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Saisine e Liberdade de Testar: A Experiência Brasileira

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Paulo Lobo

Paulo Lobo

09/03/2018

Direitos dos herdeiros ou liberdade de testar?

Discute-se, no mundo contemporâneo, se o modelo mais adequado de sucessão hereditária deve contemplar prioritariamente os direitos dos herdeiros ou a liberdade de testar. A preferência aos direitos dos herdeiros assenta na sucessão legal ou legítima e na proporcional redução da liberdade do testador.  A Constituição de 1988 tem como direito fundamental o direito à herança e não o direito à sucessão em geral. É dizer, quando o testamento colidir com a sucessão legítima, esta prevalece e não mais a autonomia da vontade do testador. As normas legais da sucessão legítima não podem ser contrariadas pela vontade do testador, salvo quando expressamente facultar-lhe o poder de escolha.

Por tais razões fundamentais, não se compreende porque o Código Civil de 2002 continuou a localizar institutos que são, exclusivamente ou primacialmente, integrados à sucessão legítima, no contexto da sucessão testamentária, como a colação. Cabe à doutrina corrigir essa evidente erronia formal do legislador, trazendo-os ao contexto da sucessão legítima.

A Constituição de 1988 consolidou radicalmente a mudança de paradigma do conceito individualista e liberal das titularidades, como senhorio intocável sobre as coisas, para a subordinação daquelas à função social. Consequentemente, na atualidade, o direito das sucessões está também orientado à função social. A mudança de paradigma impõe consideração prioritária ao interesse social, inclusive quanto ao direito à herança e à redução do papel da vontade do testador.

A origem biológica ou não biológica dos filhos, a nulidade do casamento ou o divórcio não afetam o igual direito sucessório dos descendentes. A diretriz vem traçada desde a Constituição de 1988: os filhos de qualquer origem são investidos nos mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, independentemente de serem matrimoniais ou extramatrimoniais, biológicos ou socioafetivos. Antes, os direitos sucessórios dos filhos passavam pelo filtro da legitimidade: os filhos ilegítimos tinham direitos sucessórios inferiores aos dos filhos legítimos matrimoniais. Se a aquisição dos direitos se dá sem máculas ou restrições, são do mesmo modo adquiridos os direitos sucessórios pelos descendentes dos filhos, quando os substituem.

A garantia fundamental do direito à herança apenas foi prevista expressamente na Constituição de 1988. Não se encontra referência semelhante nas Constituições anteriores. Quando uma Constituição introduz uma garantia tem por finalidade proteger uma categoria de pessoas, o que redunda em contenção do legislador infraconstitucional e na imposição de respeito a esses direitos por parte de todos. As categorias protegidas pela Constituição de 1988 foram os herdeiros dos nacionais e os herdeiros nacionais de estrangeiros.

Qual o significado do enunciado constitucional de ser “garantido o direito à herança”?

Direito à herança não se confunde com direito a suceder alguém, porque antes da morte não há qualquer direito a suceder. Nessa erronia incorreu a doutrina tradicional, a exemplo de Carlos Maximiliano. Antes da morte, há mera expectativa de direito, mas não direito constituído ou direito expectativo, porque a sucessão não ocorreu, sendo apenas eventual. Se a lei, antes da abertura da sucessão, restringir a ordem de vocação hereditária, ou se um provável herdeiro morrer antes do de cujus, quem poderia ser herdeiro deixa de o ser.

A Constituição não refere à sucessão em geral, mas apenas à herança. Ou seja, foi elevado à garantia constitucional o direito daqueles que se qualificam como herdeiros de quem morreu (autor da herança), mas não qualquer sucessor. A Constituição não define quem seja herdeiro, o que remete ao legislador infraconstitucional. Mas este está limitado ao fim social da norma constitucional, que é a proteção das pessoas físicas que tenham com o autor da herança relações estreitas de família ou de parentesco. Todos os demais sucessores têm tutela restritamente infraconstitucional e desde que não afetem a preferência atribuída pela Constituição aos qualificados como herdeiros. Os legatários, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, entes ou entidades não personificadas, são sucessores, mas não são herdeiros.

