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O exercício do poder de polícia por particulares

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Thiago Marrara

Thiago Marrara

08/02/2018

O presente artigo aborda o poder de polícia e sua execução por particulares. Para tanto, parte de breves considerações sobre o conteúdo da atividade de polícia, como expressão da administração restritiva. Em seguida, examina a delegação dessa atividade a particulares e diferencia a delegação quanto ao conteúdo  e  ao  executor.  Trata  também  de  argumentos  favoráveis  e desfavoráveis à delegação e, ao final, examina o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no caso BHTRANS.

Parcerias, terceirização, multiplicação de formas de delegação de serviços econômicos e sociais, construção de modelos de associação de particulares  ao Estado, agencificação e regulação. Nenhum desses fenômenos técnico- jurídicos é exatamente novo. Porém, é inegável que eles se intensificaram no direito administrativo brasileiro desde meados da década de 1990.

As principais justificativas para tanto encontram-se fora do próprio direito. De um lado, pesa um fator administrativo, situado no plano operacional. A despeito de seu caráter profissional, impessoal e racional, a ação burocrática mostrou sinais de fraqueza e fracasso em inúmeros aspectos. Passou a exigir reformas, forjadas em um movimento internacional designado por New Public Management, conhecido no Brasil por gerencialismo. De outro lado, há um fator econômico. O Estado se tornou demasiadamente grande e custoso  e, na luta para seu “emagrecimento”, conduziram-se reformas no regime dos servidores públicos, incentivaram-se a privatização de empresas estatais e a delegação de serviços públicos, tanto econômicos como sociais e meramente administrativos, e forjaram-se novas táticas para deslocar a execução de tarefas públicas ao campo privado.

Conquanto as técnicas de delegação do exercício de poder de polícia estatal não fossem desconhecidas pelos especialistas e estranhas ao direito administrativo, nos últimos anos reacendeu-se a discussão acerca da possibilidade e dos limites dessa prática. No plano teórico, o tema vem sendo debatido ora como expressão do movimento de terceirização em sentido amplo,1 ora no contexto da delegação das ações administrativas, ora ao longo do exame do instituto do credenciamento.2

Em que medida certa empresa privada pode expedir um laudo de vistoria veicular ou licenciar, em nome dos departamentos oficiais de trânsito, a condução de veículos automotores por particulares? Poderia uma agência reguladora solicitar, a um particular, a elaboração de parecer técnico fundamental à expedição de registro de medicamento? Uma empresa estatal está autorizada a aplicar multas de trânsito? Faculdades particulares são competentes para, por ato de delegação do Ministério da Educação, reconhecer um diploma de graduação expedido no exterior? É lícito que sociedades de economia mista guinchem veículos particulares?

Ainda que formulados de maneira interrogativa, todos esses exemplos são reais. Há outros  tantos  que  ainda  não  foram  experimentados,  mas  são igualmente concebíveis para fins de ilustração do problema. Seria possível ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) delegar    a tarefa de aprovação de fusões a um particular? Ou, para ficar na mesma autarquia, poderia o Conselho transferir a uma empresa a condução da instrução e a expedição de parecer técnico conclusivo — tarefas que hoje são desempenhadas pela Superintendência Geral? O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Sustentáveis (Ibama) poderia transferir    a expedição de licenças, a aplicação de sanções, a elaboração de acordos de cessação de infrações ambientais ou suas tarefas de fiscalização a pessoas jurídicas privadas?

Há dúvidas variadas, incontáveis, mas o problema é um só. A teoria    do direito administrativo necessita esclarecer a validade da delegação de atividade de polícia administrativa a particulares, além de fixar-lhe os limites seja em relação ao delegatário, seja quanto ao conteúdo da ação.3 Na ausência de normativas claras, cumpre à doutrina, ademais, delinear as consequências jurídicas do exercício do poder de polícia por particulares e os controles que sobre ele incidem.

No intuito de contribuir com a discussão, mas sem a mínima pretensão de esgotar tema tão complexo e vasto, este artigo se inicia com uma sucinta descrição teórica da polícia administrativa, de seu conteúdo e de suas manifestações. Em seguida, aponta reflexões acerca da delegação de tarefas de polícia, elencando de modo apartado argumentos favoráveis e contrários. Com base na referida listagem argumentativa, ruma para a doutrina pátria com o objetivo de extrair um posicionamento majoritário sobre o assunto. Enfim, entra no campo jurisprudencial para examinar o polêmico acórdão proferido no REsp no 817.534/MG e esclarecer os problemas dos motivos utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) in casu.

O poder  de  polícia,  conhecido  como  police  administrative  na  França4  e como police power nos Estados Unidos,5 constitui tema clássico do direito administrativo, mas, ainda assim, prenhe de questões irresolutas.

Diante de um Estado tão extenso, complexo e imiscuído nos mais diferentes espaços sociais e econômicos, a definição do poder de polícia talvez consista em uma das mais dificultosas tarefas da teoria do direito administrativo contemporâneo, como registrou Caio Tácito há algumas décadas.6 Entretanto, tal constatação não levou o jurista fluminense a se furtar do desafio teórico. Delineou a polícia como

o conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais. Essa faculdade administrativa não violenta o princípio da legalidade, porque é da própria essência constitucional das garantias do indivíduo a supremacia dos interesses da coletividade. Não há direito público subjetivo absoluto no Estado moderno. Todos se submetem com maior ou menor intensidade à disciplina do interesse público, seja em sua formação ou em seu exercício.7

Anos mais tarde, Celso Antonio Bandeira de Mello prelecionou que a função de polícia objetiva, inversamente ao serviço público, “a restringir, limitar, condicionar, as possibilidades de atuação livre das pessoas, fiscalizá- las e penalizar os comportamentos infracionais, a fim de tornar exequível um convívio social ordenado”.8  Trata-se, em essência, de

ação administrativa de efetuar os condicionamentos legalmente previstos ao exercício da liberdade e da propriedade das pessoas a fim de compatibilizá-lo com o bem-estar social. Compreende-se, então, no bojo de tal atividade a prática de atos preventivos (como autorizações, licenças), fiscalizadores (como inspeções, vistorias, exames) e repressivos (multas, embargos, interdição de atividades, apreensões).9

Embora elaboradas em momentos distintos, das duas definições e de tantas outras que o tempo e o espaço não permitiriam transcrever aqui, extraem-se elementos fundamentais do poder de polícia.

