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Negócio jurídico processual em contrato de consumo

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Negócio jurídico processual em contrato de consumo

CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

CONSUMO

CONTRATO

CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM

NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL

SÚMULA 335 DO STF

Flávio Tartuce
Flávio Tartuce

03/01/2018

Debate Carta Forense. Matéria de capa de janeiro de 2018. Negócio jurídico processual em contratos de consumo.

Impossibilidade

Por Flávio Tartuce

Festejado por muitos e criticado por outros, o negócio jurídico processual é uma das principais novidades do Código de Processo Civil de 2015, previsto nos seus arts. 190 e 191, sem prejuízo de outros comandos. Trata-se de instituto que vem sendo abordado há tempos por processualistas de destaque como Fredie Didier Júnior, Antonio do Passo Cabral, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira e Fernando Gajardoni.

Cuida-se de projeção da teoria geral dos atos e negócios jurídicos para o âmbito do processo civil brasileiro, estando presente, na expressão alemã, um contrato processual (Prozessvertrage) ou um Processo Civil convencionado (Konventionalprozess). Como bem define Pedro Henrique Nogueira, em sua dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da UFBA, o negócio jurídico processual “é o fato jurídico voluntário em cujo suporte fático, descrito em norma processual, esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou de estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais. Estando ligado ao poder de autorregramento da vontade, o negócio jurídico processual esbarra em limitações preestabelecidas pelo ordenamento jurídico, como sucede em todo negócio jurídico” (Negócios Jurídicos Processuais.Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/10743/1/Pedro%20Henrique.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2017).

Na verdade, a categoria não é uma total novidade no sistema processual, pois já existiam negócios jurídicos processuais típicos tratados anteriormente pela lei. A título de exemplo, podem ser citadas a convenção de arbitragem e a cláusula de eleição de foro, a última tratada desde a remota Súmula 335 do STF, do ano de 1963.

Neste breve artigo, analisaremos o debate a respeito de se convencionar negócios jurídicos processuais em contratos de consumo. O cerne da discussão jurídica gira em torno do conteúdo do art. 190 do Novo CPC, segundo o qual, versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento, com o fito de ajustá-lo às especificidades da causa. As partes ainda podem convencionar sobre os seus ônus probatórios, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Ademais, conforme o parágrafo único do mesmo dispositivo, de ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções processuais celebradas entre as partes, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade absoluta ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

No último preceito é que parece haver sério entrave técnico para que seja estabelecido o negócio jurídico processual em contratos de consumo. Como é notório, o CDC é expresso ao vedar um dos negócios jurídicos processuais típicos, qual seja a cláusula compromissória de arbitragem, quando esta for compulsória (art. 51, inc. VII, da Lei n. 8.078/1990). Não obstante algumas quebras doutrinárias e jurisprudenciais, a verdade é que a arbitragem ainda não mergulhou de verdade no âmbito dos contratos de consumo.

A afirmação também vale para os demais negócios jurídicos processuais, pelo fato de ter o legislador processual utilizado o termo vulnerabilidade ao final do parágrafo único do art. 190 do Estatuto Processual emergente. Como se sabe, há forte corrente doutrinária que defende existir uma presunção absoluta ou iure et de iure de vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, conclusão retirada da dicção do art. 4º, inc. I, do Código de Defesa do Consumidor. Segundo essa mesma visão, essa vulnerabilidade é inafastável, o que justificou a elaboração da norma consumerista, diante do mandamento constitucional constante do art. 48 das Disposições Finais e Transitórias da CF/1988. Essa também é a posição que sigo, sendo certo que a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo, ou seja, todo consumidor é vulnerável, sem exceção. Em outras palavras, trata-se de um conceito jurídico que não aceita declinação ou objeção, sendo fixado previamente, sem qualquer análise casuística.