Vê-se, então, que houve giro copernicano ou notável mutação paradigmática. O direito das sucessões brasileiro foi desenvolvido, pelos juristas tradicionais, a partir do modelo do direito romano e da codificação moderna liberal de preferência à sucessão testamentária. A sucessão legal ou legítima, ou seja, a que a lei define em prol dos herdeiros necessários ou legítimos do autor da herança, era considerada em nosso direito como supletiva, incidindo apenas quando não se deixava testamento.

A preferência à sucessão testamentária estava nas Ordenações Filipinas, na Consolidação das Leis Civis e no Código Civil de 1916. Este último estabelecia que “morrendo a pessoa sem testamento, transmite-se a herança a seus herdeiros legítimos”. A doutrina, tradicionalmente, dedicou o melhor de suas reflexões à sucessão testamentária. O papel desempenhado pelo testamento no direito romano, durante o período imperial, refletia as peculiaridades das mudanças havidas nos interesses da aristocracia romana, como instrumento de poder, ao lado dos arranjos matrimoniais. Seu renascimento durante a modernidade liberal prestou-se à valorização da autonomia da vontade e do individualismo, necessários à afirmação dos valores ascendentes da burguesia e da nascente industrialização, em conflito com a aristocracia rural, que assentava seu poder na propriedade fundiária.

Porém, o law in books foi ignorado pelo law in action. O modelo individualista do predomínio da sucessão testamentária, ao menos no plano legal e doutrinário, foi desafiado pela realidade social brasileira de desconsideração massiva do testamento e da incidência quase total da sucessão legítima em todas as classes sociais, além da ascensão dos valores e princípios sociais, que marcaram a trajetória do direito privado, principalmente a partir do início da segunda metade do século XX, com especial destaque à função social da propriedade, que se converteu em princípio fundamental na Constituição de 1988.

A sucessão testamentária, que recebia destinação preferencial da lei, passou a ser secundária, tal como ocorre na realidade brasileira. A preferência à sucessão testamentária, que foi marcante na doutrina especializada brasileira, não faz mais sentido e converte-se em opção ideológica que homenageia excessivamente a autonomia individual, em prejuízo dos valores sociais e de solidariedade familiar, que são mais bem contemplados na sucessão legítima.

A garantia do direito à herança inverte a primazia. Ao invés do autor da herança, principalmente quando testador, e do respeito à sua vontade, que era tida como norte de interpretação, a primazia passou para o herdeiro. O direito do herdeiro é o assegurado pela lei e não pela vontade do testador. O autor da herança não é mais o senhor do destino do herdeiro.

O Código Civil de 2002 procurou inserir-se nessa contemporânea mutação paradigmática de conformação do direito sucessório aos valores e princípios sociais, inflectindo tendencialmente para a sucessão legítima, que, por ser o modelo escolhido pelo legislador, tem a presunção de conciliar os interesses individuais com os interesses sociais do grupo familiar e com a solidariedade social. As alterações ocorridas no texto de 1916, que serviu de base, apontam nessa direção, como a ampliação do rol de herdeiros necessários, incluindo o cônjuge e o companheiro, notadamente em razão de serem considerados herdeiros concorrentes com os demais. Repete, contudo, a regra da supletividade da sucessão legítima em seu art. 1.788 e mantém os numerosos dispositivos destinados ao testamento, vindos de 1916, incluindo institutos que caíram em desuso. De tudo resultou um diploma legal incoerente, em que se atribui mais importância, no que respeita à quantidade das normas, ao que há menos interesse social.

A doutrina tem salientado a emersão de valores existenciais no direito das sucessões constitucionalizado, revelando o primado da pessoa humana, destacando na atual legislação civil a sucessão concorrente de cônjuge e companheiro, o direito real de habitação em favor do cônjuge e companheiro, a igualdade sucessória dos filhos, a designação testamentária de filho eventual de determinada pessoa, a necessidade de justa causa para as cláusulas restritivas da herança necessária.

