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Conceito de coisa julgada no Novo CPC: avanços e oportunidade perdida

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Conceito de coisa julgada no Novo CPC: avanços e oportunidade perdida

COISA JULGADA

CONCEITO

CPC

CPC 2015

NCPC

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Luiz Dellore
Luiz Dellore

22/01/2018

O conceito de coisa julgada é um tema bastante complexo, a respeito do qual existem grandes divergências doutrinárias, literalmente ao longo dos séculos. O saudoso Professor Barbosa Moreira, em 1979, deu um sugestivo título a artigo que tratou do assunto: “Ainda e sempre a coisa julgada” [1], mostrando como a questão é espinhosa.

Nem quanto ao nome há consenso. No Brasil, é consagrada (pelo uso e pela legislação) a expressão coisa julgada, que seria a tradução literal da expressão latina res judicata. Mas em Portugal, prefere-se falar em caso julgado – que, no mínimo, é um termo mais didático (e adotado por poucos autores brasileiros[2]).

A coisa julgada surge por força de uma necessidade prática: evitar a perpetuação dos litígios. Em determinado momento é necessário colocar um fim, um ponto final [3], às discussões a respeito de determinado conflito. Assim, o grande objetivo da coisa julgada é a estabilidade das relações sociais, a segurança jurídica.

O tema é um dos meus preferidos, sendo que o enfrentei em publicações anteriores [4]. Nesta coluna, tratarei do conceito de coisa julgada, ao passo que nas próximas enfrentarei os limites da coisa julgada.

1) Conceito de coisa julgada no NCPC

O que se verifica na redação do art. 502 do NCPC é a maior aproximação do conceito de coisa julgada do Código com a definição teórica formulada pelo autor italiano Enrico Liebman, na 1ª metade do século XX.

Em relação ao Código anterior, há três alterações. Nesse sentido, vale comparar os dois artigos:

(i) CPC/1973, Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

(ii) CPC/2015, Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridadeque torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

Analisemos cada uma das alterações separadamente.

2) Alteração de “eficácia” por “autoridade”

A primeira modificação é a troca da palavra “eficácia” por “autoridade”. A justifica teórica para isso está, como já exposto acima, na busca pela aproximação da definição legal de coisa julgada ao conceito elaborado por Liebman.

O termo agora utilizado (autoridade) encontra-se no nome da obra de Liebman em que ele desenvolveu sua teoria quanto à coisa julgada5.

Porém, a maior parte da doutrina e jurisprudência já afirmavam que o conceito de Liebman era o prevalecente no Brasil.
Assim, essa alteração legislativa em verdade não modifica o que já dizia a respeito da coisa julgada no país. Apenas, frise-se, aproxima o texto legislativo ao conceito que já era majoritariamente aceito6.

3) Alteração de “sentença” por “decisão de mérito”

Essa é a modificação mais relevante trazida pelo NCPC.

Qual decisão judicial pode ser coberta pela coisa julgada?

No CPC/1973, havia menção apenas a sentença.

No NCPC, de forma mais ampla, fala-se em decisão judicial que aprecie o mérito – portanto, estão inseridos os seguintes atos judiciais:

– decisão interlocutória,
– sentença,
– decisão monocrática de relator,
– acórdão.

A alteração se justifica.

Em primeiro lugar, pois de fato não é a apenas a sentença que é passível de ser coberta pela coisa julgada (mesmo à luz do Código anterior era pacífico que também acórdão e decisão monocrática final de relator eram protegidas pela coisa julgada).

Além disso, a novidade se justifica porque o novo sistema admite expressamente decisões interlocutórias apreciando o mérito da causa e, portanto, passíveis de ser cobertas pela coisa julgada. Como exemplo, o julgamento antecipado parcial do mérito (NCPC, art. 356).

Diante disso, mais que a forma (sentença ou interlocutória), o relevante é verificar o conteúdo (decisão de mérito final), para fins de verificação da ocorrência da coisa julgada. E isso traz outras consequências, como por exemplo no tocante ao cabimento da ação rescisória.

4) Exclusão da menção a “recurso ordinário ou extraordinário”

A última alteração no conceito de coisa julgada é a supressão da menção a recurso “ordinário ou extraordinário”.

Havendo a interposição de recurso (qualquer que seja o recurso, para tribunais intermediários ou tribunais superiores), é certo não se verifica o trânsito em julgado e, portanto, não há coisa julgada.

Logo, a supressão não traz qualquer alteração relevante, mas deixa mais simples a definição legal de coisa julgada. Assim, justificada a alteração.

5) Oportunidade perdida: distinção entre imutabilidade e indiscutibilidade da decisão

Do exposto nos tópicos anteriores, é possível se falar em avanço, especialmente considerando os itens 3 e 4.

Assim, qual seria a oportunidade perdida?

Uma das questões mais polêmicas relativas à coisa julgada – tanto na doutrina quanto na jurisprudência – é a distinção entre imutabilidade e indiscutibilidade.

E não se trata de assunto apenas teórico; muito ao contrário, existem relevantes questões práticas decorrentes dessa distinção, existindo diversos problemas que chegam aos nossos tribunais exatamente por força desses conceitos.

De forma simplificada[7], a coisa julgada pode ser definida como a imutabilidade e indiscutibilidade da decisão, em virtude de seu trânsito em julgado.

