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Usucapião extrajudicial – what´s new?

USUCAPIÃO

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL

Sérgio Jacomino

Sérgio Jacomino

17/04/2018

A usucapião extrajudicial veio para ficar. Com uma estreia tímida em 2015, no bojo da reforma do novo CPC, veio a ganhar viabilidade concreta somente a partir da Lei 13.465/2017, que modificou a heterodoxa disposição legal em que o silêncio do titular inscrito deveria ser interpretado como discordância em relação ao pedido (§ 2º do art. 216-A da Lei 6.015/1973).

A partir de então, vários pedidos de usucapião extrajudicial ingressaram nos cartórios de Registro de Imóveis de todo o país, transformando a rotina não só de seus oficiais, como dos seus prepostos e, especialmente, de advogados que militam na área.

Até então uma típica ação judicial, o seu processamento nas Serventias Extrajudiciais há de emprestar uma nova dinâmica aos pedidos, acelerando o tempo médio de desenlace da ação, diminuindo custos e promovendo o acesso ao direito. Como não poderia deixar de ser, novas questões foram postas à reflexão dos especialistas que as tem de resolver seja no aproveitamento da longa praxe judiciária no processamento da usucapião, seja pela via da suscitação de dúvida (§ 7º do art. 216-A c.c. art. 198 da LRP).

Algumas dessas questões são tangidas na entrevista elaborada por mim com o registrador paulista Henrique Ferraz de Mello, Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Itapevi. Tendo atuado como juiz de direito nas Varas de Registros Públicos da Capital (1993/1998), granjeou larga experiência e tarimba na direção e processamento de ações de usucapião[1]. A sua entrevista deixa-nos antever a complexidade do tema e o desafio posto aos profissionais do Direito.

Para completar o quadro desta comunicação, disponibilizo abaixo algumas decisões que já afloraram na 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo em decorrência de pedidos que fluem nos cartórios paulistanos.

À medida que a usucapião extrajudicial se acomoda na praxe dos cartórios de Registro de Imóveis de todo o país, novas e instigantes questões hão de entreter os juristas e os interessados em direito civil.

Sérgio Jacomino.

Divulgo, em primeira mão, no GenJurídico, a entrevista realizada em 7/4/2018 com o registrador imobiliário Henrique Ferraz de Mello feita para promoção do I Curso de Extensão em Direito Registral Imobiliário de Catanduva, a realizar-se a partir de 12/5, sob a coordenação do registrador Alexandre Pinho[2].

O Sr. vai se dedicar ao tema da Usucapião Extrajudicial. Como ex-juiz de direito, com grande experiência na Vara de Registros Públicos de São Paulo, como avalia a opção do legislador ao levar às serventias extrajudiciais o processamento da usucapião? Os registradores estão preparados?

Sem dúvida alguma que sim. Conforme já tivemos a oportunidade de assinalar, de acordo com o parecer final lançado pelo senador Vital do Rego, relator da Comissão Temporária do substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado (PLS 166), a usucapião extrajudicial “espelha-se nas experiências exitosas da usucapião extrajudicial da Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida, da retificação extrajudicial e da demarcação extrajudicial de terrenos públicos”. Considerando a inexistência de lide na grande maioria desses processos e a função que deles se exige na depuração dos fatos e de seu confronto com a norma e a situação tabular, ninguém melhor do que o próprio registrador para o processamento da usucapião imobiliária. É preciso deixar assentado que a usucapião é essencialmente um instituto de direito material que independe de qualquer provimento jurisdicional ou administrativo. Trata-se, em breves linhas, de atividade administrativa que pode e deve ser exercida por um experto, que detém o controle do mapeamento da propriedade imóvel em todo o território em que atua.

A atuação jurisdicional se distingue claramente da atividade registral – embora, em alguns casos, ocorra uma progressiva assimilação, por notários e registradores, de parte do que se chamou jurisdição voluntária. Tendo em vista essas diferenças, é possível distinguir as espécies de usucapião e, via de consequência, estabelecer limites e contornos diferenciados? Ou o instituto da usucapião é único e pode ter um tratamento idêntico às ações que correm no Judiciário ou na serventia extrajudicial? Exemplificando, é possível a usucapião judicial de lotes com área inferior aos limites impostos pelo ordenamento urbanístico do município, ou glebas inferiores ao módulo rural. No extrajudicial será possível a usucapião dessas áreas?