As normas do Código Civil de 2002 hão de ser interpretadas em conformidade com os princípios e regras constitucionais. Estes e estas prevalecem sobre aquelas. Na dúvida, o intérprete deve encontrar o sentido que melhor contemple o direito do herdeiro e não a vontade presumida do autor da herança. Assim, a afirmação corrente de ser a vontade do testador o critério fundamental de interpretação do testamento perdeu consistência. A vontade do testador é levada em conta até o ponto que não comprometa a garantia do direito dos herdeiros e deve estar em conformidade com esse e os demais princípios constitucionais, notadamente o da função social do testamento. Essa deve ser a orientação que se deva imprimir ao art. 1.899 do Código, por exemplo. Porém, há o limite extremo que não pode ser ultrapassado no esforço de interpretação conforme das normas do Código, isto é, quando elas sejam totalmente incompatíveis com as normas da Constituição, o que conduz à sua inconstitucionalidade.

Adquire-se a herança, automaticamente, com a abertura da sucessão. O direito brasileiro difere de outros sistemas jurídicos porque admite a transmissão automática, sem necessidade de consentimento ou aceitação dos herdeiros beneficiados ou decisão de qualquer natureza. Ainda que o herdeiro não tenha conhecimento da abertura da sucessão, a transmissão dá-se a seu favor, desde o preciso momento da morte do autor da herança. A transmissão é por força de lei. O que uma pessoa herdou e ainda não sabe, ou não aceitou, já ingressou em seu patrimônio, conquanto não definitivamente.

A norma jurídica que assim enuncia o modelo brasileiro de sucessão a causa da morte é o Código Civil: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Não apenas aos herdeiros, mas aos demais sucessores, inclusive os legatários e, na falta de todos esses, à Fazenda Pública. Quanto aos legatários (CC, art. 1.923), a eles pertencem as coisas certas, existentes no acervo, “desde a abertura da sucessão”. O Código Civil de 2002 suprimiu as expressões “o domínio e a posse”, existentes no Código anterior, resultando simplesmente na transmissão automática da herança – conjugando direitos reais, posses, dívidas, créditos e outros direitos – ao herdeiro legítimo (incluindo o ente estatal) ou legatário.

A essência da norma brasileira é que a morte da pessoa não gera um vazio de titularidade sobre a herança que deixou. Os direitos subjetivos sobre a herança são de um sucessor, ou diversos sucessores, sejam eles determinado pela lei ou pelo próprio autor da herança, mediante testamento que antes fez. Não se admite que tais direitos restem sem sujeitos, porque a aceitação tácita ou expressa não é constitutiva da transmissão da herança.

Sua origem radica no modelo engendrado pelos povos germânicos, retratado na expressão do direito francês de droit de saisine – a partir da máxima le mort saisit le vif, sans ministère de justice. Esse modelo é diverso do que o direito romano legou, mediante o qual a sucessão hereditária inicia com a aceitação do sucessor, permanecendo jacente até que essa se dê. Para o direito romano, portanto, jacente era a herança cujos sucessores não manifestaram aceitação, ou até quando esta se dava. No direito romano havia lapso de tempo entre o que denominava delação e a aquisição da herança. A delação era o prazo ou espaço de tempo concedido ao sucessível, ou seja, ao que poderia ser sucessor, para que nele dissesse se aceitava ou não a herança. O sucessível ficava na posição jurídica de pessoa a quem se deferia a herança, cuja transmissão dependia de exercício de verdadeiro direito potestativo.

