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Posse no Direito Brasileiro: Para além do animus e do corpus

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Posse no Direito Brasileiro: Para além do animus e do corpus

ANIMUS OU CORPUS

DIREITO À POSSE

POSSE

POSSE AUTÔNOMA

POSSE E PROPRIEDADE

TITULAR DE POSSE E DETENTOR

Paulo Lobo

Paulo Lobo

15/01/2018

A posse é uma das mais longevas experiências de pertencimento de uma coisa a uma comunidade ou a uma pessoa, em todas as sociedades primitivas e avançadas. Todavia, permanece difícil sua qualificação no âmbito do direito. Os juristas resistem em enquadrá-la como fenômeno jurídico, mas não podem deixar de reconhecer os efeitos jurídicos dela originados.

A razão desse inconcluso conflito entre a realidade da posse e sua concepção jurídica radica no triunfo da ideia do direito de propriedade individual, após o advento da modernidade liberal, na viragem do século XVIII para o século XIX, com as características ainda hoje predominantes. A concepção tradicional do direito de propriedade individual parece ser hostil à posse, que apenas é admitida como exercício daquele. A posse perdeu sua importância histórica como legitimação de pertencimento de coisa, fundado na utilidade real, em prol de uma titulação abstrata (ato jurídico com força de transmissão – modelo português – ou ato jurídico mais registro público ou tradição – modelo brasileiro) favorecedora da livre circulação. Contudo, a força dos fatos (a realidade da posse) é maior que a idealização da propriedade, como demonstram as vicissitudes por que passa a legislação brasileira, inclusive o Código Civil de 2002, que destina à posse regulamentação própria, introduzindo o direito das coisas.

A concepção da posse não pode desconsiderar sua historicidade e a orientação adotada em cada sistema jurídico. É, portanto, fadada ao insucesso a concepção da posse que não leva em conta esses fatores determinantes e se eleva a um grau de abstração impreciso, na tentativa de abranger todos os sistemas possíveis.

As teorias, concepções e definições de posse intentam responder determinados questionamentos:

a) É direito ou estado de fato?

b) É poder de fato sobre uma coisa?

c) Se for estado de fato, por que há consequências jurídicas?

d) Em que medida a posse pode confrontar a propriedade?

e) O que é determinante para sua caracterização, o elemento intencional ou a exteriorização de comportamento típico de dono?

A posse não se contém apenas no direito das coisas, pois é mencionada em outros campos do direito, com significados distintos. No direito de família, há a posse de estado de filiação (CC, art. 1.605) e a posse do estado de casados (CC, art. 1.545). No direito das sucessões, alude-se à posse da herança (CC, art. 1.791). No direito administrativo há a posse de cargo ou função públicos. Porém, é no direito das coisas que a posse assume maior relevância e afirma-se em singularidade, tendo em vista sua larga disseminação na sociedade, inclusive quando em tensão com a propriedade.

As teorias jurídicas brasileiras sobre a posse inclinam-se, em grande maioria, para considerá-la estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao possuidor. Tito Fulgêncio, em obra dedicada à posse, na década de 1930, afirmou que a posse é “poder de fato, instaura-se pelo exercício de fato de algum poder do domínio”, razão porque o ladrão tem a posse, mas não a propriedade, que seria poder de direito adquirido por título justo (2008, p. 6). Esta é a razão de ser denominada a disciplina “direito das coisas”, tradicionalmente adotada no direito brasileiro, como se vê no Código Civil de 2002, e não “direito reais”. Em outro extremo, Darci Bessone pugnou pela pessoalidade da posse, por sua natureza de direito pessoal, situada no direito das obrigações (não é a posse em si que interessa, mas a violência que se pratica contra o possuidor) razão porque decidiu excluí-la da obra que destinou aos “direitos reais” (1996, p. 459).

Partindo de sua conhecida definição de direito como interesse juridicamente protegido, Ihering conclui não haver dúvida de que se deve reconhecer o caráter de direito à posse; se a posse não fosse protegida, constituiria apenas puro fato sobre a coisa, mas só porque é protegida, assume o caráter de relação jurídica, que seria sinônimo de direito (1976, p. 90). Na doutrina portuguesa, José de Oliveira Ascensão (1973, p. 296) afirma que a posse “é um direito verdadeiro e próprio”, porque a situação do possuidor não é apenas um reflexo da defesa da legalidade por parte dos órgãos públicos, é ela própria autonomamente protegida. Há autores brasileiros que sustentaram a tese da posse como direito real, a exemplo de Orlando Gomes (2004, p. 42) e San Tiago Dantas (1979, p. 22).

A orientação majoritária no Brasil da posse como estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao titular da posse, é influenciada pela opção centenária do projeto do Código Beviláqua, enunciado no art. 485 do Código Civil de 1916 e mantido, quase integralmente, no art. 1.196 do Código Civil de 2002, de seguinte teor:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

Nos primeiros séculos da existência do Brasil, após o descobrimento pelos portugueses, a posse/utilidade era o título por excelência de pertencimento das coisas. As terras foram concedidas, durante o longo período do sistema de sesmarias, com a condição suspensiva de sua utilização efetiva, sob pena de devolução ao Estado. Ou seja, sem posse efetiva, a concessão se extinguia ou deveria se extinguir.