A uma, consiste referida tarefa administrativa em ações restritivas contrapostas ao que os alemães chamam de atividades prestativas, como o serviço público e o fomento. Isso significa que o poder de polícia representa constrangimentos ao exercício da liberdade ou da propriedade privada daqueles que estão submetidos à soberania estatal, ainda que não sejam nacionais. No entanto, registre-se que o caráter restritivo por si só não é sufi- ciente para delimitar a polícia em relação a outros poderes administrativos, como o disciplinar. A polícia não é qualquer poder restritivo, mas sim o poder extroverso, que se estende de dentro da entidade em direção à sociedade, enquanto o poder disciplinar, igualmente restritivo, mantém-se nos limites de cada entidade administrativa e serve a fins de organização interna e de promoção do bom funcionamento institucional.

Afora o aspecto material, pelo qual a polícia consiste em ação executória, o conceito ainda abrange um sentido normativo, o qual designa o conjunto de normas restritivas e também marcadas pelo efeito extroverso, bem como um sentido organizacional, que talvez seja o mais vulgar. Por essa perspectiva, a polícia desponta como indicativo das entidades e órgãos que executam a ação restritiva do exercício da liberdade e da propriedade privada. Em síntese, à polícia executória (sentido material) soma-se a polícia em sentido normativo e em sentido organizacional.

A duas, como toda ação estatal, a ação de polícia se sustenta sobre interesses públicos primários. Ressalte-se o plural do substantivo. Não há um interesse público, mágico, genérico, obscuro e que tudo  justifica.  Muito  pelo contrário. A Constituição explicitamente destaca inúmeros objetivos ao Estado, entre os quais a defesa do consumidor, a proteção do ambiente, a garantia da livre-iniciativa e da livre concorrência, a promoção da saúde e da educação. Não fosse isso, há outros valores e objetivos gerais implícitos no ordenamento. Todos eles representam interesses públicos primários. Protegê- los é a tarefa maior do Estado, em última instância, porque todo interesse público se associa a um direito de natureza individual, coletiva ou difusa.10 Em alguns ordenamentos, como o francês, geralmente se faz a distinção entre polícia geral e polícia especial de acordo com o tipo e a abrangência dos interesses protegidos e dos direitos limitados.11

A presença do interesse público é o ponto fundamental a justificar a polícia administrativa como poder restritivo e novamente distingui-lo de poderes semelhantes, como o disciplinar. A polícia consiste em atividade restritiva que limita direitos para garantir direitos! Cronologicamente, passa-se do interesse público primário devidamente identificado, que justifica uma medida restritiva concreta de limitação de direitos para, como resultado indireto, ocasionar a promoção de direitos. A polícia instrumentaliza a restrição de uns no curto prazo em benefício de muitos em uma segunda fase — mais ou menos distante do momento em que a restrição ocorreu. Daí por que a polícia sem interesse público é abuso ou arbítrio. Polícia sem benefício a direitos é restrição desnecessária.

Além dos dois aspectos fundamentais mencionados, o caráter restritivo da atividade de polícia, seus fundamentos e finalidades maiores, há que traçar breves considerações sobre sua operacionalização, estratégias e meios. Ao fazê- lo, circunscreve-se a análise do tema aos aspectos normativos e, sobretudo, materiais, deixando-se de lado a polícia em termos organizacionais.

No plano operacional, a polícia administrativa abrange três tipos de estratégias, todas elas vinculadas à tutela de interesses públicos primários:

1) As preventivas são aquelas que orientam o comportamento dos particulares no intuito de evitar lesões a interesses públicos primários determinados e, com isso, resguardar direitos. A prática de atos liberatórios, como a licença ambiental e a urbanística ou as autorizações para realização de fusão empresarial, exemplifica a faceta preventiva. Também as medidas administrativas cautelares cumprem função preventiva em inúmeros casos.

2) As atividades fiscalizatórias, de outra parte, englobam um conjunto de medidas de busca de informação a respeito do cumprimento da legislação administrativa e servem a fornecer à administração dados necessários para combater infrações a normas de polícia por meio de medidas cautelares ou processos administrativos repressivos.

3) As atividades repressivas abrangem a criação de infrações e a imposição de medidas punitivas (sanções) contra aqueles que agem em violação das normas administrativas de polícia. Enquadra-se igualmente na função repressiva o uso de alguns acordos, integrativos e substitutivos, no exercício da polícia, como os compromissos administrativos de cessação de infração, existentes, por exemplo, no direito ambiental e no direito da concorrência. Não se olvide, ainda, que os instrumentos repressivos muitas vezes acabam deflagrando um efeito preventivo indireto de ordem geral ou

Prevenção, fiscalização e repressão são estratégias estatais gerais empregadas na polícia administrativa para, como dito, limitar o exercício da propriedade ou da liberdade. Em um segundo momento, essas estratégias concretizam interesses públicos e direitos fundamentais específicos. Mas a teoria não acaba aí.

A construção e a operacionalização das estratégias dependem naturalmente de ações concretas do poder público. Nesse cenário, ganham relevância os meios de ação. Valendo-se da classificação dos atos da administração consagrada no direito brasileiro, é possível sustentar que a polícia depende de:

1) Atos normativos, ou melhor, normas legais e administrativas que estruturam o poder de polícia, preveem infrações, sanções, cautelares, atos liberatórios etc. Por força da reserva legal imposta constitucionalmente, não se deve impor restrições positivas ou negativas ao exercício de direitos sem lei que assim autorize. Disso decorre que as normas administrativas assumem um caráter regula- mentar no campo da polícia. A normatização pelo poder público é muito  mais  limitada  nesse  contexto  do  que  em  relação  ao poder disciplinar ou às prestativas, como serviços públicos e fomento.

2) Atos administrativos em sentido estrito, entendidos como provimentos administrativos que viabilizam, modificam, condicionam ou impedem o exercício de direitos, incluindo licenças, autorizações, credenciamentos, sanções, mandamentos cautelares, os quais se praticam por escrito, por meio oral ou gestual, bem como mediante atos mecânicos, elétricos ou digitais intermediados por máquinas, como os sinais de trânsito etc.

3) Atos técnicos ou opinativos, incluindo laudos, pareceres, perícias e outros atos informativos necessários à  seleção,  preparação  e  elaboração  de medidas preventivas ou restritivas. Exemplos dessa categoria se vislumbram na vistoria veicular, nos pareceres econômicos sobre operações concorrenciais, nos laudos técnicos sobre medicamentos pendentes de registro etc.