Diferentemente da tradição do direito romano, o droit de saisine, ou simplesmente saisine, opera por força de lei, relativizando o efeito da aceitação posterior. Com a delação, nos sistemas que a preveem, o chamado não é ainda herdeiro, mas titular de um direito potestativo de aceitar a herança. Portanto, não faz sentido referir à delação da herança – no sentido de devolução sucessória, ou oferecimento da herança, que depende de manifestação do herdeiro – e de adição, entendida como aquisição da herança pela aceitação, como se lê em obras de doutrinadores (por exemplo, Itabaiana de Oliveira e Orlando Gomes), pois o modelo da saisine brasileira não as contempla, uma vez que a transmissão da titularidade opera imediatamente com a abertura da sucessão. Como esclarece Pontes de Miranda, a herança não jaz sem dono, de jeito que o conceito de herança jacente mudou. Quando, no tempo em que se espera o nascimento do herdeiro concebido, ou de alguma decisão sobre a legitimação ativa de alguém à herança, ou em que se aguarda a personificação de sociedade ou fundação, criada pelo de cujus, a herança já é de alguém: apenas não se sabe se é o beneficiado pela lei, ou pelo testamento, ou se algum dos herdeiros legítimos, ou de outrem. Não se pode aludir, pois, à suspensão da sucessão; a sucessão já se deu.

Consequentemente, no Brasil estão conjugadas e subsumidas na saisine a abertura da sucessão, a vocação, a devolução, a delação, a aquisição que, em outros países, constituem fases distintas. Nenhuma herança fica sem titular ou titulares. Não se exige qualquer ato de autoridade ou de herdeiro para que se opere a transferência da herança.

Na evolução do direito brasileiro, a saisine plena teve consagração com o Alvará de 9 de novembro de 1754 – integrando o conjunto de reformas do Marquês de Pombal, contrárias à tradição do direito romano e aos costumes medievais -, que introduziu no direito luso-brasileiro a transmissão automática dos direitos, que compõem o patrimônio da herança, aos sucessores, legais ou testamentários, com toda a propriedade, a posse, os direitos reais e os pessoais. O Alvará de 1754 modificou o sistema das Ordenações Filipinas, por razões não só de tradição, mas também de ordem prática, com intuito de tornar claro quem era o herdeiro, de evitar que a vacância propiciasse conflitos de posse com aqueles que se aproveitassem desse momento de falta de certeza de quem era herdeiro e de proteção dos credores do falecido. Os Códigos Civis de 1916 e 2002 deram continuidade a essa tradição bem sucedida da experiência brasileira.

Curiosamente, o direito português tomou rumo diferente, pois o Código Civil lusitano de 1966 retoma parcialmente o modelo romano, ao fazer o início da transmissão a causa da morte dependente da aceitação dos herdeiros beneficiários. O ponto de partida para a transmissão não é a morte, mas o “chamamento” das pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida (a delação do direito romano) e a “devolução” dos bens que ela deixou. Se os primeiros sucessíveis chamados não quiserem aceitar, serão chamados os seguintes, que, se aceitarem, terão a “devolução” a seu favor, com efeitos retroativos à abertura da sucessão (morte).

Parte da doutrina brasileira, ainda sob efeito da tradição romana, e sem a devida atenção às peculiaridades da saisine ampla que nosso direito adotou, reproduz o modelo restrito de outros direitos, como o português aludido. Erronia maior é a afirmação corrente de que entre a abertura da sucessão e a aceitação haveria espaço de tempo, dentro do qual inevitavelmente a herança ficaria sem titular. Mas, no direito brasileiro, a saisine opera automaticamente sem chamamento, delação da herança e devolução, pois a transmissão não depende da vontade do sucessível: morto o autor da herança esta se transmite imediatamente ao herdeiro ou sucessor, tornando-o titular das relações jurídicas transmitidas, antes mesmo que diga se aceita ou renuncia. Não se pode cogitar de devolução, pois esta suporia a existência de tempo em que a herança não fosse ainda transmitida aos sucessores, “devolvendo-se” a estes quando aceitassem, o que retrocederia nosso direito ao sistema anterior a 1754.