No Brasil colonial não se transferiam propriedade ou domínio definitivos. As sesmarias foram os instrumentos legais mais utilizados pela metrópole portuguesa, mediante as quais eram concedidas ou legitimadas posses ou direitos de uso sobre vastas extensões de terras, com intuito de povoamento da colônia, desde que fossem efetivamente exploradas dentro do prazo de cinco anos (Ordenações Filipinas, L. 4, T. 43, 3), mas sem transmissão do domínio, que permanecia sob a titularidade do Reino. Não era a terra que o Reino dava, mas a posse ou usufruto dela; um verdadeiro feudo concedido. Esse sistema repercutia o modelo medieval de pluralidade de titularidades sobre o mesmo imóvel. Deu resultado em Portugal, país de pequena extensão territorial, onde foi introduzido em 1375, promovendo a exploração por pequenos agricultores de áreas não ocupadas, para aproveitamento do solo e cultivo, admitindo-se inclusive o confisco de propriedades particulares incultas para tais fins. As cartas de sesmarias, concedidas pelos capitães donatários e pelos governadores gerais haviam de receber confirmação régia, exigência essa de difícil cumprimento, dirigida ao Brasil a partir do final século XVII, na vã tentativa de controlá-las. Nas Ordenações, sesmeiro era o encarregado de dar a carta, mas no Brasil designava o que recebia a sesmaria. A transplantação desse sistema ao Brasil promoveu efeito inverso, pois foi a causa do surgimento de latifúndios largamente improdutivos; não tinha por fito o abastecimento, como em Portugal, mas o povoamento. No Nordeste foram frequentes concessões de terras mais extensas que os territórios dos atuais Estados. Não havia controle da efetiva utilidade, resultando as cartas de sesmarias em títulos abstratos perpétuos e hereditários. “Os sesmeiros, quase sempre potentados de Olinda e Salvador, pediam a terra, legalizavam o domínio e passavam a ganhar dinheiro às custas do sertanista anônimo” (Porto, s/d, p. 71), muitas vezes expulsando os posseiros pobres que já exploravam a terra. Havia, ainda, as terras concedidas para instalação das Vilas, as quais podiam aforar as não utilizadas, as terras reservadas de interesse da Coroa, as terras de marinha e as posses não legitimadas.

Esse quadro tumultuário de desorganização fundiária persistiu até à independência em 1822, tendo o Império determinado a extinção das sesmarias e procurado estabelecer algumas diretrizes, no trânsito do modelo medieval de pluralidades das titularidades sobre a coisa, para o modelo de titularidade exclusiva, da modernidade liberal, à qual a Constituição de 1824 pretendeu estar vinculada. O art. 179 dessa Constituição proclama a inviolabilidade da propriedade do cidadão e nenhuma referência faz à posse.

Em 1850 foi editada a Lei 601, conhecida como “Lei de Terras”, considerando como terras devolutas, integrantes do domínio público nacional, as que não se encontravam legitimamente dadas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, ou efetivamente ocupadas com posses, que (art. 3º) “apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei”. Note-se que a lei reconheceu que a posse não se fundava em “título legal”, mas era reconhecida como título social para ser por ela legitimada.  Mesmo as posses que se achavam em áreas de sesmarias ou de outras concessões do governo, foram legitimadas, se iniciadas antes das medições daquelas, ou após estas, se perduravam por dez anos. É certo dizer que a Lei 601 visava à proteção dos simples posseiros ou sesmeiros irregulares, elevando sua situação fática à situação jurídica, mas incorrendo no erro de tornar ilegítimas as posses não tituladas, a partir dela.

Mas as ocupações continuaram, após a “Lei de Terras” e até mesmo nas que esta denominou terras devolutas, exigindo novas soluções legais e judiciárias. O sentido originário de terra devoluta era de sesmaria que, descumprido requisito essencial, voltava, era “devolvida” à Coroa; depois, passou a ser empregado para todo solo desocupado e vago. O Código Civil de 1916, finalmente, passou a regular de modo sistemático a posse, destacada da propriedade, no que foi seguido pelo Código Civil de 2002. A posse, portanto, é protagonista constante da evolução do direito das coisas no Brasil.

Qual o elemento nuclear decisivo para a existência ou não da posse? Para alguns é o elemento psicológico ou intencional, ou seja, a intenção de possuir a coisa como se fosse o proprietário dela (animus). Para outros é o comportamento exteriorizado equivalente ao de proprietário da coisa (corpus), independentemente da intenção. Duas atitudes podem ainda ser encontradas: 1. A primazia de um dos elementos não afasta a existência do outro, ainda que complementar. 2. A escolha de um dos elementos afasta o outro, por desnecessidade ou incompatibilidade.

Em se tratando de posse, não há como desconsiderar a célebre disputa sobre os elementos fundamentais da posse, ocorrida no século XIX, entre os juristas alemães Savigny e Ihering. Seus reflexos permanecem na atualidade, como se nota na jurisprudência dos tribunais brasileiros, com resultados distintos.

Para Savigny a posse é um poder de fato assemelhado a um direito, composto de dois elementos integrantes: o corpus (apreensão física da coisa) e o animus domini (a intenção de ter a coisa como se dono fosse) (1893, p. 187). Contudo, o elemento determinante da verdadeira posse é o animus. Os atos materiais de utilização e exercício da posse sobre a coisa (corpus) são irrelevantes. O ânimo de dono, próprio do possuidor, se opõe ao ânimo de detenção em nome do dono. Apenas o que age intencionalmente como se dono fosse pode ser considerado possuidor – o que afastaria dessa qualificação os titulares de direitos reais limitados. Deu-se-lhe a denominação de teoria subjetiva.