A usucapião extrajudicial segue a imagem do processo judicial de usucapião. Não haveria sentido algum desjudicializar um processo, marcado por intensa atividade de administração de interesses públicos e particulares, exigindo uma cognição diferenciada daquela já incorporada secularmente em nosso sistema por meio de jurisprudência e doutrina consolidadas. Mesmo levando em conta a existência de procedimentos diferenciados na via judicial, como ocorre com a usucapião especial rural e urbana, a análise de fundo, isto é, de mérito, deve, smj, seguir o modelo que os tribunais já adotaram. A não ser assim, correr-se-á o risco de a usucapião extrajudicial não cumprir os seus objetivos, esvaziando o núcleo racional de sua própria existência. Tome-se, por exemplo, o caso de o registrador indeferir o pedido de usucapião, porque a área é inferior ao módulo rural ou urbano. O interessado prejudicado seria forçado a veicular o mesmo pedido na esfera judicial, com todos os transtornos que o processo judicial apresenta, alcançando provimento favorável, quiçá, ao cabo de vários anos. Dito de outra forma, a atividade extrajudicial poderia ser considerada inócua e danosa. Ao final, o registrador que recusara o pedido na esfera extrajudicial ainda poderia, hipoteticamente, sujeitar-se a penalidades, caso o juiz entendesse que o indeferimento teria sido sem um justo motivo.

A usucapião extrajudicial é um modo originário de aquisição?

Entendo que sim. A usucapião é fato que não se subordina à vontade do dono. É modo de aquisição originária. Não cabe exigir a concordância expressa do proprietário como fazia o texto anterior, em boa hora alterado pela Lei 13.465/2017. A contumácia do dono não equivale a alguma espécie de discordância ou impugnação. A lei se ocupa com a concordância expressa na planta da área usucapienda, mas sob outro enfoque, de dar ao processo maior celeridade. Trata-se de providência que será suprida com a notificação sem resposta. Em nosso livro já tivemos a oportunidade de expor sobre a divergência de entendimentos doutrinários sobre a natureza da usucapião, acentuando que se entende tratar de aquisição originária, entre outros: “PEREIRA, Virgílio de Sá. Direito das coisas: arts. 524-673. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1924. (Manual do Código Civil Brasileiro – Coordenação de Paulo de Lacerda, v. 8); GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 187; LOUREIRO, Francisco Eduardo, Artigos 1.196 a 1.510 – Coisas, in Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência, cit., p. 1.060; MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. v. 11, p. 117; SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 32; JUSTO, António dos Santos, Direitos reais, cit., p. 279; ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos reais. Lisboa: Editorial Minerva, 1971. p. 337; DÍEZ-PICAZO, Luis, Fundamentos del derecho civil patrimonial, cit., v. 3, p. 786; ROTONDI, Mario. Instituciones de derecho privado. Barcelona: Labor, 1953. p. 275. Sem se posicionar, salientando se tratar de questão obscura: MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de direito civil: direito das coisas, cit., v. 3, p. 145. Contra: entendendo se tratar de forma derivada de aquisição: PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil, cit., v. 4, p. 118. Todavia, na esteira do que assevera Orlando Gomes, em edição mais antiga e no ponto mais completa (Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense: 1988. p. 129), a concepção contrária à forma originária de aquisição deriva da ótica sobre a qual se analisa o instituto, isto é, o modo de adquirir seria originário para alguns, quando o ‘domínio surge pela primeira vez na pessoa do adquirente’. Em edição mais recente, atualizada por Luiz Edson Facchin, limita-se a expor que a usucapião não estabelece vínculo entre o proprietário e o possuidor que adquire a propriedade, havendo quem sustente que se trata de aquisição de modo derivado, sob o fundamento de que não se trata de direito novo (Direitos reais, 19. ed., cit., p. 187). José Carlos de Moraes Salles, bem a propósito, dilucida, com base em voto do ministro Moreira Alves, que a opinião discordante de Caio Mário da Silva Pereira se deve à mudança de critério normalmente utilizado pelos juristas para pesquisar a natureza da usucapião, no sentido de que o jurista segue a linha de entendimento de Brinz, que não se baseia na existência ou não da transmissão, mas sim no ‘fato de a coisa ter tido, ou não, anteriormente dono’ (Usucapião de bens imóveis e móveis, cit., p. 33). Sustentando que a usucapião constitui um modo intermédio entre a aquisição originária e derivada: RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1972. v. 2. p. 385”.