Por outra via, a hipossuficiência é uma disparidade fática a que está submetido o destinatário final da relação jurídica de consumo, podendo ser ela econômica, política, social ou até técnico-informacional, pelo desconhecimento específico que se tem em relação ao produto ou serviço que está sendo adquirido. Todo consumidor é vulnerável, mas nem sempre será hipossuficiente. Sendo o consumidor vulnerável – expressão que chega a ser pleonástica –, justifica-se a aplicação do CDC. Se, além de ser vulnerável, for hipossuficiente, o consumidor terá a seu favor um plus, qual seja a possibilidade de pleitear a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, inc. VIII, da Lei n. 8.078/1990.

Em conclusão, penso que o legislador processual pecou ao utilizar o termo vulnerabilidade na limitação dos negócios jurídicos processuais. Se tivesse utilizado a expressão hipossuficiência, teria aberto a possibilidade jurídica de se instituírem negócios jurídicos processuais em contratos de consumo.

Com o devido respeito à posição em contrário, concluo que, pela vulnerabilidade reconhecida nas relações de consumo, sempre haverá invalidade do negócio jurídico processual inserido em contrato de consumo, pelo fato de estar a previsão em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, nos termos do art. 51, inc. XV, do CDC. O caso, sem dúvidas, é de nulidade absoluta, como está previsto no art. 190, parágrafo único, do CPC, pois estamos diante de hipótese de cláusula ou previsão abusiva, que não é admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Como palavras finais, não desconheço que os processualistas têm uma visão diferente a respeito da vulnerabilidade, analisada casuisticamente, como fazem os consumeristas em relação à hipossuficiência. O tema, a propósito, foi desenvolvido por minha irmã, Fernanda Tartuce, em sua tese de doutorado defendida na USP, com que debato o tema há tempos (Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2012). Porém, o legislador parece ter ignorado as visões multifacetadas da ideia de vulnerabilidade e, infelizmente, fechou as portas para os negócios processuais em contratos de consumo.

Possibilidade

Por Fernando da Fonseca Gajardoni

A vontade das partes é, no CPC/2015, fonte da norma processual.  O art. 190 permite que elas possam convencionar sobre procedimento, bem como sobre seus poderes, deveres, faculdades e ônus processuais. Exemplificativamente, reconhece-se às partes o poder de, antes ou no curso do processo judicial, ampliar ou reduzir prazos, renunciar antecipadamente à interposição de recursos, fixar hipóteses de impenhorabilidade além das previstas em lei, e até mesmo autorizar a penhora sobre vencimentos (no limite de 30%).

Já tive a oportunidade de discorrer sobre o tema e afirmar a existência de 06 (seis) requisitos de validade/eficácia dos negócios jurídicos processuais atípicos. Só serão aceitas convenções processuais nas hipóteses em que: 1) as partes sejam as titulares da situação jurídica a respeito do qual pretendam dispor, sendo vedada convenção processual que atinja deveres, direitos, ônus e faculdades de terceiros; 2) o objeto da convenção seja lícito, de modo a não se admitir negócios jurídicos processuais que acabem por violar o conteúdo mínimo do processo constitucional (regras constitucionais de competência, o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, a motivação, a licitude da prova, etc.); 3) a celebração da convenção seja feita por escrito (especialmente no negócios jurídicos pré-processuais), pois só assim é possível se operacionalizar judicialmente, com o mínimo de segurança e presteza, a alteração da regra legal por convenção das partes; 4) haja preservação da autonomia da vontade do contratantes, devendo o juiz deixar de aplicar a convenção processual nos casos de nulidade (erro, dolo, coação, etc.), inserção abusiva em contrato de adesão ou vulnerabilidade manifesta de um dos celebrantes; 5) as partes sejam civilmente capazes, vedada a celebração de convenção por incapazes, ainda que representados ou assistidos; e 6) o direito objeto da convenção processual seja autocomponível, isto é, esteja na esfera de disponibilidade das partes (GAJARDONI, DELLORE, ROQUE e OLIVEIRA JR, Teoria Geral do Processo: comentários ao CPC/2015. 2ª ed. São Paulo. Método, 2018, p. 683-688).