A saisine é o mecanismo jurídico de investidura automática e legal na titularidade da herança, dos que o ordenamento considera sucessores, na ordem estabelecida. No direito brasileiro é conferida a quaisquer herdeiros necessários, legítimos ou testamentários e a todos que estejam legitimados a receber a herança, sejam parentes, legatários ou Fazenda Pública. O direito real – inclusive a propriedade – é imediatamente transmitido ao sucessor, segundo a ordem de vocação hereditária, seja ele qual for (herdeiro legítimo, herdeiro testamentário, legatário). A saisine, contudo, não opera automaticamente com relação à posse dos bens deixados aos legatários, pois estes, conquanto já investidos nas titularidades dos respectivos direitos reais, têm que reclamá-la aos herdeiros legítimos, se houver. Consequentemente, no direito brasileiro, a transmissão dos direitos reais, a causa de morte, é legal e automático, não dependente de vontade ou decisão de quem quer que seja. A transmissão da posse imediata e direta apenas não opera automaticamente em relação aos legatários.

A saisine que se adotou em França, de onde se irradiou para diversos ordenamentos jurídicos, é restrita e parcial; portanto, diferente da brasileira. Com efeito, no Código Civil francês, art. 724, apenas os herdeiros legítimos adquirem por força de lei (sont saisis de plein droit de biens, droits et actions du défunt); os demais sucessores dependem de cumprimento de outros requisitos, inclusive aceitação ou imissão na posse. Os ordenamentos jurídicos que não admitem a saisine condicionam a aquisição da herança inteiramente à aceitação, ainda que os efeitos desta retroajam à data da abertura da sucessão, como estabelece o art. 459 do Código Civil italiano.

Vê-se que a transmissão a causa de morte no direito brasileiro é distinta dos modelos conhecidos. É distinta do direito romano, porque não depende da aceitação para que se dê. É distinta do direito francês porque não se restringe a alguns tipos de herdeiros ou sucessores. Todos os sucessores, inclusive o ente estatal, são beneficiados pela saisine.

O Código Civil, art. 1.227, estabelece que os direitos reais sobre imóveis, constituídos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro do título de aquisição (compra e venda, permuta, dação em pagamento, doação, por exemplo) no registro de imóveis respectivo. Expressa o modelo binário que o direito brasileiro adotou, distinguindo os efeitos do título de aquisição (meramente obrigacional) e os do modo de aquisição (transmissão da propriedade ou outro direito real, com o registro), que a praxe divulgou na expressão “só é dono quem registra”. Para a transmissão dos direitos reais sobre móveis, o modo de aquisição é a tradição (entrega real da coisa). Diferentemente, na transmissão da herança de bens móveis ou imóveis a causa da morte, o título e o modo de aquisição se confundem na abertura da sucessão: não são, portanto, dois momentos distintos, o que significa dizer que não se fazem necessários nem o registro público nem a tradição da coisa, cujas eficácias são meramente declarativas, ao contrário da eficácia constitutiva da transmissão entre vivos. Nesse sentido, esclarecendo o efeito da saisine, decidiu o STJ (REsp 48199) que a herança é modalidade de aquisição da propriedade imóvel, que se transfere aos herdeiros com a abertura da sucessão e não com o registro imobiliário.

O desconhecimento da existência de herdeiro, ou o desconhecimento do paradeiro do único parente sucessível não implicam ficar a herança sem transmissão. Só há herança se alguém herda, porque isso resulta do princípio da saisine. Se o parente ausente não se apresenta, ou se o que se imaginava existente não existe, ou renuncia, se também não há cônjuge ou companheiro de união estável, herda a Fazenda Pública ou ente estatal (dependendo do local do bem, o Município, ou o Distrito Federal, ou a União, esta para os Territórios Federais).