Podem ser usucapidos outros direitos que não a propriedade? Direitos reais de uso ou concessões administrativas podem ser objeto de usucapião?

Conforme já tivemos a oportunidade de expor, a “usucapião incide tanto sobre a propriedade plena, quanto para outros direitos reais que demandam a posse dos objetos sobre que recaem, especialmente os direitos reais de gozo e fruição de coisa alheia. Tais se incluem o domínio útil na enfiteuse, a superfície, o usufruto, o uso, a habitação e a servidão aparente. Como adverte Francisco Eduardo Loureiro, “Com exceção da servidão aparente, os demais direitos reais sobre coisa alheia, normalmente serão adquiridos por usucapião ordinária, com justo título, constituído por quem não é o verdadeiro proprietário, no caso clássico da aquisição a non domino”.  Por outro lado, em relação às concessões administrativas, calha distinguir. As concessões de serviços e obras públicas não podem ser objeto de usucapião, não apenas em razão da necessidade de realização de prévia concorrência, mas sobretudo porque direitos pessoais não podem ser objeto de usucapião. No que se refere à concessão de uso para fins de moradia, há quem defenda se tratar  de “uma espécie de usucapião que não acarreta a aquisição da propriedade, mas sim da ‘concessão de uso especial para fins de moradia’” , segundo o art. 1º. da MP 2.220: “Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural”. A questão é que a via procedimental escorreita seria outra, não a da usucapião.

Qual seria?

O texto legal é claro em predispor que: “o título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial” (art. 6º). Além disso, em caso de ação judicial, a concessão de uso especial para fins de moradia será declarada pelo juiz, mediante sentença (§ 3º, art. 6º) Isto é, a ação nesse caso não é a de usucapião de concessão de direito real de uso para fins de moradia, mas pura e simplesmente declaratória da concessão de uso especial, a despeito da necessidade de preenchimento de requisitos parelhos (art. 183 § 1º da CF). Bem diversa se entremostra a concessão de direito real de uso concebida pelo Decreto-Lei 271/1967, pois, dependendo, de regra, de autorização legal e concorrência prévia, inconcebível cogitar de usucapião à revelia da autoridade administrativa e do devido processo legal. Em todo e qualquer caso, descabe confundir a vedação da usucapião de bens públicos com direitos reais de uso sobre esses bens.

Áreas adéspotas (sem titularidade e/ou inscrição tabular) podem ser usucapidas? Terras devolutas se presumem do estado ou do particular?

Entendemos que tais áreas possam ser usucapidas. A falta de titulação não induz à ilação de se tratar de terra devoluta ou do Estado. Cumpre destacar que terras devolutas não são terras adéspotas. Se o imóvel não possui registro, não é por isso que se deva concluir pela negativa do pedido, nem que se trata de terra devoluta. Se, diante das descrições constantes dos autos, não for possível localizar registro algum, na serventia atual ou nas predecessoras, a única solução que se impõe é a notificação daquele em cujo nome deveria estar transcrito ou matriculado o imóvel, como interessado incerto. Fiamo-nos na lição de Benedito Silvério Ribeiro, para quem, com apoio em jurisprudência do Eg. STF, “a simples ausência de transcrição imobiliária em nome de particular não conduz à presunção juris tantum de ser devoluta terra assim caracterizada”. No mesmo sentido Pontes de Miranda: “[Se] alguém as possui ad inerdicta  ou ad usucapionem  e o Estado afirma que são terras devolutas no sentido do Decreto-Lei n. 9.760, tem o Estado o ônus da prova”.

O registrador pode diligenciar e verificar in loco a situação possessória? Pode fazer dilação probatória? realizar audiências? Tais atividades não são próprias do notário?