4) Atos materiais ou de mera execução, incluindo a remoção ou a destruição de objetos, a entrega e a coleta de documentos, a filmagem de eventos, a gravação de dados, as escutas ambientais, as inspeções etc. Uma vez que tais atos não influenciam de modo direto o exercício de direitos, mas tão somente preparam atos opinativos e atos administrativos, são eles considerados “atividades meio”, acessórias ou de suporte para a função restritiva de polícia.

5) E também os acordos administrativos, dado que o movimento de consensualização vem enriquecendo o exercício da polícia com meios de negociação e de ajuste de obrigações recíprocas.12

É preciso evitar a confusão entre as facetas da polícia (organizacional, material ou normativa), as estratégias de polícia (repressiva, fiscalizatória   ou preventiva) e os meios que a viabilizam (atos materiais, normativos, opinativos, administrativos e acordos). Manter a tripla distinção em mente é fundamental para o debate acerca da delegação de tarefas de polícia. Afinal, de modo geral, a delegação recai não sobre a estratégia policial, mas sim sobre os meios de execução, que ora deflagram efeitos jurídicos, ora efeitos meramente materiais, incapazes de influenciar direitos.

As estratégias de polícia devem ser sempre públicas em virtude da necessidade de se legitimá-las democraticamente. Elas são dependentes de uma escolha do povo por meio de seus representantes, expressa em políticas e assentada em normas legais. Reitere-se: a escolha das estratégias demanda alta legitimação e isso exige constante presença estatal, viabilizada pela manifestação do Legislativo. Dúvidas restam sobre os cincos meios apontados e que estão nas mãos do Executivo, a saber: os atos normativos, opinativos, administrativos e materiais, bem como os acordos administrativos de polícia. Em que medida eles são delegáveis a pessoas físicas e a pessoas jurídicas privadas, estatais ou não?

Discutir a delegação de tarefas administrativas impõe examinar competências e seu exercício. Já em 1952, Caio Tácito tratou da delegação   de ações de polícia e posicionou-se claramente sobre o tema ao aduzir que     a competência pertence à esfera federal, estadual ou municipal, de modo concorrente ou exclusivo conforme a matéria. Nas hipóteses legais, “poderá, ainda, ser delegada ou transferida. Dependerá sempre, no entanto, de determinação legal específica ou genérica, não podendo ser presumida ou deduzida por analogia    ou extensão”.13 O trecho revela que Tácito reconheceu a possibilidade da delegação, mas não buscou detalhar quais meios policiais ela abrangeria e quem seria o delegatário. Insistiu na existência de previsão legal, específica ou genérica, como condição essencial para se retirar a execução das mãos do Estado e lançá-la ao particular.

Há dois pontos que exigem aprofundamento.

Em primeiro lugar, as atividades de polícia não são transferidas em bloco aos particulares. Defender ou não a delegação de maneira genérica parece questionável. A experiência brasileira revela transferência de atos específicos, sobretudo os de natureza fiscalizatória, técnica e material.

Ao se fazer a delegação de ações específicas, desponta o debate acerca do que venha a ser atividades de suporte (meio) e atividades principais (fins). Ocorre que nem sempre é clara ou convincente a separação. O direito positivo sequer a trata de forma explícita e geral. Fiscalizar é atividade  meio ou fim? Sancionar ou expedir uma licença são ações de suporte ou principais? Contribuir com a instrução em processos administrativos baseados no poder de polícia é atividade meio ou fim? Para se responder a tais perguntas, há que se volver às distinções básicas.

Sem querer aprofundar a discussão, certamente merecedora de uma tese, parece cabível sustentar que as atividades meio correspondem ao suporte a medidas que efetivamente atingem a esfera de direitos do administrado. Na qualidade de ações de suporte, não são elas aptas a diretamente viabilizar, modificar ou obstar o exercício de direitos. Delas não resultam efeitos jurídicos diretos. É o que se vislumbra em relação aos atos materiais, que não se confundem com os atos administrativos que o impõem. O mesmo vale para os atos opinativos que, por si só, não produzem efeitos contra o cidadão, já que dependem de ato administrativo ulterior. Destarte, atos materiais (como a execução da fiscalização) configuram meios, assim como os atos opinativos. Os atos liberatórios, os atos sancionatórios, as medidas cautelares e os atos normativos, bem como certas decisões de fiscalização configuram atividades fins.

A partir dessa separação, ao se falar de delegação do poder de polícia, há que se diferenciar: a) a delegação de atividades fins, isto é, de atividades que diretamente afetam direitos e b) a delegação de atividades meio, que apenas indiretamente afetam direitos. Para fins de delegação, uma diferenciação quanto ao tipo de estratégia policial (preventiva, repressiva ou fiscalizatória) parece se colocar em segundo plano. Isso porque em todas elas existem atividades fins e atividades meios.

Tome-se o exemplo da fiscalização. A determinação de quem será fiscalizado e como isso ocorrerá exige um juízo discricionário que deve ser rea- lizado pelo Estado. Nesse particular, a fiscalização envolve atos com efeitos jurídicos sobre terceiros (atividades fins, portanto). Diferentemente, uma vez fixadas as determinações pelo Estado, a execução da fiscalização consiste em pura execução (ou atividade de suporte). Apesar de simples, esse exemplo revela que atividades principais e acessórias permeiam qualquer uma das três estratégias de polícia, daí novamente por que se insistiu na distinção do plano estratégico e do plano operacional.

O detalhamento da delegação da polícia quanto à atividade não esgota toda a complexidade do problema. Valorizando-se o critério subjetivo, cabe olhar para os sujeitos aptos a receberem a incumbência de executar as ações policiais em nome do Estado. Por conta desse critério, é possível identificar quatro situações:

a) A delegação a pessoas físicas, como capitães de navios e comandantes de aeronaves etc.;14

b) A delegação a pessoas jurídicas de direito privado sem finalidade lucrativa e sem atuação econômica, como as associações de moradores;

c) A delegação a pessoas jurídicas de direito privado, porém estatais, como as sociedades de economia mista ou empresas públicas. Aqui, existe finalidade lucrativa, mas o ente privado pode ser dirigido de acordo com interesses públicos, dado que o Estado exerce poder de controle na sociedade;

d) A delegação a pessoas jurídicas de direito privado não estatais e com finalidades lucrativas, como uma empresa sem qualquer participação estatal ou com participação meramente minoritária, sem influência relevante sobre o comando da

O reconhecimento dessa variabilidade de hipóteses de delegação do poder de polícia em razão dos tipos de delegatário e dos meios transferidos revela- se fundamental para a compreensão e a crítica dos argumentos favoráveis     e contrários à delegação. Afinal, nem todos os  argumentos  empregados  para atacar ou defender a delegação são compatíveis com todas as diversas situações concebidas. Mostra-se especialmente relevante, nesse contexto, afastar-se de generalizações perigosas.