Observados tais requisitos, perfeitamente possível a celebração convenções processuais nos contratos de consumo entre partes capazes, não sendo a suposta presunção legal de vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, III, do CDC) suficiente para impedir a incidência da regra processual.

Primeiro, porque, de ordinário, os contratos consumeristas encerram direito autocomponível, estando seu objeto na esfera de disponibilidade dos contratantes, conforme exige o art. 190, caput, do CPC.

Segundo, pois a presunção legal de vulnerabilidade do CDC não parece absoluta, cedendo diante da demonstração da preservação da autonomia de vontade das partes e da oportunidade real de livre negociação. Note-se que o CPC/2015, ao tratar do reconhecimento do vício da convenção processual, não tolera presunções, exigindo que a parte celebrante esteja em “manifesta situação de vulnerabilidade” (art. 190, parágrafo).

Terceiro, pois mesmo no regime processual revogado já se admitia – sem resistência acadêmica/jurisprudencial -, a celebração de convenções pré-processuais típicas em contratos de consumo. As convenções de eleição de foro sempre estiveram presentes nestes contratos e jamais se cogitou de pronunciar automaticamente a nulidade delas com base na presunção de vulnerabilidade do consumidor. Ao contrário, sempre se exigiu para a decretação da nulidade da cláusula a constatação judicial da efetiva dificultação do exercício da defesa em juízo (art.112, parágrafo, CPC/1973).

Quarto, porque o autoregramento das partes é tendência do direito pátrio, já tendo alcançado espaços até mais tutelados pelo Estado do que o das relações de consumo. Basta ver, neste sentido, a recente admissão, no direito brasileiro, de cláusula compromissória de arbitragem nos contratos com a Fazenda Pública (art. 1º e §§ da Lei 9.307/96, conforme redação da Lei 13.129/2015) e nos individuais de trabalho (art. 507-A da CLT, conforme redação da Lei 13.467/2017).

E quinto, pois vedar, prima facie, o cabimento das convenções processuais nos contratos de consumo, implica privar o consumidor da celebração de negócios processuais que lhe sejam vantajosos, tais como aqueles em que o fornecedor renuncia antecipadamente ao direito ao recurso, caso sua condenação não supere determinada alçada; ou que aceite pagar integralmente as custas de eventual processo judicial, independentemente da sorte da causa.

Portanto, não há nulidade automática das convenções processuais celebradas nos contratos do consumo, inclusive em vista da regra geral do sistema processual de que não se decretará nulidade sem prejuízo (art. 277 do CPC).

Eventual vício de vontade ou a situação de vulnerabilidade real do consumidor deve ser analisado pelo juiz no caso concreto, na forma do art. 190, parágrafo único, do CPC, e somente se for constatado o vício na celebração e o prejuízo é que a convenção processual constante do contrato de consumo deixará de ser aplicada.

Evidentemente, a questão se torna mais complexa quando, além da relação de consumo, o contrato entre as partes também seja de adesão (art. 54 do CDC).

Para estes casos, à luz do art. 190, parágrafo único, do CPC, também se entende que a nulidade não é automática e depende da aferição se a inserção da convenção processual foi ou não abusiva; se causou ou não prejuízo ao aderente. “Talvez um bom parâmetro para interpretação da hipótese seja o do artigo 4.º, § 2.º, da Lei de Arbitragem n.º 9.307/1996, que só reconhece a eficácia da convenção se, em juízo, o aderente concordar expressamente com a regra, ou tomar a iniciativa de utilizá-la” (GAJARDONI, DELLORE, ROQUE e OLIVEIRA JR, Teoria Geral do Processo: comentários ao CPC/2015. 2ª ed. São Paulo. Método, 2018, p 700).


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