Afirmativa a resposta. Compete ao oficial do registro de imóveis promover, de ofício ou a pedido do requerente (ou de algum interessado), as diligências úteis e necessárias, visando à elucidação de qualquer ponto de dúvida (art. 216-A, § 5º, da Lei 6.015/73): “[P]ara a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis”. Ao notário cabe a realização de diligências de constatação da posse, previamente à distribuição do pedido, com vistas à elaboração da ata notarial. Demais disso, o parágrafo 15 do artigo 216-A da Lei 6.015/73 expressamente consignou que, no caso de ausência ou insuficiência dos documentos de prova do exercício da posse qualificada e de seu lapso temporal, tais fatos poderão ser comprovados em procedimento de justificação administrativa perante a serventia extrajudicial, que obedecerá, no que couber, ao disposto no § 5º do art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383 do CPC.

No curso de um processo extrajudicial de usucapião o Oficial pode presidir uma audiência de transação amigável, diante de uma possível impugnação, e reduzir o acordo a termo e registrá-lo? Qual a natureza jurídica dessa aquisição? Pode aplicar analogicamente o disposto no parágrafo 6º do art. 213 da LRP?

Parcialmente afirmativa a resposta. Pode o oficial presidir a audiência de tentativa de conciliação e reduzir a termo o acordo. Porém, não é o termo de acordo que vai a registro, pois a usucapião é forma de aquisição originária e não derivada. É a decisão de deferimento que o oficial houver de proferir, independentemente de eventual acordo, haja vista que a usucapião se opõe erga omnes, e deve ser suficientemente provada, não se achando adstrita a avenças dos interessados. Com relação à audiência de tentativa de conciliação, observe-se o disposto no artigo 18 do Provimento 65/CNJ: “Art. 18. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas”. Assim também dispõe o item 429 das Normas de Serviço da Eg. CGJSP, Tomo II: “429. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o Oficial de Registro de Imóveis tentará conciliar as partes (…)”.

A LRP admite a suscitação de dúvida na usucapião “em qualquer caso” (§ 7º do art. 216-A). É necessário esgotar todas as diligências, buscando o saneamento do pedido (como sugere o parágrafo anterior) ou a suscitação de dúvida pode se dar em qualquer fase do processo? Se positivo, teremos um julgamento condicional de dúvida registral? (i.e., dúvida julgada procedente parcialmente).

Como salientamos em outro trabalho, prevê a lei que, em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos do artigo 198 da Lei n. 6.015/73. Portanto, da decisão que formula exigências, determina ou indefere a realização de determinada prova, acolhe ou indefere o pedido, homologa acordo ou desistência, que remete o feito ao Juízo competente da via jurisdicional etc. cabe ao interessado, qualquer que seja ele, não apenas o requerente suscitar a dúvida (rectius: recurso administrativo de dúvida) para o juiz corregedor permanente, ou para quem as leis de organização judiciária de cada Estado estabeleçam, no prazo de 15 dias, por força da aplicação da regra prevista no artigo 198, III, da Lei n. 6.015/73. Em suma, é possível recurso de dúvida em toda e qualquer decisão ou despacho de conteúdo decisório, indistintamente.

Haverá julgamento condicional?

Não haverá julgamento condicional de dúvida. Havendo sido prolatada decisão que invariavelmente repercutirá na análise do mérito, se contra ela houver sido suscitada dúvida, tal será levado em conta por ocasião do julgamento do pedido. A problemática que disso resulta diz respeito à paralisação do processo, diante da interposição de mais de um recurso de dúvida em fases que antecedem o julgamento final, daí porque não seria desarrazoado imaginar a possibilidade de um único recurso apenas da decisão que rejeita ou acolhe o pedido, sem se olvidar da integral análise das questões objeto das decisões anteriores que não seriam alcançadas pela preclusão[3].

Como processar pedidos de usucapião de imóveis situados em comarcas limítrofes?

Na esteira do que determinado no artigo 2º do Provimento 65/CNJ, o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião “será processado diretamente no ofício de registro de imóveis da circunscrição em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele”. Portanto, havendo imóvel situado em duas circunscrições diferentes, o pedido será processado perante a serventia em que a maior parte da área esteja localizada. Não sendo possível discriminar a maior porção, ou sendo elas iguais, quer nos parecer, o pedido pode ser veiculado em qualquer das serventias vizinhas, adotando-se o critério da competência concorrente[4].