Incontáveis são os argumentos favoráveis e contrários à delegação de atividades estatais restritivas, incluindo a polícia administrativa, a particulares. Nas próximas linhas, destacam-se apenas alguns dos principais argumentos a partir de uma reflexão autônoma e sem pretender associá-los a um ou outro posicionamento doutrinário a respeito do tema.

A favor da delegação a entes privados pesariam:

1) A necessidade de suprir deficiências funcionais da administração pública mediante colaborações pontuais de Ao delegar, a administração ganharia mais capacidade para responder a alterações de demanda de maneira célere ou para atuar em contextos em que a presença da autoridade pública se mostraria inviável, inconveniente ou altamente custosa;

2) A presunção de que os particulares seriam capazes de agir com mais eficiência e economicidade, de modo que a delegação ocasionaria benefício no tocante ao uso racional de recursos públicos e, por conseguinte, benefícios ao próprio povo, como grupo que sustenta o Estado por meio do trabalho;

3) A flexibilidade do regime jurídico aplicado aos particulares, por exemplo, em matéria de contratação de recursos humanos e de obras, bens e serviços, o que lhes permitiria elevada adaptabilidade às necessidades da função administrativa e maior rapidez para absorver avanços tecnológicos;

4) A distinção entre atividades meios e atividades fins de polícia, a partir da qual seria possível afirmar que o exercício das ações de caráter acessório por particulares representaria baixo risco aos interesses públicos primários, já que as decisões estratégicas restariam mantidas na esfera estatal.

Em sentido contrário, os argumentos imagináveis não são menos numerosos. Entre eles, vale mencionar:

1) O de que a polícia se inseriria em um campo de atividades típicas e exclusivas do Estado,15 dado que envolveria autoridade e poder de restrição da liberdade e da propriedade, não se  igualando a outras funções administrativas que, por não terem caráter predominantemente restritivo, se sujeitariam à execução indireta (quando monopolizadas) e, em alguns casos, à livre-iniciativa;

2) O de que a execução de polícia por entidades com fins lucrativos, como empresas estatais ou empresas particulares, seria contrária a interesses públicos primários em virtude do risco de se manipular a ação restritiva, sobretudo a sancionatória, no intuito de se aumentar o lucro;

3) O regime mais flexível dos trabalhadores privados, o que não lhes garantiria a autonomia necessária para aplicar a lei de modo impessoal, pois restariam sujeitos a maiores pressões por parte do empregador;16

4) A quebra do princípio da isonomia ou da igualdade primária dos membros do corpo social, na medida em que os particulares no exer- cício de atividade de polícia estariam em situação privilegiada em relação ao resto da sociedade. Por conta disso, o poder de polícia somente poderia ser manejado por um corpo neutro, que age com base na impessoalidade em relação a todos, ou seja, o Estado;

5) A dúvida quanto à pressuposição de que o exercício da polícia por particulares seria mais eficiente,17 já que tal asserção seria de cunho extrajurídico e dependeria de comprovação empírica em cada caso; e

6) A ausência de autorizativo constitucional para o exercício de atividade de polícia pelo Estado, diferentemente do que se vislumbra em relação ao serviço público, cuja delegação aos particulares estaria prevista, por exemplo, no art. 175 da Constituição da República.

Favoráveis ou contrários, os argumentos aqui listados de modo genérico nem sempre levam em conta toda a complexidade da delegação da polícia aos particulares. Retomando-se o quanto exposto antes, ao se cruzar o critério material (quanto à ação de polícia) com o critério subjetivo (quanto ao delegatário da ação), chega-se facilmente à conclusão de que muitos argumentos não valem para todas as hipóteses de delegação. Por conseguinte, não logram sustentar respostas bipolares (sim ou não) acerca do debate. A multiplicidade de situações reais parece impor, ao fim e ao cabo, relativizações quanto à delegabilidade do poder de polícia a particulares.

A doutrina, ao tratar da recente problemática, segue o caminho da diferenciação de hipóteses, buscando-se afastar de afirmações peremptórias  e genéricas sobre o tema. Isso é o que se extrai de manifestações de grandes especialistas da disciplina da administração pública.

Ao examinar o problema em questão, Celso Antonio Bandeira de Mello aparta atos jurídicos e atos materiais. Os jurídicos, que expressam a autoridade do Estado, não estariam sujeitos a delegação, salvo em situações muito excepcionais (como a dos capitães de navio). Em contraste, os atos materiais ou de execução, e que geralmente precedem os atos jurídicos, seriam passíveis de delegação propriamente dita ou de execução por particulares a partir de um contrato de prestação de serviços. Inexiste, aqui, vínculo jurídico direto entre o executor e os administrados. Em verdade, o vínculo se estabelece com o Estado, o qual remunera o prestador de serviço por suas atividades   de suporte. Ademais, Bandeira de Mello aceita a prática, por particular, de “ato material sucessivo a ato jurídico de polícia”, mas o limita a restrições da propriedade, parecendo-lhe ilegal a execução contra o exercício da liberdade dos administrados. Exemplifica essa possibilidade pela execução de demolição ou implosão de edifícios por particulares.18

Posicionamento semelhante é o defendido por Adilson Abreu Dallari em texto clássico a respeito da figura do credenciamento. Para ele, os atos jurídicos de polícia não se submetem a delegação a particulares ou “mesmo entidades  governamentais  de  personalidade  jurídica  de  direito  privado”.

Somente os atos técnicos instrumentais ao exercício da polícia aceitariam delegação, o que seria viabilizado mediante o instituto do credenciamento. No entanto, Dallari parece defender ideia distinta à de Bandeira de Mello no tocante à remuneração. Ao exercer a atividade técnica ou instrumental em nome do Estado, o particular poderia ser remunerado pelo poder público que o contratou ou pelo administrado, isto é, pelo “particular diretamente interessado na obtenção da situação jurídica para a qual o trabalho executado é meio, instrumento ou ônus a ser suportado”.19

De maneira semelhante se manifesta Marçal Justen Filho, para quem      o monopólio estatal da violência no estado democrático de direito “não significa vedação a que algumas atividades materiais acessórias ou conexas ao exercício do poder de polícia sejam transferidas ao exercício de particulares”.20 Subjacente a esse posicionamento se encontra a diferenciação entre ações de cunho jurídico e ações meramente materiais ou executórias. Aliás, de acordo com os três posicionamentos aqui empregados para fins de ilustração da doutrina brasileira, eis a chave para se compreender o limite de delegação.  Se há ato que deflagra efeito jurídico, então o exercício da polícia resta sob exclusividade do Estado. No entanto, uma vez que o ato se mostre apenas material, nada impedirá seu exercício por terceiros.