Para Ihering, contrariamente, o que importa são os fatos exteriores e objetivos da utilização da coisa, equivalentes aos atribuídos ao proprietário. Designa pelo nome de corpus a relação exterior da pessoa com a coisa, demonstrada pela apreensão (1976, p. 107). Não é o poder físico, mas “a exteriorização da propriedade”. O próprio Ihering denominou sua teoria de objetiva, ainda que não tenha suprimido inteiramente o elemento intencional, que estaria subtendido nos fatos exteriores, pois a pessoa que tem uma coisa em seu poder tem necessariamente a intenção de exercer sobre ela um direito. Assim, a pessoa não possui a coisa que lhe põem na mão enquanto dorme. A teoria objetiva exerceu forte influência no Código Civil alemão – e nos que lhe seguiram -, cujo artigo 854 estabelece que “a posse de uma coisa se adquire mediante o poder de fato sobre a coisa”, sem qualquer referência ao elemento intencional.

Sustenta-se que os dois elementos, o material e o intencional, devem ser reunidos: a simples vontade de se comportar como proprietário não é suficiente para a posse, devendo ser materializada a detenção ou a utilização da coisa; igualmente, o corpus não basta, pois o locatário, que exterioriza a posse, não a tem no sentido próprio, por lhe faltar o animus de se comportar como dono (Weill; Terré; Simler, 1985, p. 146).

Quem defende a prioridade do elemento intencional, entende que sem o animus de se comportar como o proprietário da coisa há mera detenção da coisa, mas não posse. Todavia, o locatário de coisa em nosso direito é possuidor, sendo-lhe atribuída idêntica tutela jurídica, não se comportando como se proprietário fosse, pois não o é, nem sendo mero detentor em nome do proprietário. A situação jurídica do locatário como possuidor direto de interesse próprio legitima-o a defender sua posse contra o proprietário e terceiros. Do mesmo modo o usufrutuário é possuidor em nome próprio e não em nome do proprietário e não se comporta como se proprietário fosse, pois seu direito real é reconhecidamente limitado a usar e fruir a coisa.

Tanto uma teoria quanto outra têm a propriedade como paradigma, o que reduz a função da posse e sua autonomia. A posse seria a imagem e a semelhança, no campo fático, da propriedade. Savigny e Ihering não escaparam das circunstâncias de seu tempo da primazia da função individual da propriedade, tida como direito subjetivo por excelência. Para Savigny a posse, de acordo com a propriedade, era emanação da vontade e da liberdade individual. Para Ihering, era a exteriorização da propriedade.

Se a posse não é efeito de fato jurídico, notadamente se não é direito subjetivo, então por que é protegida pelo direito? E mais, por que dela emanam consequências jurídicas necessárias? As respostas dependem das concepções de posse e, principalmente, dos elementos fundamentais que a caracterizam em cada sistema jurídico.

A proteção jurídica da posse é tanto positiva quanto negativa. É positiva quando garante seu exercício e sua função social. É negativa, quando repele a lesão de terceiros e até do proprietário, que intentem impedir ou suprimir seu exercício pelo possuidor. Compõem a proteção jurídica da posse: a) a autodefesa, que é a defesa imediata à injusta violação, como turbação ou esbulho; b) a manutenção ou reintegração judiciais da posse; c) a indenização dos danos sofridos pelo possuidor.

Ihering fez-se a mesma pergunta e a respondeu que a garantia do possuidor não assenta no poder físico de que é capaz de “excluir a ação de pessoas estranhas sobre a coisa”, como afirmava Savigny, mas porque a lei proíbe essa ação; ela não assenta numa barreira física, mas numa barreira jurídica (1976, p. 109). Sob o ponto de vista positivo, não é para dar ao possuidor o poder físico sobre a coisa, mas para lhe tornar possível o uso econômico da coisa.

A proteção jurídica da posse está condicionada ao exercício contínuo desta. Se o possuidor não mantém a posse, quando pode fazê-lo, ela é considerada perdida ou abandonada, não sendo mais merecedora de proteção. Essa era a orientação já adotada no antigo direito romano. Como disse Ihering, na posse a permanência da relação de fato é a condição do direito à proteção; o possuidor não tem direito senão enquanto possui.

Além de sua proteção jurídica, que se encontra no plano da defesa, a posse é exercício de fato de poderes correspondentes aos poderes jurídicos do proprietário, como estabelece o Código Civil brasileiro. Estende-se à posse, consequentemente, a tutela legal do exercício dos poderes e deveres de proprietário. Assim, são aplicáveis ao possuidor os direitos de vizinhança, os direitos e deveres do condômino em edifício de apartamentos, as regras sobre a servidão, se o imóvel possuído tem servidão. O que se protege, na posse, não são os direitos, mas poderes fáticos que correspondem a esses direitos.

A posse, assim como a propriedade, deve exercer uma função social e não apenas individual, segundo o estalão constitucional (arts. 5º, XXIII; 170, III, da Constituição). Assim, não basta o uso econômico da coisa, que se revela por sinais exteriores, mas é necessário que realize a função social, segundo os critérios legais, para que a proteção seja assegurada à posse.

A redação dada ao art. 485 do Código Civil de 1916 – e repetida no Código Civil de 2002 – foi inspirada no explícito desejo do legislador de distanciamento da teoria subjetivista da posse. O parecer do relator do projeto do Código anterior, na Câmara dos Deputados, afirmou, contraditando explicitamente Savigny, que “a posse existe com a intenção de dono, mas também pode existir sem ela e até com o reconhecimento de outro dono, e bem assim com o poder físico de dispor da coisa como sem ele; e se em geral sua defesa é exercida contra agressões de terceiro, não raro o é contra as do dono, reconhecido como tal pelo próprio possuidor” (Fulgêncio, 2008, p. 6).