É corrente na literatura jurídica brasileira a afirmação de que a Fazenda Pública não é beneficiária da saisine, porque seria sucessor supletivo, na falta de herdeiro legítimo ou testamentário, ou de legatário. Esse entendimento ficou fortalecido com a redação dada pelo art. 1.829 do Código Civil de 2002, que suprimiu a referência à Fazenda Pública, prevista no Código civil de 1916, em relação à ordem de vocação hereditária dos sucessores legítimos. Todavia, o art. 1.844 prevê que não sobrevivendo cônjuge, companheiro, ou parente sucessível, a herança é transmitida à Fazenda Pública, desde a abertura da sucessão, não o fazendo depender de cumprimento de qualquer requisito ou de eficácia retroativa da decisão judicial. Assim, se não há parente sucessível ou, se este não a tiver renunciado, a aquisição da herança pela Fazenda Pública dá-se do mesmo modo que a prevista para os demais sucessores, ou seja, por força de lei e de modo automático na data da abertura da sucessão, com uma nota adicional: a Fazenda Pública não pode renunciar à herança. Também para a Fazenda Pública vale o princípio de que os bens não restam sem titular.

Diferentemente de outros sistemas jurídicos, a saisine brasileira importa imediata transmissão da posse ao herdeiro, desde a abertura da sucessão, e não apenas as titularidades dos direitos reais. Consequentemente, o herdeiro não pede imissão de posse, porque a posse ele já tem, por força de lei, desde a abertura da sucessão. Pode exercer ação de esbulho, ou de turbação, ou qualquer ação possessória. Se o herdeiro falece, mesmo antes de aceitar a herança, seus sucessores prosseguem nas mesmas titularidades de posse e de direitos reais. Às vezes, a posse é apenas a mediata, pois a posse imediata pode estar com terceiro (por exemplo, o bem deixado pode estar alugado, o que faz com que a posse imediata esteja com o locatário). Pode ser objeto da transmissão apenas a posse imediata sobre a coisa deixada, quando o de cujus era apenas possuidor, sem título de propriedade, ou seja, não apenas se transmite a causa de morte títulos de domínio, mas igualmente situação fática da posse sobre bens. A posse pode ser apenas imediata, sem titularidade da posse mediata, como na hipótese de o de cujus ter morrido na qualidade de locatário do imóvel ou arrendatário rural; esta é a posse que se transfere, sem titularidade de direito real. Seja como for, mediata ou imediata, a posse que passa ao herdeiro é posse própria, definitiva, a mesma em que se encontrava investido o de cujus; não é posse imprópria ou provisória.

Até a partilha dos bens, a posse imediata concentra-se no cônjuge, ou companheiro, ou administrador da herança ou inventariante judicial. Mas a posse mediata já foi transmitida aos herdeiros desde a abertura da sucessão, que a têm em partes ideais, pois enquanto não se proceder à partilha dos bens (judicial ou extrajudicial), a herança é tida como um todo, em condomínio.

Ante as controvérsias doutrinárias sobre a natureza da herança ou da comunhão hereditária, o Código Civil de 2002 (arts. 80 e 1.791) tomou posição expressa pelo condomínio. A indivisibilidade e a universalidade da herança regulam-se pelas normas relativas ao condomínio, até a partilha. Os herdeiros legais e testamentários são titulares de partes ideais. A composse é exclusiva dos herdeiros, não incluindo o legatário, cuja titularidade se equipara à nua-propriedade até a partilha, ou antes desta se lhe for deferido o pedido de legado.

Dado o caráter de transmissão automática do patrimônio, pela saisine, antiga decisão do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Min. Nelson Hungria, já esclarecia que os herdeiros o recebem pro indiviso, nenhum deles podendo exercer atos possessórios que excluam a posse dos outros (AgIn 15181, de 1951). É também do STF (RE 7586) o entendimento de ser possível a pretensão reivindicatória do herdeiro, antes do inventário, em virtude da saisine, pois esta já lhe transmitiu automaticamente a posse e o domínio. Após o Código Civil de 2002, prosseguiu o STJ na mesma direção, pois, tal como ocorre em relação a um condômino, ao coerdeiro é dada a legitimidade ad causam para reivindicar, independentemente da formação de litisconsórcio com os demais coerdeiros, a coisa comum que esteja indevidamente em poder de terceiro (REsp 1192027). Do mesmo Tribunal é a decisão de que os direitos hereditários, ainda que em partes ideais da herança, integram o patrimônio do herdeiro e são, por isso, disponíveis e penhoráveis; arrematados os direitos hereditários, o herdeiro respectivo é sucedido no inventário, pelos arrematantes (REsp 999348).