Ressalte-se apenas que em nenhum dos posicionamentos examinados se encontra preocupação em diferenciar a conclusão teórica de acordo com a figura do delegatário, o que leva a crer que, para a doutrina predominante,   o que realmente importa é tão somente a natureza da ação delegada e não   as características do executor — embora elas possam, como demonstrado, influenciar os argumentos empregados para se avaliar a conveniência e oportunidade da delegação.

Conquanto a diferenciação entre atos de efeito jurídico e atos de efeito material tenha-se consagrado na doutrina, ainda não se nota sua absorção pelos Tribunais Superiores. Isso se constata em um dos casos que mais rendeu debates acerca da delegação de poder de polícia a particulares (no caso, uma pessoa jurídica estatal de direito privado).

Trata-se de situação abordada no Recurso Especial no 817.534-MG, julgado pelo STJ em 2009. O recurso foi interposto pelo Ministério Público estadual contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o qual, em poucas palavras, aceitou a possibilidade de delegação de atos fiscalizatórios  e sancionatórios, de titularidade do Estado e prevista no Código de Trânsito Brasileiro, a sociedade de economia mista estadual, a BHTRANS.21

A decisão do TJ mineiro foi, porém, alterada em parte pelo STJ. De acordo com o voto do ministro relator, Mauro Campbell Marques, somente atos relativos a consentimento e a fiscalização sujeitam-se a delegação, pois os “referentes a legislação e sanção derivam do poder de coerção do poder público”. No que se refere aos atos sancionatórios, “o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro — aplicação de multas para aumentar a arrecadação”. Em seu voto-vista, o ministro Herman Benjamin aduziu que a BHTRANS foi criada para explorar empreendimentos econômicos, mas não considera que o “trânsito de uma metrópole” possa ser incluído no conceito. Ainda assim, ao final e por votação unânime, o STJ entendeu que apenas os “atos de consentimento e fiscalização podem ser delegados” a particular. Na prática, isso significa que o poder    de polícia foi considerado parcialmente delegável, pois o Tribunal partiu    da premissa de que as ações de consentimento e de fiscalização se somam a outras duas atividades de polícia: a legislação e o sancionamento.

A história não se encerrou no julgamento do recurso especial. A BHTRANS opôs embargos de declaração em face do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Nessa ocasião, a empresa sustentou os seguintes vícios no acórdão originário:

(i) omissão acerca da regra de competência, a qual imputa o processamento e o enfrentamento da presente causa ao Supremo Tribunal Federal (incompatibilidade entre lei local em face de lei federal); (ii) omissão acerca das regras constitucionais de balizamento da matéria de fundo (possibilidade de sociedade de economia mista exercer a atividade de controle de trânsito ante a inexistência de vedação constitucional no ponto); e (iii) contradição existente entre o provimento final do acórdão (provimento integral do especial) e sua fundamentação, na qual restou afirmada a possibilidade de a embargante exercer atos relativos a fiscalização.

Ao analisá-lo, o STJ entendeu pela inexistência de omissões no acórdão, porém reconheceu a presença de contradições.22 Nesse particular, o relator apontou que “tanto no voto condutor, como no voto-vista do Min. Herman Benjamin ficou claro que as atividades de consentimento e fiscalização podem ser delegadas, pois compatíveis com a personalidade privada das sociedades de economia mista”. Entretanto, como o MP buscava obstar apenas o exercício de atividade de policiamento e autuação de infrações pela BHTRANS, “o provimento integral do especial poderia dar a entender que  os atos fiscalizatórios não podiam ser desempenhados pela parte recorrida- embargante”. Por resultado, fez-se imprescindível a reforma do provimento final para permitir atos de fiscalização (policiamento) pela empresa estatal mineira, mas não a imposição de sanções. Afastou-se assim a decisão originária de provimento integral do recurso especial, substituindo-a por decisão de provimento parcial.

Mais tarde, o assunto rumou para o Supremo Tribunal Federal (STF)  por meio de recurso extraordinário ao qual se reconheceu repercussão geral conforme decisão exarada pelo ministro Luiz Fux em 22 de março de 2012 (ARE no 662.186), mas ainda se aguarda julgamento. No entanto, vale lembrar que o STF já se posicionou sobre assuntos semelhantes.

No julgamento da ADin no 1.717, relatada pelo ministro Sydney Sanches, a Corte considerou ser ilícita a delegação de atividade privativa do Estado a particulares e isso abarca tanto o poder de tributar quanto o poder de polícia (embora ali restrito ao controle de atividades profissionais). Com isso, não se aceitou que o poder fiscalizatório relativo ao exercício das profissões fosse executado por particulares. Nos termos de trecho da ementa, a interpre- tação conjugada de dispositivos constitucionais (arts. 5o, XIII, art. 22, XVI e 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175) “leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica do Estado, que abrange até poder de polícia (…).23

Já no julgamento da cautelar da ADin no 2.310, o Supremo examinou a lei que trata dos agentes públicos de agências reguladoras (Lei no 9.985/2000), e ali se posicionou contrário à contratação de servidores em regime celetista. De acordo com o ministro Marco Aurélio, relator,

prescindir, no caso, da ocupação de cargos públicos, com os direitos    e garantias a eles inerentes, é adotar flexibilidade incompatível com     a natureza dos serviços a serem prestados, igualizando os servidores das agências a prestadores de serviços subalternos, dos quais não se exige, até mesmo, escolaridade maior, como são serventes, artífices, mecanógrafos, entre outros. Atente-se para as espécies. Está-se diante de atividade na qual o poder de fiscalização, o poder de polícia fazem- se com envergadura ímpar, exigindo, por isso mesmo, que aquele que a desempenhe sinta-se seguro, atue sem receios outros, e isso pressupõe a ocupação de cargo público (…). Em suma, não se coaduna com os objetivos precípuos das agências reguladoras, verdadeiras autarquias, embora de caráter especial, a flexibilidade inerente aos empregos públicos, impondo-se a adoção da regra que é revelada pelo regime  de cargo público, tal como ocorre em relação a outras atividades fiscalizadoras — fiscais do trabalho, de renda, servidores do Banco Central, dos Tribunais de Contas etc.