É regra básica de hermenêutica que a lei não tem palavras inúteis. Logo, imutabilidade e indiscutibilidade não são sinônimos. Mas, qual a diferença entre essas duas características da decisão? Esse, no meu entender, é o ponto central relativo à coisa julgada.

O CPC/1973 não dizia. E segue o NCPC sem dizer. Assim, há espaço para que as divergências prossigam.

A questão foi muito bem enfrentada pelo Prof. Botelho de Mesquita[8]– sendo que tive a honra de ser orientado por ele em meu mestrado em processo.

Explica o autor que a imutabilidade é a impossibilidade de rediscussão da lide já julgada, o que se dá com a proibição de propositura de ação idêntica àquela já decidida anteriormente. Este é o aspecto negativo da coisa julgada (e, seguramente, o mais conhecido e aplicado no cotidiano forense).

Assim, diante de duas demandas idênticas (ou seja, quando se tem a tríplice identidade: mesmas partes, causa de pedir e pedido –art. 337, § 2º), se a primeira já tiver sido julgada e tiver terminado (com o trânsito em julgado), a segunda será extinta, sem mérito (art. 485, V). Se ambas estiverem tramitando ao mesmo tempo, haverá a extinção pela litispendência (art. art. 337, § 3º).

Já a indiscutibilidade tem o condão de fazer com que, em futuros processos (diferentes do anterior, pois se fossem idênticos, a questão seria resolvida pela imutabilidade), a conclusão a que anteriormente se chegou seja observada e respeitada.

Este é o aspecto positivo da coisa julgada, em que a segunda demanda não será extinta sem mérito (exatamente porque não é idêntica à primeira), mas o juiz do segundo processo deverá adotar como premissa a decisão da primeira demanda.

Na jurisprudência, verifica-se muito pouco a aplicação da indiscutibilidade, mas em verdade ela é muito mais frequente nos processos que a imutabilidade. Isso porque não é comum que haja em juízo demanda exatamente idênticas (ora, a repropositura de demanda idêntica basicamente se verifica quando há ignorância acerca da demanda anterior ou má-fé), que acarretam a extinção sem mérito.

Portanto, muitas vezes, os Tribunais aplicam a imutabilidade quando a hipótese é de indiscutibilidade[9]. E, diante do silêncio legislativo do NCPC nesse particular, a tendência é que isso siga ocorrendo.

Logo, a janela de oportunidade que se teve para atuar nesse ponto na legislação, infelizmente, foi perdida… Assim, resta à doutrina e jurisprudência enfrentarem esse relevante tema.


[1] RT 416/9.

[2] Como, por exemplo, para o Professor Sérgio Luiz Monteiro Salles, um grande estudioso da coisa julgada no Brasil (Breviário Teórico e Prático de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 1993), de quem tive o privilégio de ser professor assistente.

3 A expressão de “ponto final” é utilizada por Adroaldo Furtado Fabrício, em belo artigo a respeito da coisa julgada (A coisa julgada nas ações de alimentos, RePro 62/9).

[4] À luz do CPC/1973 tratei do tema – em trabalho fruto do meu mestrado e doutorado – na obra Estudos sobre coisa julgada e controle de constitucionalidade (Forense, 2013) e, com base no NCPC, no Comentários ao Código de 2015: Processo de conhecimento e cumprimento de sentença (Método, 2016). Nesses dois trabalhos o assunto é enfrentado com maior profundidade.

[5] Eficácia e autoridade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1945, sendo que existem outras edições brasileiras.

[6] O Professor Tesheiner foi autor que bem explicou a questão. Para esse autor, apesar de o Código anterior não ter expressamente adotado a doutrina do mestre italiano, “(…) o certo é que a teoria de Liebman é dominante entre nós, não podendo, pois, ser ignorada” (TESHEINER, José Maria Rosa. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: RT, 2001. p. 72).

[7] Para aprofundamento, remete-se o leitor às obras mencionadas na nota de rodapé 4.

[8] Dentre outros escritos sobre o tema desse autor, recomenda-se o trabalho A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

[9] Para exemplificar, vale trazer julgado do STJ que bem reconhece a distinção entre imutabilidade e indiscutibilidade, apesar de não fazer menção expressa a tais termos: CIVIL E PROCESSO CIVIL. ATO ILÍCITO. COBRANÇA ABUSIVA. TRANSITO EM JULGADO DO ACÓRDÃO PROFERIDO EM AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA PELO RÉU. COISA JULGADA MATERIAL. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DO MÉRITO DA QUESTÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. (…) 2. O Tribunal de origem, que antes se manifestara sobre a ilicitude do protesto de cheque decorrente de cobrança de honorários médicos indevidos, com acórdão transitado em julgado, não pode rejulgar o mérito da controvérsia, porquanto acobertado pelo manto da coisa julgada. 3. É devida indenização por danos materiais, no equivalente ao dobro do indevidamente cobrado na ação anteriormente ajuizada pelo réu, e por danos morais, tendo em vista a ofensa a dignidade do autor em face da cobrança ilícita e do protesto indevido. 4. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido. (REsp 593154/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/03/2010, DJe 22/03/2010).


VEJA AQUI OUTROS TEXTOS DA SÉRIE CPC 2015

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