O art. 1.196 Código Civil de 2002, não conceitua a posse, optando por concentrar-se na figura do possuidor, considerado o “que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” podendo ser desdobrada nos seguintes componentes:

1. Exercício de fato

2. (da) totalidade ou parte (de)

3. Poder inerente à propriedade

De longa tradição, o titular do direito de propriedade pode exercer os seguintes poderes: uso, fruição e disposição da coisa. Não são poderes de fato; são poderes juridicizados. O proprietário pode ou não se utilizar deles. Para a norma legal brasileira, não são esses poderes, enquanto tais, que são objeto da tutela possessória, mas sim o exercício de fato de qualquer deles pelo possuidor, proprietário ou não. O exercício de fato é o que não se oriunda de título jurídico legitimado. Para ser considerado possuidor é suficiente que tenha o exercício de fato de parte ou da totalidade de qualquer desses poderes em relação à coisa (pode usar, sem fruir, por exemplo).

A norma legal brasileira não declara que a posse seja o poder de fato sobre a coisa, não exige o elemento intencional, nem impõe a exteriorização do comportamento próprio de dono da coisa. Assim, não seguiu a teoria subjetivista, que o legislador originário procurou evitar, nem a teoria objetivista, em sua pureza, nem a fusão de ambas. Nem Savigny, nem Ihering.

O Código Civil rejeitou a limitação da posse à posse do proprietário. Reconhece a posse direta em outras relações jurídicas reais, como a posse dos titulares do usufruto, do uso, da habitação, do penhor, da anticrese, da concessão de uso especial para moradia, do direito de promitente comprador, da superfície. Também reconhece a posse direta de figurantes de negócios jurídicos, como as do locador, do comodatário. Não são possuidores em nome alheio, mas sim posses próprias. A teoria contemporânea da posse muito deve à distinção entre posse direta e posse indireta; ambas são posses protegidas. O que não é proprietário pode possuir e o que deixou de ser proprietário pode continuar possuindo a mesma coisa. O art. 1.196 do Código Civil não considera possuidor o que tem de fato o exercício do direito de propriedade, mas sim o que tem de fato o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade. É exercício fático de poderes, sem dependência a qualquer direito. É, portanto, no mundo dos fatos que vê a posse em sua autonomia e não confinada na propriedade.

No direito brasileiro, a posse da herança se transmite aos herdeiros de modo automático, com a abertura da sucessão, ainda que esses não tenham conhecimento ou manifestado aceitação expressa ou tácita, como se depreende do art. 1.784 do Código Civil. É o triunfo da saisine plena, sem paralelo com os direitos de outros países. A aceitação – que no direito português, por exemplo, é imprescindível para que se opere a transmissão da herança – tem função meramente confirmatória. Apenas se exige manifestação expressa para a renúncia à herança. Consequentemente, não há animus na aquisição da posse da herança, nem corpus, pois não há necessidade de sua exteriorização como dono (ou condômino).

Ainda com relação à posse da herança, decidiu o STJ (REsp n° 537363) que o exercício fático da posse não é requisito essencial, para que este tenha direito à proteção possessória contra eventuais atos de turbação ou esbulho, tendo em vista que a transmissão da posse (seja ela direta ou indireta) dos bens da herança se dá por força de lei, independentemente da prática de qualquer outro ato.

Na doutrina jurídica brasileira, foi Pontes de Miranda quem melhor identificou essa peculiaridade de nosso modelo legal de posse, principalmente no tomo X de seu Tratado de Direito Privado (2012[1954]). Segundo ele, no assunto da posse, o direito brasileiro trilhou caminho próprio, distanciando-se da disputa entre as teorias subjetivistas e objetivistas, não reputando como elemento necessário tanto o corpus quanto o animus. A referência ao animus muito concorreu para que se entravasse o desenvolvimento da teoria da posse. Reduzir a posse a exercício de direito (corpus) é por aquém da posse, que se passa no mundo fático, o que já resulta de outros fatos jurídicos, uma vez que direitos são efeitos jurídicos; se fosse assim, a proteção à posse seria espécie de proteção de direitos (p. 109). O fundamento da posse é o princípio da conservação do fático. Resumindo seus pressupostos, podemos dizer que a posse é relação fática entre a pessoa e a comunidade, diferentemente da propriedade que é relação jurídica entre a pessoa e a comunidade. Quem toma posse de um terreno sem oposição está no mundo fático. Mas, quando há oposição à posse esta ingressa no mundo jurídico como fato jurídico. Ou quando ela ofende direito alheiro. Ou quando é objeto de algum negócio jurídico. A posse deixa o mundo fático e é juridicizada. Então o sistema jurídico protege a posse, ou protege o direito contra a posse; é o momento da entrada da posse no mundo jurídico.

Segundo Pontes de Miranda, a posse é estado de fato em que acontece poder (de fato), mas não é ato de poder; compreende-se como possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fosse proprietário. Não se precisa de qualquer ato para que se possua; o herdeiro recebe a posse sem qualquer ato. Em virtude da limitação do poder exercido, há posse como usuário, como usufrutuário, como locatário, como depositário, como credor pignoratício, como comodatário, que também estão abrangidos pela definição legal. “O legislador brasileiro definiu a posse, vendo-a do mundo jurídico, mas sabendo que ela está no mundo fático, que é apenas elemento fático que pode vir a entrar no mundo jurídico em virtude de algum ato jurídico ou negócio jurídico que a tome como um de seus elementos” (p. 58) ou de oposição. Por isso não é correto dizer-se posse de propriedade, ou de direito real, ou de direito pessoal. Exemplificando, não há posse de usufruto, mas posse como usufrutuário. E há direitos reais a que não pode corresponder posse, como a hipoteca.

