. FREITAS, Ricardo. ROCHA, Guilherme. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. 1a Edição, Editora Método. São Paulo, 2015. p. 73.
[7] Obra citada. p. 776.
[8] ALVES-MARREIROS, Adriano. FREITAS, Ricardo. ROCHA, Guilherme. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. 1a Edição, Editora Método. São Paulo, 2015. p. 847.
[9] ALVES-MARREIROS, Adriano. FREITAS, Ricardo. ROCHA, Guilherme. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. 1a Edição, Editora Método. São Paulo, 2015. p.39.
[10] ALVES-MARREIROS, Adriano. FREITAS, Ricardo. ROCHA, Guilherme. Direito Penal Militar. Teoria Crítica & Prática. 1a Edição, Editora Método. São Paulo, 2015. p.p. 65-67.

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