O caso da BHTRANS ainda não se encerrou. Sem prejuízo, a doutrina especializada passou-lhe a conferir  especial  atenção  e  não  foram  poucas as críticas movidas contra o posicionamento do STJ, tal como ilustram as considerações de Dora de Oliveira Ramos.

Conforme a percepção da administrativista, o entendimento adotado pelo Tribunal não se afigura adequado, pois a “segmentação do poder de polícia” adotada no tratamento do tema (i.e., legislação, consentimento, fiscalização e sanção) seria válida apenas para fins pedagógicos. Nas palavras da procuradora,

o poder de império, inerente à atividade de polícia, está presente em cada um dos segmentos apontados  (…)  a  atividade  de  certificação do preenchimento dos requisitos legais para exercício do direito que culmina com a expedição de um alvará, bem como os atos necessários à fiscalização do comportamento dos administrados, também encerram, em maior ou menor grau, o exercício de atividade de império, em que o poder público exerce ato de soberania.24

Não interessa, para Dora Ramos, a divisão funcional das quatro atividades, mas sim a diferenciação entre atividades materiais acessórias de cada uma dessas fases e atividades propriamente jurídicas. Na linha do que aponta a doutrina predominante, as atividades acessórias aceitam delegação, mas não as atividades jurídicas.25

A crítica é impecável. Como se mostrou ao início deste artigo, as estratégias de polícia sob a ótica funcional não dizem nada quanto ao seu conteúdo e efeito jurídico. Por essa razão, mesmo quando se pensa no exercício de atividade fiscalizatória, naturalmente existem aí atos jurídicos e atos mera- mente materiais. Decidir o que, como e quando fiscalizar é estratégia que compete ao Estado e não ao particular, o qual pode, contudo, instalar radares, regulá-los e programá-los de acordo com os mandamentos do Estado e baseado em ato de delegação. Da mesma forma, a atividade de sancionamento é complexa e igualmente envolve atos preparatórios e atos jurídicos. Exemplo de ato preparatório do sancionamento são os pareceres jurídicos e laudos técnicos (atos opinativos) de órgãos públicos especializados, os quais podem ou não ser aceitos pela autoridade competente para deliberar sobre a sanção. Daí se entende que a falha da decisão do STJ consiste em confundir as estratégias de polícia com os diferentes tipos de ato de polícia. Não é a estratégia que determina os efeitos, mas sim o tipo de ato ou meio.

Agregue-se a isso outro argumento crítico pouco examinado no debate da matéria. Certas ações materiais mostram-se extremamente determinantes da ação jurídica de polícia. É o caso dos atos opinativos prévios, ou seja, pare- ceres e laudos juntados ao processo sancionador baseado no poder de polícia. Tamanha é a importância desses atos que sua prática justifica, em inúmeras situações, a criação de determinados órgãos públicos e, quando isso ocorre, entende-se que surge competência exclusiva, impossível de ser delegada sequer dentro do próprio Estado por expresso mandamento da Lei de Processo Administrativo Federal.26 Ainda que o ato seja meramente material, seu impacto jurídico é tão relevante que se pode considerá-lo indelegável quando constituir competência exclusiva de algum órgão público preexistente. Disso se conclui que o fato de se tratar de ato material não impede, em todas as situações, que se fale de indelegabilidade.

Em última instância, a delegação de ato de polícia, para ser válida, exige uma sequência de considerações. Em primeiro lugar, há que se verificar se a atividade em questão é normativa ou executória, dado que as competências normativas legislativas ou administrativas são indelegáveis a particulares por sua natureza e por mandamento legal, já que dependem de legitimação democrática, a qual não faltará quando realizadas por particulares. Em segundo lugar, é preciso verificar se a tarefa executória, a princípio delegável, envolve atos jurídicos concretos ou atos materiais, pois os primeiros consistem no exercício de autoridade que afeta a liberdade dos particulares, de modo que não devem ser delegados sob pena de quebra da indisponibilidade do interesse público e da isonomia dos membros do corpo social. Em terceiro lugar, mesmo em relação a atos executórios, é importante verificar se existe, no Estado, órgão com competência exclusiva para praticá-lo, o que ocorre, muito frequentemente, com atos de cunho opinativo (como laudos e pareceres), os quais influenciam significativamente a decisão jurídica final. Nesse caso, ainda que o ato seja acessório ou material, a competência estatal para realizá-lo não poderá ser modificada pela autoridade pública, impedindo-se que qualquer tipo de delegação a particulares, por ato ou contrato, seja levado a cabo.

O poder de polícia, no Estado contemporâneo, abarca estratégias de prevenção, repressão e fiscalização. Para realizá-las, o Estado lança mão de incontáveis meios de ação, desde atos normativos, passando por atos materiais diversos, incluindo atos opinativos, até os atos administrativos propriamente ditos.

Ao se debater a delegação de poder de polícia, é preciso ter em mente a complexidade dessa tarefa estatal, as razões de sua prática e os detalhes de sua operacionalização. Não bastasse isso, cumpre igualmente diferenciar as hipóteses de delegação de acordo com os sujeitos, já que o Estado estabelece parcerias (por diferentes meios jurídicos) com pessoas físicas, pessoas jurídicas privadas estatais, pessoas jurídicas privadas não estatais, com ou sem finalidade lucrativa. Embora a doutrina não tenha levado o critério subjetivo em conta, não há dúvidas de que ele influencia a análise dos impactos, dos riscos e dos benefícios esperados com a delegação de certa ação de polícia a particulares.

Muitos dos argumentos, contrários ou favoráveis à delegação, não raro são elaborados e lançados sem a consideração dessa complexidade. Veja-se que o STJ, ao julgar o caso da BHTRANS, também simplificou indevidamente um assunto que merecia maior detalhamento. A Corte realizou uma diferenciação rasa de atividades de legislação, consentimento, fiscalização e sanção, mas não se preocupou em debater com mais exatidão os componentes operacionais de cada tarefa. Se mantida pelo STF, essa simplificação, em última instância, acarretará graves problemas, pois viabilizará transferências inadequadas e irrefletidas de determinadas atividades policiais estratégicas a particulares em prejuízo de princípios como a isonomia, a legalidade, a indisponibilidade de interesses públicos primários e, em certos casos, a eficiência tão almejada pelo Estado e desejada pela sociedade. A delegação se compatibilizará com o ordenamento apenas na medida em que tais princípios sejam minimamente preservados e que a delegação, quando legal a priori, revele resultados benéficos significativos e que compensem a retirada da ação administrativa das mãos do Estado.