Pontes de Miranda também contesta (p. 132) os que diziam – e os que ainda dizem – que a posse é fato, mas, por seus efeitos, direito, como os antigos civilistas brasileiros Antônio Joaquim Ribas e Lafaiete Rodrigues Pereira, pois não prestaram atenção a que não há direito sem ser efeito de fato jurídico e a que todo fato, que tem efeitos, é fato jurídico.

Há casos de posse que não consistem em exercício de direito, como exemplificamos na posse da herança, e, diz Pontes de Miranda (p. 108), há exercício de direitos que não consistem em qualquer poder fático a que se possa chamar posse, demonstrando-se “quão vicioso é falar-se em exteriorização do direito, aparência do direito, ou de situação jurídica correspondente a direito”.

Esclarece Pontes de Miranda a tormentosa questão da natureza da transmissão da posse, posto que situação de fato. Diz que (p. 124), no momento em que o possuidor transmite, o ato de transmissão entra no mundo jurídico e, implicitamente, dá entrada à posse. Com sua entrada no mundo jurídico é que se considera a posse como fato jurídico e fonte de direitos, pretensões, deveres e obrigações.

Uma das características essenciais do modelo brasileiro da posse é a manutenção de sua natureza, de acordo como foi adquirida, notadamente quanto a suas qualidades e vícios. Essa regra está expressamente determinada no Código Civil (art. 1.203).

A posse que foi adquirida de boa-fé permanece de boa-fé, assim como a posse que foi adquirida de má-fé permanece de má-fé. A que foi adquirida clandestinamente ou por meio de violência, permanece assim, mas a lei admite que cessada a clandestinidade ou a violência, converta-se em posse justa, que tem direito à proteção possessória. Enquanto perdurar o vício, a posse é desconsiderada pelo direito. Cessado o vício, inicia-se o tempo levado em conta para os efeitos jurídicos, desprezando-se o anterior.

Essa regra abrange a multiplicidade de posses que o direito admite, projetando sua natureza no tempo. No Código Civil, além da posse comum, há posses que contemplam situações especiais. O art. 1.228, § 4º, dispõe sobre a posse coletiva, na qual os possuidores ocupam extensa área urbana, constroem suas moradias, obras ou serviços, com a introdução de serviços públicos, em fenômenos conhecidos como invasões urbanas; após cinco anos da ocupação, estão legitimados os possuidores ou ocupantes dessas áreas a pleitear a perda da propriedade, quando o titular desta a reivindicar, fixando o juiz o preço que os possuidores deverão pagar como indenização. A indenização a ser paga pelos possuidores não é requisito para proteção da posse, mas para que esta se converta em propriedade. Outro tipo de posse é a que se vincula à moradia; para que possa valer-se do prazo reduzido para usucapião (cinco anos) é necessário que assim permaneça, dentro dos limites das áreas dos imóveis urbanos (até duzentos e cinquenta metros quadrados) ou dos imóveis rurais (até cinquenta hectares).

Há, ainda, a posse intuitu familiae que protege o cônjuge ou companheiro que tenha sido abandonado pelo outro, em imóvel utilizado para moradia da família e que tenha sido propriedade de ambos. Essa modalidade foi criada pela Lei nº 12.424, de 2011, que introduziu o art. 1.240-A ao Código Civil, estabelecendo o prazo reduzido de dois anos para usucapião do imóvel, em favor exclusivamente do familiar abandonado, contra o outro, contado o prazo a partir do abandono. O abandono se caracteriza com a separação de fato, independentemente de ter havido divórcio ou dissolução regular da união estável. Essa posse, que permite a usucapião abreviada, é exclusiva do cônjuge ou companheiro abandonado; se houver transferência, ao terceiro não é dado valer-se do tempo da posse para essa específica usucapião.

É possível a transformação da natureza originária da posse (da causa possessionis). A posse que não seja plena pode se converter em posse plena. Situações recorrentes na jurisprudência dos tribunais é do locatário – que detém a posse direta, mas não a indireta, que é a do locador -, quando rompe o contrato de locação e deixa de pagar os aluguéis, que não são cobrados por inércia do locador; após o tempo previsto em lei, pode requerer a usucapião, fundado não na posse como locatário, mas na posse própria, que teve início com a ruptura do contrato de locação. Também admite a lei que ao sucessor singular, na transferência entre vivos, é facultado unir sua posse à do antecessor ou não; se não unir, inicia o tempo da posse a partir da transferência.

Não são considerados possuidores, sendo, portanto, destituídos de proteção possessória, os detentores subordinados do proprietário ou do possuidor, como os empregados destes. Igualmente, não são possuidores os emissários ou mensageiros, os hóspedes, os agentes públicos. Essas pessoas são consideradas meros detentores da coisa ou servidores da posse de outrem. O locatário, o credor pignoratício, o usufrutuário, o usuário têm posse; o detentor, não. O detentor apenas retém a coisa em nome e a favor de outrem.

O Código Civil de 2002 (art. 1.198), ante a diversidade de denominações encontrada na doutrina (detentor, servidor da posse, fâmulo da posse), preferiu “detentor”, definindo-o como aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. No direito anterior, na dúvida se detentor ou possuidor, este prevalecia. O Código Civil de 2002 orientou-se em sentido contrário: na dúvida, é detentor, assim entendido o que começou a comportar-se com relação de dependência com o possuidor, mas essa presunção é relativa, admitindo-se prova em contrário.

Distingue-se, pois, a posse da detenção da coisa. O detentor exerce poder de fato sobre a coisa, mas sua relação de dependência com o titular impede que esse poder de fato seja protegido como posse própria. O exercício do poder de fato se dá em nome do titular da posse. A eficácia da detenção é quantitativa e qualitativamente inferior à eficácia atribuída à posse. Pode o detentor, no entanto, promover a defesa da coisa, inclusive a autodefesa, em nome e no interesse do possuidor.