A lei prevê a “justificação administrativa” nos casos de “ausência ou insuficiência dos documentos” de que trata o inciso IV do caput do art. 216-A da LRP. A justificação é um processo autônomo na serventia? Ela acarreta o sobrestamento da usucapião no caso de sua ocorrência?

O § 15 do artigo 216-A da Lei 6.015/73, já citado anteriormente, franqueou ao interessado a possibilidade de suprir a falta ou insuficiência de parte da documentação que há de ser instruída ao pedido por meio de procedimento de justificação administrativa perante a serventia imobiliária, mandando obedecer, no que couber, ao disposto no § 5º do art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383 do CPC. Cumpre alertar que todos esses dispositivos do CPC vêm situados no capítulo atinente à produção antecipada de prova. A prova documental a que se reporta o § 15 supra recai sobre o “justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel” (inciso IV). Quanto ao justo título, é intuitivo que não possa ser substituído por nenhuma outra prova documental que não seja uma representação gráfica do seu próprio conteúdo e forma. Seria impossível, reconstituir um “justo título”, por exemplo, mediante oitiva de testemunhas. Todavia, não está descartada, por exemplo, uma perícia de reconstituição de uma escritura ilegível ou danificada no livro. Levada ao pé da letra a norma do CPC, a questão seria, via de regra, deslocada para uma fase antecedente ao protocolo da usucapião extrajudicial. Tratar-se-ia de uma espécie de procedimento preparatório da usucapião extrajudicial. Assim, verificando o interessado a existência de risco de  que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência do processo extrajudicial de usucapião, poderia, desde logo, requerer a abertura de procedimento de justificação administrativa, apresentando as razões que justificam a necessidade de antecipação da prova. Dada a circunstância de que o processo administrativo não deve ser mais penoso do que o judicial, a solução, que se nos parece mais apropriada, deverá levar em consideração a possibilidade de suprimento da falta ou insuficiência dos documentos comprobatórios acima enunciados, durante o curso da usucapião extrajudicial. Sob esse aspecto, a abertura de outro procedimento no mesmo processo, de forma incidental, não parece atender aos requisitos de presteza e eficiência dos serviços públicos, pois se é dado ao oficial, mesmo de ofício, realizar diligências para esclarecimento de qualquer ponto de dúvida, não menos certo concluir que a prova complementar seja feita de uma única vez, e sem necessidade de instauração de novo procedimento, com novas notificações etc., considerando mais que a usucapião extrajudicial não é mais do que uma justificação administrativa, conforme se pode inferir, aliás, do direito lusitano, peruano, argentino e chileno. Nisso não está excluída a possibilidade de antecipação da prova pelo oficial, independentemente de maiores formalidades, uma vez atendidos os requisitos de urgência e necessidade na sua realização.

No site www.kollemata.com.br, aberto graciosamente a todos os interessados, os profissionais que atuam na área do direito imobiliário (especialmente no Registro Imobiliário) vão encontrar o mais especializado e atualizado repositório de jurisprudência registral imobiliária do país.

Nesta edição destacamos algumas decisões recentes que tratam do tema da usucapião extrajudicial.

– 1VRPSP –

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. ALDEAMENTO INDÍGENA. SPU – IMPUGNAÇÃO. UNIÃO FEDERAL – BEM PÚBLICO. Antigo aldeamento indígena – impugnação promovida pela União Federal pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). “Os terrenos de antigos aldeamentos indígenas não podem mais ser considerados bens da União, se sobre tais terras já existem cidades, bairros e vilas”. Não se pode “considerar terra tradicionalmente ocupada por indígenas aquela que, há mais de um século, já não registra traço de cultura autóctone”. Impugnação afastada e rejeitada a alegação de domínio público federal sobre o imóvel usucapiendo. Processo 1104657-74.2017.8.26.0100, j. 23/1/2018, Dje 5/2/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://bit.ly/2HvJAx9.

