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Direito Civil e Discurso de Ódio: A Verdade sobre Quem Executou Marielle Franco

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Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

17/04/2018

Eu realmente preferia estar escrevendo sobre outro tema, mas há, em determinados momentos da vida, fatos que se tornam maiores que tudo. Foi o que aconteceu recentemente entre nós. No mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Brasil chamou a atenção de todo o planeta: a vereadora Marielle Franco, mulher, negra e homossexual, que lutava com garra e obstinação pela preservação dos direitos humanos no Rio de Janeiro, foi executada com quatro tiros em um atentado brutal, que vitimou também seu motorista Anderson Gomes.

No momento em que escrevo essa coluna os jornais afirmam que as autoridades policiais ainda não sabem quem executou Marielle Franco e seu motorista. É cedo para descartar suspeitos: há quem se incline pelas milícias da Zona Oeste do Rio de Janeiro – alvos, no passado, de denúncias de Marielle – enquanto outros atribuem a responsabilidade a policiais do Batalhão de Acari, conhecido como Batalhão da Morte (o que, por si só, já é um dado que mereceria investigação), objeto de suas mais recentes manifestações nas redes sociais. A Polícia Civil ainda busca os responsáveis pelo crime. O Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, ofereceu o auxílio da Polícia Federal, o que foi prontamente descartado pelo Chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, ao argumento de que “a Polícia Civil tem condição de dar uma resposta para esse caso”, expondo, de modo quase infantil, as divergências que ainda imperam entre as diferentes espécies de polícia, divergências que prejudicam o combate à escalada da violência no Rio de Janeiro e no Brasil.

O fato é que o mistério sobre a execução de Marielle continua. Se as autoridades policiais hesitam em adiantar suas conclusões, há gente que, algumas horas após o assassinato, já havia identificado o culpado: a própria Marielle. Brasil afora, manifestações nas redes sociais atribuíram à própria vereadora a responsabilidade pela sua morte. Afinal de contas, gostava de “defender bandidos”. Notícias inverídicas (fake news) sobre a vereadora foram amplamente compartilhadas, afirmando que teria sido casada com um conhecido traficante e eleita por influência do Comando Vermelho, entre outras ficções. Dentre os que atacaram a vereadora nas redes sociais, ganharam notoriedade um deputado federal, que twittou que Marielle seria o “novo mito da esquerda”, e uma magistrada indignada com a repercussão do assassinato, o qual seria fruto de “seu comportamento, ditado por seu engajamento político”, aspecto “determinante para seu trágico fim” – manifestações que, por sua vez, geraram nova onda de injúrias e xingamentos.

Em praticamente todo o mundo, o respeito à morte e ao luto dos familiares é considerado um importante valor da sociedade. Ninguém está isento de sofrer críticas antes ou depois do seu falecimento, mas há uma diferença significativa entre o exercício da liberdade de expressão e o chamado discurso de ódio (hate speech). Enquanto a liberdade de expressão é protegida pelo ordenamento enquanto mecanismo de realização da pessoa humana e de promoção do regime democrático, o discurso de ódio é orientado à agressão a uma pessoa ou grupo, negando a solidariedade imposta pela Constituição da República (art. 3º, I), tratando-se de verdadeiro exercício disfuncional da liberdade de expressão. Mesmo nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão é tratada como uma espécie de regra de ouro (golden rule), o direito se insurge contra os discursos de ódio, ainda que timidamente, estabelecendo limites ao hate speech quando as declarações forem capazes de provocar uma reação imediata e violenta do público (fighting words) ou incitem a prática de atos concretos de violência. Sobre o tema, vale a leitura do artigo de Marcela Maffei, Hate Speech e Liberdade de Expressão (in Anderson Schreiber, Direito e Mídia, São Paulo: Atlas, 2013, pp. 281-303).

Qualquer um tem o direito de se manifestar publicamente sobre a atuação de Marielle Franco como parlamentar. Qualquer um tem o direito de elogiá-la ou criticá-la pela sua atividade pública. Qualquer um tem o direito de concordar ou divergir das suas ideias sobre a sociedade ideal. Ninguém tem, todavia, o direito de injuriá-la ou lhe atribuir a prática de fatos falsos, aproveitando-se da circunstância que não poderá mais se apresentar em juízo para exigir o respeito aos seus direitos. A morte, como se sabe, não extingue a proteção dos direitos da personalidade do falecido, indicando o Código Civil, em seus artigos 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, mais de um legitimado para a propositura de ações de reparação por danos morais, em rol que abrange, por exemplo, os descendentes e os ascendentes da pessoa falecida – rol que, registre-se, deveria ser ainda mais amplo, como já se teve oportunidade de destacar em obra específica sobre o tema (Direitos da Personalidade, São Paulo: Atlas, 3ª ed., 2014, p. 25). Além da família, assessores diretos e militantes políticos que atuaram por anos a fio com Marielle sofrem, a toda evidência, com as injustas agressões que lhe são dirigidas nas redes sociais, mas não podem, segundo a letra fria da lei brasileira, propor ações reparatórias, ainda que pretendendo simples retratação do ofensor. A lei deveria facultar a tais pessoas ao menos a legitimidade para a propositura de ações de reparação não-pecuniária, calcadas não no objetivo de obter uma indenização em dinheiro, mas em restabelecer a verdade, propósito que, de resto, atende aos interesses de toda a sociedade.

Volto a Marielle Franco. Não sei quem a executou, mas tenho uma forte suspeita: quem executou Marielle Franco foi o ódio. Não um ódio subumano que, numa visão elitista, alcançaria apenas as camadas mais carentes da população, não um ódio sobrenatural, privativo de “milicianos”, “policiais corruptos”, “assassinos de aluguel” e outros personagens demoníacos que assombram nossa própria visão sobre o Mal. Não. O ódio que executou Marielle Franco foi o ódio comum. Foi o ódio cotidiano. Foi o mesmíssimo ódio que desfila atualmente nas redes sociais, desrespeitando a dor e o sofrimento, apenas pelo prazer de se exibir. É contra esse ódio que eu gostaria de me insurgir.

Fonte: Carta Forense


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