O titular de órgão da pessoa jurídica (gerente, administrador, dirigente, gestor) não é detentor. No exercício de suas atribuições, seus atos não são seus mas da própria pessoa jurídica, que é a possuidora. Os órgãos não representam, mas sim presentam a pessoa jurídica.

A detenção pode se converter em posse, quando o detentor age em contradição aos interesses do titular da posse, descumprindo suas instruções e rompendo o vínculo de subordinação. A partir daí desaparece a detenção e surge a posse própria. Nesse sentido é o enunciado 301 das Jornadas de Direito Civil, patrocinadas pelo CJF/STJ: “é possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios”. Esse rompimento é situação de fato, não dependente de manifestação de vontade.

As terras públicas são insuscetíveis de usucapião, segundo a Constituição Federal. Pressupondo como necessária a correlação entre posse e propriedade, tem havido decisões dos tribunais, notadamente do STJ (v. g., REsp 1200736), no sentido de caracterizar a ocupação de terras públicas como mera detenção, insuscetível de proteção possessória.

Ihering afirmou que em toda parte se reproduz o relacionamento da posse com a propriedade. “A posse é a porta que leva à propriedade”. “Ela é, em consequência, negada onde quer que seja juridicamente excluída a propriedade” (1976, p. 83). A supremacia da propriedade e a redução da posse à função ancilar da propriedade correspondeu ao individualismo jurídico do século XIX. As transformações havidas no século XX na concepção de propriedade, como complexo de direitos e deveres ou funções, desde a Constituição alemã de 1919, retomaram a autonomia da posse, tornando insustentáveis as afirmações de Ihering, que continuam sendo utilizadas até hoje como razões de decidir.

Assim, até mesmo quando o direito de propriedade esteja impedido ou excluído é possível a atribuição da posse, para que esta exerça sua função social. A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, instituiu regime próprio para as terras indígenas, que são as tradicionalmente ocupadas pelos índios, estabelecendo (art. 231, § 2º) que “destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Partilhando as titularidades, a Constituição atribuiu à União Federal o domínio inalienável dessas terras, e aos índios a posse permanente. Essa posse não leva à propriedade, não se relaciona à propriedade; existe autonomamente, pois o direito de propriedade individual é excluído.

A legitimação da posse autônoma tem sido objeto de legislação específica voltada à realização de políticas públicas de acesso à moradia. A Lei nº 11.977, de 2009, que regulamenta o programa “Minha Casa, Minha Vida”, de moradias populares, estabelece a possibilidade de legitimação da posse de moradores de áreas ocupadas de domínio privado ou público, que tenham sido objeto de demarcação urbanística. Estabelece a Lei (art. 58) que a partir da averbação do auto de demarcação urbanística, “o poder público concederá título de legitimação de posse aos ocupantes cadastrados” e, ainda, que a legitimação de posse devidamente registrada constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia, desde que não seja detentor ou possuidor de outra moradia. A legitimação da posse pode ser objeto de cessão, com anuência do poder público. Essa posse é objeto de legitimação por ato do poder público e de registro público, que era apenas assegurado ao direito de propriedade. É um título de posse e não de propriedade. A lei prevê, igualmente, que, após cinco anos do registro da legitimação da posse, o possuidor pode requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal, desde que a área do terreno não supere duzentos e cinquenta metros quadrados.

Na alienação fiduciária em garantia de coisa móvel ou imóvel, ao adquirente é transmitida a propriedade, que instantaneamente a transfere à entidade financiadora, de modo resolúvel. A propriedade permanece sob a titularidade da entidade financiadora até que o devedor adimpla a totalidade das prestações e outras despesas do financiamento. Durante esse período, o devedor é possuidor direto da coisa, que a exerce autonomamente, sem qualquer relação com a propriedade resolúvel da entidade credora, que tem função meramente de garantia.

Na jurisprudência dos tribunais, anote-se o progressivo reconhecimento da autonomia da posse do promitente comprador, cujo negócio jurídico não foi levado ao registro público, necessário para a eficácia real, e que redundou na Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro”. A proteção possessória está inteiramente desvinculada do direito real à aquisição do imóvel, para o qual o registro é indispensável (CC, art. 1.417).

A posse distingue-se da propriedade, como salienta Antonio Hernández Gil (1968, p. 211), por ser uma forma de utilização das coisas ligadas às necessidades comuns de todos os seres humanos e dar-lhe autonomia significa constituir contraponto humano e social à propriedade concentrada e despersonalizada.

A autonomia da posse, que cada vez mais se afirma, tem sido fortalecida pelas investigações iluminadas pelo direito civil constitucional. Os fundamentos da posse precisam ter em conta a promoção dos valores sociais constitucionalmente estabelecidos (Tepedino, 2011, p. 444) e sua relação com os direitos fundamentais.

A crescente autonomia da posse provoca a invocação, também crescente, do direito à posse, no sentido de acesso e de proteção. O direito à posse não se confunde com direito de posse, pois este expressa a concepção de qualquer posse como direito, ou de situações em que a posse é título de pertencimento de coisa legitimamente reconhecido pela lei. O direito à posse não se confunde, igualmente, com o direito oriundo da posse quando esta ingressou no mundo jurídico, que os antigos denominavam jus possessionis.

