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O direito de arrependimento na compra de passagens aéreas pela internet

ANAC

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

COMPRA PELA INTERNET

DIREITO DE ARREPENDIMENTO

Landolfo Andrade

Landolfo Andrade

14/03/2018

O art. 49 do Código de Defesa do Consumidor traz norma que, rompendo com a lógica contratual clássica, confere ao consumidor o direito de arrependimento dos contratos firmados fora do estabelecimento comercial.

Em linhas gerais, toda vez que a aquisição do produto ou serviço ocorrer fora do estabelecimento comercial, independentemente do meio ou da forma de abordagem, o direito de arrependimento poderá ser exercitado. O prazo de reflexão é de sete dias, a contar da assinatura do contrato ou do recebimento do produto ou serviço.

Note-se que o exercício desse direito é incondicionado, isto é, depende única e exclusivamente da manifestação de vontade do consumidor, sem que se exija a declinação dos motivos que o levaram a arrepender-se do negócio (direito potestativo). O objetivo do Código é proteger o consumidor das compras por impulso.

O consumidor que desistir da compra terá direito ao reembolso de todos os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, sendo a devolução imediata e monetariamente atualizada (art. 49, parágrafo único, do CDC). Nesse passo, o STJ já considerou abusiva cláusula contratual que autorizava o fornecedor a repassar aos consumidores o ônus de arcar com as despesas postais decorrentes do exercício do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC[1].

A referência a telefone ou a domicílio contida no artigo 49 é meramente exemplificativa, conforme se infere do emprego do advérbio especialmente. Assim, estão abrangidas pelo dispositivo as vendas externas (em que o fornecedor se dirige à residência do consumidor ou ao seu local de trabalho); as contratações por telefone ou telemarketing; pela Internet (ex.: e-mail, lojas virtuais, home banking etc.); por correspondência (ex.: mala direta ou carta-resposta); pela TV ou qualquer outro meio eletrônico. Daí ser correto concluir que esse direito também se aplica às compras de passagens aéreas pela internet.

A despeito disso, sempre foi prática comum das companhias aéreas a cobrança de elevadas multas pelo cancelamento da compra de passagens pela internet, mesmo que o consumidor tenha manifestado tal vontade dentro do prazo de reflexão previsto no artigo 49 do CDC. Trata-se de prática abusiva, porque ofensiva ao direito do consumidor de receber de volta todos os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão.

Criada em 2005, a Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) adotava uma postura bastante complacente com as empresas aéreas, considerando legítima a cobrança de multas ou tarifas de cancelamento e de remarcação de passagens, desde que estivessem previstas no contrato de transporte. Por outras palavras, referida agência adotava o entendimento de que o artigo 49 do CDC não alcança o comércio eletrônico pela internet.

Essa postura da ANAC estimulou a prática de abusos por parte das companhias aéreas. Prova disso é que a política de arrependimento na aviação civil brasileira – remarcação, reembolso e cancelamento – varia de empresa para empresa, de contrato para contrato e de tarifa para tarifa. Em casos de tarifas promocionais, por exemplo, algumas companhias cobram multas ou tarifas de cancelamento de até 80% do valor pago no bilhete, o que deixa o consumidor perdido entre tantas regras e porcentagens. Em meio a essa burocracia, muitos passageiros acabam desistindo ou recebendo valores bem abaixo do que teriam direito.

A polêmica envolvendo a incidência ou não do artigo 49 do CDC nas compras de passagens aéreas pela internet vem sendo apreciada pelo Poder Judiciário. Embora existam decisões em ambos os sentidos, a jurisprudência majoritária em nossos sodalícios é no sentido de que o direito de arrependimento previsto no artigo 49 alcança esse tipo de avença, justamente por se tratar de relação jurídica de consumo[2].

No dia 14 de março de 2017, contudo, entrou em vigor a resolução nº 400/2016 da ANAC, que dispõe sobre as novas Condições Gerais de Transporte Aéreo (CGTA). Dentre as principais inovações, seu artigo 11 prevê expressamente a possibilidade de o consumidor desistir da compra de passagens aéreas. Confira-se:

Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante.

Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque.

A norma em destaque confere ao consumidor o direito de se arrepender da compra, sem custos, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contado do recebimento do comprovante da compra, desde que a passagem tenha sido adquirida com antecedência mínima de 7 (sete) dias da data do embarque.

Se comparada ao entendimento anterior da ANAC, que não reconhecia a existência de direito de arrependimento na compra de passagens aéreas, essa norma representa um avanço. Contudo, se comparada com o direito de arrependimento previsto no artigo 49 do CDC, trata-se de um retrocesso: o prazo de reflexão foi reduzido de 7 (sete) dias para 24 (vinte e quatro) horas; isso sem falar na necessidade de a passagem ter sido adquirida no mínimo 7 (sete) dias antes do voo – condicionante inexistente na regra contida no artigo 49 do CDC.

Tem-se, na hipótese, uma clara antinomia entre o direito de arrependimento previsto no artigo 49 do CDC e o direito de arrependimento disciplinado no artigo 11 da Resolução 400/2016, da ANAC. A questão a ser enfrentada, doravante, é saber qual norma terá aplicação nas compras de passagens aéreas pela internet.

Embora se reconheça a boa intenção da ANAC, entendemos que o artigo 11 da Resolução 400/2016 não alcançará as compras de passagens aéreas efetuadas pela internet. Vale dizer, o direito de arrependimento em tais transações continuará sendo regulado pelo artigo 49 do CDC.