Referências

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço público e poder de polícia: concessão e delegação. In:   . Grandes temas de direito administrativo. São   Paulo: Malheiros, 2010.
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Paulo: Almedina, 2014.
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Estatais com poder de polícia: por que não? Revista de Direito Administrativo (RDA), v. 252, p. 97-118, 2009.
PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização e sanção: fundamentos e requisitos da delegação do exercício do poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
PETIT, Jacques. La police administrative. In: GONOD, Pascale; MELLERAY, Fabrice; YOLKA, Philippe. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 2011. t. II, p. 6-44.
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TÁCITO, Caio. O poder de polícia e seus limites. Revista de Direito Administrativo (RDA), v. 27, p. 1-11, 1952.
ZANCANER, Weida. O perfil jurídico do credenciamento. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago (Org.). Direito e administração pública: estudos em homenagem à Maria Sylvia Zanella di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 787-794.

* Artigo recebido em 7 de setembro de 2014 e aprovado em 21 de janeiro de 2015.
[1] Essa é a expressão empregada por Dora Maria de Oliveira Ramos. A seu ver, a terceirização aceita interpretação restrita ou alargada. Em sentido reduzido, “terceirizar é transferir a outrem a execução material de uma determinada atividade, que pode ou não se confundir com a atividade-fim do ente delegante, mas que, muitas vezes, está associada à sua atividade- meio (…) Num contexto alargado fala-se em terceirização para designar todas as formas pelas quais a Administração insere um ator privado na consecução de atividades públicas, aqui compreendendo as concessões de serviço público e as transferências a organizações sociais de atividades típicas de serviço público. Nesse conceito mais largo, além da execução material da atividade, o particular recebe poderes de gestor operacional, com alguma capacidade decisória, preservada ao Estado a gestão estratégica do serviço. O credenciamento de agentes privados para realização de vistorias veiculares insere-se nesse contexto mais amplo do termo” (RAMOS, Dora Maria de Oliveira. A terceirização em matéria de poder de polícia: o caso   das vistorias veiculares. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo et al. (Org.). Direito e administração pública: estudos em homenagem à Maria Sylvia Zanella di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 569).
[2] Registre-se apenas que o credenciamento não está necessariamente atrelado a atividades      de polícia. Weida Zancaner deixa isso bem claro. “Por inexistir um conceito normativo de credenciamento, nem um consenso ou estudos sistemáticos sobre o tema no direito brasileiro, a Administração Pública o utiliza para designar diferentes situações, como por exemplo: (1) o ato de credenciamento de estagiários para a Procuradoria do Estado; (2) o ato de credenciamento de médicos e clínicas para atendimento na área de Saúde para os servidores do Tribunal X ou para o atendimento da população do município Y; (3) o credenciamento de tradutores públicos para a prestação de serviços de tradução juramentada para o Supremo Tribunal Federal; (4) ou, ainda, o credenciamento de empresas para averiguação técnica de veículos para o Detran” (ZANCANER, Weida. O perfil jurídico do credenciamento. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago (Org.). Direito e administração pública: estudos em homenagem à Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013. p. 789). Sobre o tema, ver ainda o texto clássico de DALLARI, Adilson de Abreu. Credenciamento. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 5, 2006, edição digital. p. 13. Para o autor, “o credenciamento está precipuamente voltado para a execução, por particulares, dos serviços instrumentais necessários ao desenvolvimento das atividades de polícia administrativa”.
[3] Em detalhes sobre o tema e sobre a possibilidade de delegação, ver a tese de doutorado de PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização e sanção: fundamentos e requisitos   da delegação do exercício do poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013. passim.
[4] A tal respeito, ver, entre outros, PETIT, Jacques. La police administrative. In: GONOD, Pascale; MELLERAY, Fabrice; YOLKA, Philippe. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 2011.t. II, p. 5 e ss.
[5] Nos Estados Unidos, clássica é a obra, datada de 1904, de FREUND, Ernst. Police power. Chicago: The University of Chicaco Press, 1904. Disponível na íntegra em:<https://archive. org/stream/policepowerpubl01freugoog#page/n16/mode/2up>.
[6] TÁCITO, Caio. O poder de polícia e seus limites. Revista de Direito Administrativo (RDA), v. 27, p. 2, 1952.
[7] Ibid., p. 8.
[8] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço público e poder de polícia: concessão e delegação. In:         . Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 291.
[9] Ibid., p. 295.
[10] Parte-se aqui da premissa de que não existe uma incompatibilidade teórica entre interesses públicos e direitos fundamentais pelo simples fato de que proteger e concretizar direitos fundamentais também representa zelar por interesses públicos. Na prática da administração pública, as tensões possíveis ocorrem entre diferentes interesses públicos primários. Não existe, contudo, interesse primário descolado de algum tipo de direito ou interesse dos indivíduos que, em última instância, justificam e sustentam o Estado racional e democrático.
[11] Segundo Jacques Petit, em sentido geral, a polícia configura função administrativa de realização da ordem pública (ordre public), a qual corresponde “a um mínimo de condições que são consideradas como estritamente indispensáveis ao exercício de direitos e liberdades”. Em razão disso, a autoridade pública pode agir, ainda que sem base em texto legal, para tomar todas as medidas necessárias e proporcionais à sua proteção. As polícias especiais, de sua parte, buscam tutelar a ordem pública especial e se direcionam a uma categoria particular de pessoas (como estrangeiros), a atividades, situações ou locais específicos. Por isso, o padrão de legalidade aqui é mais rígido. Cabe ao legislador decidir previamente os modos de ação da polícia especial. Cf. Jacques Petit, La Police administrative, op. cit., p. 11-16.
[12] Sobre o assunto, há vasta produção bibliográfica já disponível. A esse respeito, ver, entre outros, KIRKBY, Mark Bobela-Mota. Contratos sobre o exercício de poderes públicos: o exercício da contratualização do poder administrativo de decisão unilateral. Coimbra: Coimbra, 2011.