Aludindo à posse em geral, diz Pontes de Miranda (2012, p. 108) que ter direito à posse não é ter posse; “e a posse nada tem com esse direito, tanto que pode existir e ser protegível contra ele”. Tem direito à posse (jus possidendi), quando ainda não a tenham, o proprietário, o titular de direito real, o figurante de relação jurídica obrigacional, em que a posse da coisa seja elemento, como o locatário, o depositário e o comodatário. Para o STJ (REsp 1126065), no plano processual, a ação de imissão de posse, intentada pelo proprietário, tem natureza petitória e não possessória, porque, no caso concreto, nunca exerceu a posse e deseja alcançá-la; legitimado à ação é o titular de direito real e não o possuidor.

Mas a posse, ainda que concebida como fato ou poder de fato, é a essência de determinados direitos ou é o interesse legítimo mais relevante. Por isso, o legislador alude, frequentemente, a direito à posse. Destacamos alguns exemplos no Código Civil:

1. O usufrutuário “tem direito à posse”; assim estabelece expressamente o art. 1.394. A essência do direito real de usufruto é a posse da coisa, de modo a que o usufrutuário possa usá-la e fruí-la. Trata-se de posse direta no próprio interesse – do usufrutuário – e não de exteriorização ou aparência de posse de dono. O direito real é-lhe conferido como garantia ou proteção reforçada da posse. O direito do usufrutuário à posse da coisa independe da concepção da posse como direito ou fato.

2. O credor pignoratício “tem direito à posse da coisa empenhada” (art. 1.433). O direito real de penhor tem por função a garantia do credor, mediante posse da coisa. É certo que, diferentemente do usufruto, a posse não pode ser ampla, dada sua destinação; mas é espécie de posse direta em interesse próprio, que está como limitação ao direito de propriedade do devedor.

3. No penhor de título de crédito, o credor/possuidor tem o direito de “conservar a posse do título e recuperá-la de quem quer que o detenha” (art. 1.459). Nessa hipótese legal, a posse direta do credor é revestida das mesmas características comumente atribuídas ao direito de propriedade, inclusive a de sequela.

4. Até à partilha os co-herdeiros têm direito à posse da herança (art. 1.791, parágrafo único), considerada indivisível, na qualidade de compossuidores, de acordo com a parte ideal de cada um. A lei assegura-lhes direito à posse, ainda que não exclusiva.

Os exemplos referidos são de direito à posse no sentido de direito ao exercício e à proteção dela, considerando que já se encontra sob a titularidade dos nominados. Alude-se, igualmente, direito à posse no sentido de direito a adquiri-la, atribuído aos que ainda não são possuidores, em determinadas circunstâncias que o sistema jurídico tem como relevantes.

O ápice da luta pelo reconhecimento jurídico do direito à aquisição e conservação da posse é o direito à moradia, elevado ao status constitucional de direito social fundamental (CF, art. 6º). Direito positivo oponível ao Estado, para que promova políticas públicas que o realizem. Direito negativo de remoção dos obstáculos legais, sociais e legais que o impeçam, inclusive como fundamento da decisão judiciária. Direito limitativo da propriedade, que assume deveres, ao lado dos direitos.

O direito à moradia está especificado na Constituição, no atendimento de determinas situações. No art. 183 é reconhecida a posse de área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, utilizada para fins de moradia do possuidor e de sua família, bastando sua continuidade por cinco anos para que sirva como título de aquisição definitiva da propriedade. Igual direito (art. 191) é assegurado ao possuidor de área de terra em zona rural de até cinquenta hectares que a explore e a tenha como sua moradia.

O direito à posse expandiu-se para alcançar não apenas pessoas individuais, mas também coletividades. Grupo composto de “considerável número de pessoas”, que ocuparam imóvel de extensa área e ali construíram suas moradias e realizaram obras e serviços, está legitimado pelo art. 1.228 do Código Civil a opor ao pedido de reivindicação do proprietário seu próprio pedido de desapropriação; essa singular desapropriação judicial é concluída com o pagamento ao proprietário da indenização fixada pelo juiz, findo o qual a sentença valerá como título para registro do imóvel em nome dos possuidores. A pretensão não é individual, mas sim coletiva, pois coletiva é a posse. A coletividade possuidora também pode consistir de pessoas indeterminadas, a exemplo da antiga experiência do compáscuo, no qual o imóvel é utilizado pelos rebanhos de várias pessoas, para pastagem comum, sem demarcação de espaço. Estabelece o art. 225 da Constituição que o meio ambiente é bem de uso comum de todos, impondo-se à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo; o meio ambiente, em si, não é domínio do Estado ou de particular, facultando à coletividade o uso comum, que é a contrapartida dos deveres de preservação e defesa.

O direito à posse recebeu especial influxo da ideia de função social da propriedade. A posse, para continuar merecedora da proteção jurídica e ser instrumento mais democrático de acesso das pessoas às coisas, há de realizar sua função social, ao lado da função individual. Toda a rica produção intelectual que se tem em torno da função social propriedade, em nosso meio, aplica-se, com mais razão, à posse, pois é esta que a realiza, na dimensão positiva da utilização real da coisa. Porque, como diz Luiz Edson Fachin (1988, p. 13), a posse não é somente conteúdo do direito de propriedade, mas sim sua causa, entendida com sua força geradora, e sua necessidade, pois exige sua manutenção sob pena de recair sobre a coisa a força aquisitiva, mediante usucapião; por isso, a função social é mais evidente na posse do que na propriedade (p. 19), por sua natureza de uso e utilização.