A sucessão testamentária, no Brasil, teve sempre utilidade secundária e residual, não penetrando nos hábitos da população, como se vê na imensa predominância da sucessão legítima nos inventários abertos. São fatores desse pouco uso as exigências formais que a lei impõe aos testamentos, o custo destes e a aceitação social das regras legais da sucessão legítima. É imenso o fosso entre a preferência da doutrina jurídica especializada pela sucessão testamentária e a realidade social brasileira. Em seu grandioso Tratado de Direito Privado, Pontes de Miranda dedica um dos tomos à sucessão legítima e quatro à sucessão testamentária. Porém, em correspondência ao sentimento coletivo de apreço à sucessão legítima, fundada no princípio da igualdade entre os herdeiros, a Constituição (art. 5º, XXX) elevou o direito à herança ao status de direito fundamental. São dois os fins sociais principais da norma constitucional: o de impedir que o legislador infraconstitucional suprima totalmente esse direito e o de garantia de sua aquisição pelos herdeiros.

O testador exerce sua autonomia ou liberdade de testar de modo limitado quando há herdeiros que a lei considera necessários. Nesta hipótese, que é a mais frequente, sua autonomia fica confinada à parte disponível, não podendo reduzir a legítima desses herdeiros. Sua autonomia é mais ampla quando não há qualquer herdeiro necessário, podendo contemplar de modo desigual os demais herdeiros ou excluí-los totalmente da herança, quando destinar a herança a terceiros. Por ser instrumento de atribuição desigual da herança e até de exclusão desta é que a lei impõe à sucessão testamentária requisitos e formalidades substanciais.

Nos sistemas jurídicos, como o brasileiro, que asseguram a intocabilidade da parte legítima ou indisponível, reservando ao testador apenas a parte disponível, a primazia é da sucessão legítima, conferindo-se papel secundário à sucessão testamentária.

A prevalência da sucessão legítima tem longa história, em nosso direito, com início no ano de 1769, pela lei de 9 setembro, que integrou a Reforma Josefina, impulsionada pelo Marquês de Pombal, que substituiu o direito romano pelas regras de boa razão das nações civilizadas. A sucessão testamentária era prioritária no direito romano imperial e nas Ordenações Filipinas (Liv. 4, Tit. 86), que o seguiu. Como registrou Coelho da Rocha, o sistema testamentário romano assentava sobre dois princípios fundamentais e conexos: primeiro, a instituição obrigatória no testamento de um ou mais herdeiros universais; segundo, ninguém podia morrer “parte testado e parte intestado”. Ou seja, à sucessão da mesma pessoa não podiam concorrer os herdeiros legítimos e os herdeiros testamentários. Com a Reforma Josefina, os herdeiros legítimos necessários passaram à frente, concorrendo com os testamentários, desde que estes fossem contemplados nos limites da parte disponível.

A sucessão legítima preferencial inverte a primazia que se atribuía ao testador. Ao invés do autor da herança, principalmente quando testador, e do respeito à sua vontade, que era tida como norte de interpretação, a primazia passou para o herdeiro. O direito do herdeiro é o assegurado pela lei e não pela vontade do testador, que não pode restringi-lo, salvo nos limites admitidos pela lei.

O autor da herança não é mais o senhor do destino do herdeiro. Assim, a afirmação corrente de ser a vontade do testador o critério fundamental de interpretação do testamento perdeu consistência. A vontade do testador é levada em conta até o ponto que não comprometa a garantia constitucional do direito dos herdeiros (legítimos ou testamentários) e deve estar em conformidade com esse e os demais princípios constitucionais, notadamente o da função social do testamento e o da dignidade da pessoa humana. Essa deve ser a orientação que se deva imprimir ao art. 1.899 do Código Civil de 2002, em harmonia com o sentido da alteração havida em outros dispositivos, como o art. 1.848, que restringiram o poder quase ilimitado antes conferido ao testador.