[13] Caio Tácito, O poder de polícia e seus limites, op. cit., p. 11. Grifo nosso.
[14] O TRF da 1a Região já reconheceu explicitamente o poder de polícia de comandantes, inclusive para barrar o uso de arma por policial fora do serviço e que embarca em aeronave. É o que mostra a seguinte ementa do Habeas Corpus no 1999.01.00.106790-1/RO: “Penal. Processual penal. Habeas Corpus. Constrangimento ilegal. Comandante de aeronave. Crime de desacato e desobediência. Recusa justificada. Cumprimento de norma legal. Ausência de ilicitude. Ameaça configurada. Trancamento excepcional da ação penal por falta de justa causa. 1. Ao comandante, no âmbito da aeronave que conduz, cabe o exercício do poder de polícia. 2 Justificável a proibição, pelo comandante, de embarque de policiais portando armas (Decreto n. 2.222/1997), mormente não estando eles em diligência policial. 3. Ausência de justa causa. Ordem concedida para a ação penal”.
[15] Criticamente sobre essa afirmação, sustenta Mendonça que “(…) não existe, pelo menos em termos estritamente dogmáticos de direito público, uma ‘natureza das coisas’ estreme de dúvidas. Fundar uma inconstitucionalidade — é essa a qualificação técnica do argumento — na extensão essencialística das atribuições do Estado é torcer para que o interlocutor concorde com você. Dependendo da atividade, da época e do interlocutor, a taxa de concordância vai ser maior ou menor” (MENDONÇA, José Vicente Santos de. Estatais com poder de polícia: por que não? Revista de Direito Administrativo (RDA), v. 252, p. 101, 2009).
[16] Esse argumento é muito bem criticado por José Vicente Santos de Mendonça. Em síntese, sustenta ele que “(…) empregados públicos não estão essencialmente mais (ou menos) protegidos do que servidores, em especial diante de entendimentos doutrinários e juris- prudenciais que vedam a demissão imotivada. O que há é, de um lado, uma superavaliação das garantias do regime estatutário, e, de outro, uma subavaliação das garantias do regime do emprego privado tal como aplicado pela administração pública do século XXI. De resto,   a se admitir tal instabilidade do regime de emprego privado, haver-se-ia logicamente que reputá-lo inconstitucional quando aplicado a praticamente todas as atividades significativas da Administração Pública (…)” (José Vicente Santos de Mendonça, Estatais com poder de polícia: por que não?, op. cit., p. 110).
[17] Ao tratar da privatização do direito administrativo, Bernardo Strobel Guimarães tece oportunas considerações sobre a ilusão de que os meios particulares sempre sejam mais eficientes que os públicos. Em suas palavras: “Em si, a utilização de um regime com maiores notas de direito privado, não é boa ou ruim. É a efetiva capacidade de prestigiar de modo mais eficiente os objetivos da Administração que legitima a escolha por esse regime. Em estando ele disponível para a Administração (i.e. havendo autorização normativa para tanto), a opção em concreto deve ser feita a partir de uma análise que contraponha as vantagens e desvantagens de cada um dos modelos. Nada indica em abstrato que o regime privado é, por definição, melhor que o público. Haverá casos em que, mesmo diante da possibilidade de eleger uma forma de atuação privada, a Administração deverá optar pelos instrumentos públicos” (GUIMARÃES, Bernardo Strobel. Direito privado na administração pública brasileira atual: algumas perspectivas. In: MARRARA, Thiago. Direito administrativo: transformações e tendências. São Paulo: Almedina, 2014. p. 217-218).
[18] Celso Antônio Bandeira de Mello, Serviço público e poder de polícia, op. cit., p. 296.
[19] DALLARI, Adilson de Abreu. Credenciamento. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 5,  2006. p. 12 da edição digital.
[20] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 597.
[21] Eis a ementa do julgado do TJ/MG: “ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL — AÇÃO CIVIL PÚBLICA — BHTRANS — PODER DE POLÍCIA — FISCALIZAR O TRÂNSITO E IMPOR  SANÇÕES  —  COMPETÊNCIA  LEGISLATIVA  SUPLEMENTAR  —    VALIDADE —  MATÉRIA  DE  INTERESSE  LOCAL  QUE  PODE  SER  REGULAMENTADA        PELA MUNICIPALIDADE. A Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS), criada com o objetivo de gerenciar o trânsito local, tem competência para aplicar multa aos infratores de trânsito, nos termos do art. 24, do Código Nacional de Trânsito. Sendo o poder de polícia inerente à Administração Pública e recebendo o agente de trânsito delegação da autoridade competente para agir dentro dos limites da jurisdição do Município, extrai-se que este possui o poder-dever de aplicar as multas cabíveis ao ato infracional em concreto, sob pena de sua atuação, ao final, revelar-se inócua”.
[22] No tocante ao item i, o STJ esclareceu que o “o acórdão da origem apreciou apenas a tese jurídica acerca da possibilidade de delegação de poder de polícia para particulares com base em diversos dispositivos de lei local, lei federal e da própria CR/88, mas jamais entendeu que a lei específica de delegação (lei local) era válida em face de lei federal”. A isso agregou que “é de cotidiana percepção pelos magistrados que integram o STF e o STJ, que um provimento judicial de última instância adote, simultaneamente, argumentos de ordem constitucional e infraconstitucional”. Por isso, considerou ser possível “o manejo (autônomo e simultâneo)  de recurso especial e de recurso extraordinário, sem que se possa dizer que o julgamento do especial importa em usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal”. Na presença dos dois recursos, “o STJ aprecia a alegada ofensa à legislação infraconstitucional federal e   o STF aprecia as questões de sua competência”. Ademais, o STJ esclareceu que, no acórdão questionado, fixa-se o entendimento de que existe possibilidade de delegação do exercício  do poder de polícia para sociedades de economia mista com base nos artigos 22, 30 e 175 da Constituição da República e nos arts. 7o e 24 do Código de Trânsito. Apontou, ainda, que não se tratou de discutir validade de lei local em confronto com lei federal, mas simplesmente de definição de parâmetros de interpretação de lei federal e de normas constitucionais.
[23] STF, ADIn n. 1.717, pleno, rel. min. Sydney Sanches, v.u., DJ, 7-11-2002, p. 28.03.03.
[24] Dora Maria de Oliveira Ramos, A terceirização em matéria de poder de polícia: o caso das vistorias veiculares, op. cit., p. 571.
[25] Ibid.
[26] A tal respeito, MARRARA, Thiago. Competência, delegação e avocação na LPA. Revista Brasileira de Direito Público, v. 29, p. 29 e ss., 2010.

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