Explica-se: o CDC é uma lei geral, materialmente, e especial, subjetivamente. Por isso, alcança todas as relações contratuais e extracontratuais do sujeito consumidor no mercado de consumo, inclusive as que se encontram reguladas por normas específicas, caso do transporte aéreo de passageiros. A superação das inevitáveis antinomias entre o CDC e as normas especiais deve ocorrer pelo emprego da moderna técnica do “diálogo das fontes”, desenvolvida a partir de uma premissa importante: a solução para as antinomias deve ser procurada sempre na Constituição Federal.

Nessa trilha, não podemos olvidar que a previsão da defesa do consumidor como direito fundamental (art. 5.º, XXXII, da CF) representa, sistematicamente, uma garantia constitucional deste novo ramo do direito. É a chamada força normativa da Constituição, a indicar que os direitos fundamentais assegurados nas Constituições têm força de norma, vinculando, portanto, o Estado e os intérpretes da lei em geral, inclusive frente a outros ramos do Direito.

Assim, no “diálogo” entre o CDC e a Resolução 400/2016 da ANAC, aplica-se prioritariamente o CDC, diante do mandamento constitucional de proteção do consumidor (art. 5.º, XXXII), e apenas subsidiariamente, no que for compatível com o sistema consumerista, a Resolução da ANAC.

A natureza de norma de sobreposição do Código de Defesa do Consumidor, aliada ao critério hierárquico, nos autoriza concluir que as compras de passagens aéreas pela internet continuam sendo alcançadas pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor. Noutras palavras, o consumidor continua tendo o prazo de 7 (sete) dias para desistir, sem custos, da passagem, contado do ato da compra.  Quanto ao artigo 11 da Resolução 400/2016 da ANAC, só alcançará as compras de passagens aéreas efetuadas no estabelecimento comercial físico da empresa aérea, já que a norma em exame, diferentemente do artigo 49 do CDC, não condiciona o exercício do direito à compra fora do estabelecimento comercial.

Entendimento contrário abriria um precedente perigoso no âmbito das relações de consumo. Afinal, outras agências reguladoras poderiam se sentir encorajadas a lançar mão do mesmo expediente para afastar a incidência das normas protetivas do CDC, em claro esvaziamento do mandamento constitucional de efetiva defesa dos direitos do consumidor.

Não estamos, com isso, afirmando que a atual solução conferida pelo CDC para esse tipo de contrato seja a ideal. As características do serviço de transporte aéreo recomendam uma regulamentação especial do direito de arrependimento, em conformidade com o princípio da harmonização (art. 4º, III, do CDC), que deve orientar as relações jurídicas de consumo. O que não se pode admitir é que essa regulamentação especial seja feita em desacordo com o CDC – fonte paradigmática mínima dos direitos básicos dos consumidores.

É oportuno ressaltar que o Projeto de Lei 281/2012[3] propõe importantes alterações no artigo 49 do CDC. Para além de esclarecer que o direito de arrependimento também alcança a compra por meio eletrônico, o projeto traz uma regra específica para as compras de passagens aéreas: Confira-se:

Art. 49-A. Sem prejuízo do direito de rescisão do contrato de transporte aéreo antes de iniciada a viagem, nos termos do art. 740, § 3º, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), o exercício do direito de arrependimento do consumidor de passagens aéreas poderá ter seu prazo diferenciado, em virtude das peculiaridades do contrato, por norma fundamentada das agências reguladoras.

Parágrafo único. A regulamentação prevista no caput deverá ser realizada no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias após a entrada em vigor desta Lei.

A inovação proposta vem em boa hora. Contudo, não vemos com bons olhos a delegação da regulamentação do direito de arrependimento para as agências reguladoras. Embora legítima a delegação, muito melhor seria se a regra especial já viesse disciplinada pelo próprio CDC, pois teríamos mais segurança jurídica e evitaríamos que outras agências reguladoras se sentissem motivadas a regulamentar de forma especial o direito de arrependimento em outros tipos de serviços.


[1] REsp 1.340.604/RJ, 2.ª Turma, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 15.08.2013 (Informativo STJ 528).
[2] O STJ ainda não se manifestou a respeito dessa questão, mas nos Tribunais de segunda instância e nos colégios recursais o entendimento majoritário é no sentido de que o artigo 49 do CDC se aplica às compras de passagens aéreas pela internet. A título de exemplo, confiram-se: TJSP, Apelação n. 1021139-89.2016.8.26.0564, 16ª Câmara de Direito Privado, Rel. Daniela Menegatti Milano, j. 30.05.2017; TJRS, Apelação n. 70.075.009.464, 12ª Câmara Cível, Rel. Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout, j. 07.11/2017; TJDF, Recurso 2008.01.1.125046-8 Acórdão 398.269, Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Rel. Juíza Wilde Maria Silva Justiniano Ribeiro, DJDFTE 13.01.2010; e TJBA, Recurso 124461-2/2007-1, Terceira Turma Recursal, Rel. Juiz José Cícero Landin Neto, j. 28.05.2008. Em sentido contrário: TJDF, EIC 20120110360896, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Jair Soares, j. 03.11.2014.
[3] Iniciado no Senado, o Projeto de Lei 281/2002 está em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 3514/2015).

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