No que concerne ao patrimônio, o testador está restrito à parte disponível, se houver herdeiros necessários. Decorre do sistema jurídico brasileiro atual, ante a garantia constitucional do direito à herança (CF, art. 5º, XXX) e a nítida opção do Código Civil de proteção dos herdeiros necessários, que as únicas cláusulas restritivas da legítima são as de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade (art. 1.848). Ainda assim, dependentes de justa causa declarada. Não pode o testador estipular outras, sob pena de incidirem em nulidade. Essa mudança de orientação legal responde adequadamente à preocupação da doutrina, quanto ao risco de tais cláusulas fraudarem ou diminuírem a legítima dos herdeiros necessários. Melhor andaria o legislador se excluísse de vez a possibilidade, ainda que limitada, de qualquer restrição à legítima, retomando-se a tradição do direito brasileiro anterior a 1907, que não as admitia.

A doutrina de Clóvis Bevilaqua da preferência da sucessão legítima sobre a sucessão testamentária, em seus comentários ao Código Civil, terminou prevalecendo na Constituição de 1988, que estabelece o direito à herança e não, genericamente, à sucessão. Ainda que o testador possa designar herdeiros testamentários, a finalidade da norma constitucional é a proteção dos herdeiros legítimos, necessários ou não. No art. 1.906 do Código Civil de 2002, o que não é objeto de destinação do testador, em relação à parte disponível, permanece com os herdeiros legítimos, que o adquiriram por força da saisine. A porção da parte disponível, não destinada pelo testador, continua sob suas titularidades.

Apesar da forte crítica de Pontes de Miranda  à vedação ao testador de estipular tempo para começar ou cessar o direito do herdeiro, que qualifica como exótica e supérflua, o Código Civil de 2002 manteve a mesma regra do art. 1.665 do Código anterior. Fê-lo justificadamente, ante sua opção de tratamento preferencial ao herdeiro – inclusive o testamentário, de que se cuida – e consequente limitação ao testador, adequada à garantia constitucional (art. 5º, XXX) do direito à herança. A vedação legal não se estende ao legatário, que pode suportar termo inicial ou final para aquisição ou exercício do direito transferido.

Quanto às cláusulas restritivas, não há mais a discricionariedade que o direito anterior assegurava ao testador, o que reduziu a importância social dessas cláusulas. A profunda limitação ao testador tem por fito a mais ampla garantia de inviolabilidade do direito à herança, assegurada na Constituição, ou da legítima dos herdeiros necessários. Portanto, apenas em caráter excepcional, pode cláusula desse jaez restringir a legítima, desde que a justificativa convença o juiz de que foi imposta no interesse do herdeiro necessário e nunca para satisfazer valores ou idiossincrasias do testador. Ainda assim, continua atual a repulsa de Orlando Gomes a tais cláusulas, por ele consideradas insustentáveis quando recaem nos bens da legítima, porque esta pertence de pleno direito aos herdeiros necessários, que devem ser transmitidos tais como se achavam no patrimônio do de cujus. Perfilhamos a conclusão do autor de serem atentatórias da legítima expectativa convertida em direito adquirido, quando da abertura da sucessão. A proteção visada pelo testador transforma-se, frequentemente, em estorvo, antes prejudicando que beneficiando o herdeiro. Essas advertências fortalecem a necessidade de interpretação exigente e restrita da justa causa, imposta pela lei atual. Sob a dimensão constitucional, essas cláusulas limitativas constituem restrição a direitos fundamentais garantidos na Constituição, como o direito de propriedade (art. 5º, XXII), informado pela função social (art. 5º, XXIII), o direito de herança (art. 5º, XXX) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III)


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