A posse que não seja a do próprio dono da coisa vive em constante tensão com o direito de propriedade. A posse é protegida desde seu nascedouro até mesmo quando o possuidor esteja de má-fé, ou seja, quando saiba que a coisa é de titularidade de outrem. As únicas posses que nosso direito não protege são as havidas de modo clandestino ou violento, senão depois de cessar a clandestinidade ou a violência (CC, art. 1.208). Nessas hipóteses, há posse, mas o direito a rejeita, em virtude de ser viciada sua causa. A posse há de ser pública, conhecida, além de não resultar de esbulho pela violência. Tampouco constitui posse a detenção da coisa que derive de atos de permissão ou tolerância do possuidor da coisa, seja ele dono, titular de direito real ou mero possuidor.

Pode parecer estranho que se proteja a posse contra o proprietário da coisa. Assim é porque a inércia deste afronta o princípio da função social da propriedade, pois é do interesse social que seja útil. A utilidade da coisa repercute não só em benefício do proprietário, mas também do conjunto da sociedade, agregando valor e ampliando o uso.  Nesse sentido é que a Constituição (art. 182) sanciona com várias consequências negativas o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, indo do parcelamento ou edificações compulsórios, ao imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo e à desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.

O confronto entre a posse e a propriedade atinge seu ponto mais agudo com a usucapião, que resulta na extinção do direito de propriedade anterior no mesmo instante em que a posse insurgente se converte em novo direito de propriedade sobre a mesma coisa. Cada sistema jurídico estabelece os requisitos, notadamente temporais, para a incidência da usucapião. Pode haver variedade de hipóteses de usucapião, para atender a determinadas situações, como ocorre no sistema jurídico brasileiro. A divergência maior radica na natureza da sentença judicial que reconhece a usucapião. Em alguns sistemas jurídicos a sentença é constitutiva; antes dela não se consuma a usucapião. No sistema jurídico brasileiro a sentença produz efeitos meramente declarativos, isto é, declara o que já ocorreu no mundo dos fatos e no mundo do direito, sem nada acrescentar para a aquisição da propriedade pelo possuidor usucapiente. No mundo dos fatos, comprova-se que a posse foi contínua – sem interrupção, nem oposição do proprietário ou de terceiro – e que o termo final do tempo exigido em lei foi alcançado. No mundo do direito, houve a concretização do suporte fático previsto na norma legal (continuidade da posse, mais tempo) com a incidência desta, convolando-se o suporte fático em fato jurídico, cujo efeito relevante é o direito de propriedade que se adquiriu e foi assim declarado na sentença. O art. 1.238 do Código Civil fixa os dois momentos, o primeiro o da aquisição da propriedade, “independentemente de título e boa-fé”; o segundo, o requerimento ao juiz para que assim o “declare por sentença”.

A valorização da posse em face da propriedade, como tendência do legislador, também se observa no abandono pelo Código Civil de 2002 da oposição da exceção da propriedade (exceptio proprietatis). Não mais existe a seguinte regra da legislação anterior (CC-1916, art. 505) que permitia ao titular do direito de propriedade se opor à pretensão do possuidor mediante a exceção de seu título de propriedade, que presumia a posse: “Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio”.

A usucapião produz profundo golpe no direito de propriedade. No confronto com esta, a posse sai vencedora. Os fatos (posse continuada sobre a coisa, sem interrupção ou oposição, mais tempo) são suficientes para extinguir o direito subjetivo simbolicamente mais forte em nosso direito, o de propriedade. Pouco importa a antiguidade do título e sua sucessão por gerações, quando desafiado pela posse que redundou em usucapião.

A palavra “posse” é polissêmica, no sistema legal brasileiro. Pode ser empregada no sentido de: a) situação de fato ou poder de fato, que ainda não ingressou no mundo direito; b) de conjunto de direitos e deveres como efeitos de sua entrada no mundo jurídico.

Do sistema legal brasileiro surgem não apenas uma, mas duas definições essenciais e complementares da posse de coisas:

1. A posse é o exercício de poderes de fato que corresponde ao exercício dos poderes inerentes à propriedade.

2. A posse é legitimação própria do direito de usar e possuir a coisa.

A primeira definição legal é relativa à posse em geral. A posse, enquanto exercício fático de algum dos poderes inerentes à propriedade, permanece no mundo dos fatos; é fato do mundo dos fatos. Todavia, quando é violada ou corre o risco de ser violada, ingressa no mundo do direito, como fato jurídico merecedor da proteção possessória que o ordenamento lhe confere. Também converte-se em fato jurídico quando é objeto de negócio jurídico ou em virtude da sucessão hereditária. A posse não pode ir além, como poder fático, do que, como poder jurídico, poderia ir o poder contido na propriedade.

A segunda definição é da posse autônoma, como direito subjetivo próprio, quando a Constituição e a lei dispensam a correlação com a propriedade. A definição legal dada pelo Código Civil limita-se à posse correlacionada à propriedade. Mas não abrange a posse autônoma, que, por ser independente da propriedade, já é fato jurídico, de onde promana o direito subjetivo. Quando a posse é autônoma, como nos exemplos das terras dos índios ou da legitimação da posse registrada decorrente de demarcação urbanística, ela já ingressa no mundo do direito como fato jurídico, por força de lei. Nessas hipóteses é correto dizer-se direito de posse.

Tanto em uma quanto em outra definição não há de se cogitar do elemento intencional (animus). Na primeira capta-se a facticidade do exercício de poderes e não de atos de poderes; na segunda, é a lei que confere diretamente a legitimação.  Tampouco faz sentido, para elas, o recurso ao comportamento como se dono fosse (corpus). O exercício fático parcial de poderes, correspondentes a determinados poderes jurídicos, conduzem à posse de outros direitos reais, distintos da propriedade, ou à posse derivada de relações negociais, também distinta. Na posse autônoma, não há correspondência com os poderes de proprietário.


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WEILL, Alex; TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil: les biens. Paris: Dalloz, 1985.

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