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL – IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA. CONCILIAÇÃO – AUDIÊNCIA. CONFLITO DE NORMAS – CONTRADIÇÃO – NORMATIZAÇÃO. Ocorrendo a hipótese de impugnação fundamentada, o Oficial deverá buscar a conciliação entre as partes. No insucesso, remeterá o processo ao juízo competente que julgará a impugnação. Caso mantida, este devolverá o processo ao Oficial, que extinguirá o procedimento e a prenotação, cabendo ao interessado buscar a via judicial se entender pertinente o prosseguimento do feito deste modo (ementa não oficial). Processo 1000162-42.2018.8.26.0100, j. 12/3/2018, Dje 20/3/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://bit.ly/2qwiKdV.

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. ATA NOTARIAL – IMPRESCINDIBILIDADE. Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Inafastabilidade, em regra, da exigência de ata notarial – Documento que garante a autenticidade do procedimento e das alegações do requerente – Dúvida julgada procedente. Processo 1002887-04.2018.8.26.0100, j. 12/3/2018, Dje 16/3/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://bit.ly/2Hpv75M.

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. ATA NOTARIAL – IMPRESCINDIBILIDADE. Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Inafastabilidade da exigência de ata notarial – Documento que garante a autenticidade do procedimento e das alegações do requerente – Procedimento formal, que necessita de petição explicitando a pertinência da usucapião, e não simples pedido para dar início ao procedimento – Dúvida julgada procedente. Processo 1004203-52.2018.8.26.0100, j. 12/3/2018, Dje 16/3/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://bit.ly/2JKZWjL.

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL – MODO ORIGINÁRIO DE AQUISIÇÃO. DÚVIDA – SUSCITAÇÃO. CND DO INSS. LIMITAÇÕES DO DIREITO URBANÍSTICO. Cabimento do pedido de dúvida em qualquer fase do processamento – Autuação – Recebidos os documentos previstos no item 425 do Capítulo XX das NSCGJ e o requerimento na forma do Art. 3º do Provimento 65/2017 do CNJ, deve o Oficial autuar o pedido, com a prorrogação da prenotação, não podendo, desde logo, negar o pedido com base em seu mérito, devendo analisar apenas o aspecto formal do requerimento neste momento – Usucapião extrajudicial que se trata de alteração no procedimento, por não haver lide, mas que não altera a natureza originária da prescrição aquisitiva – Impossibilidade de se negar o pedido de ofício, com base em suposta violação das regras referentes ao parcelamento do solo previstas na Lei 6.766/79, reservado o direito do Município alegar, se oportuno, alguma irregularidade quanto a este ponto, além de dever ser observado, em todos os casos, o disposto no §2º do Art. 13 do Provimento 65/2017 do CNJ – Forma originária que dispensa a necessidade de apresentação de CND – Dúvida julgada improcedente, determinando-se a continuidade do processamento do pedido de usucapião extrajudicial – remessa à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, para eventual efeito normativo da matéria. Processo 1008143-25.2018.8.26.0100, j. 6/4/2018, Dje 17/4/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli. http://bit.ly/2qDrQWX.

CSMSP

CSMSP – USUCAPIÃO. CIRCUNSCRIÇÃO IMOBILIÁRIA. TERRITORIALIDADE. MATRÍCULA – CANCELAMENTO. BLOQUEIO DE MATRÍCULA EX OFFICIO. Usucapião de imóvel localizado em circunscrição imobiliária diversa. Princípio da territorialidade – Desqualificação correta – Título que deve ser apresentado no Registro de Imóveis de Itaquaquecetuba – Bloqueio de matrícula pelo Registrador – Impossibilidade – Determinação administrativa do cancelamento da matrícula, em virtude de se referir a imóvel pertencente a outro Município – Apelação desprovida, com determinação. AC 1001141-04.2016.8.26.0543, Santa Isabel, j. 17/10/2017, Dje 15/3/2018, rel. des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. http://bit.ly/2JK1gDo.

TRF-3

USUCAPIÃO. HIPOTECA. SFH. Usucapião de imóvel financiado pelo SFH e com garantia hipotecária. Ausência de animus domini. Os imóveis vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação não podem ser objeto de usucapião. AC 0004582-03.2013.4.03.6100/SP, , j. 20/2/2018, Dje 2/3/2018, rel. Cotrin Guimarães. http://bit.ly/2qyldVL

USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. BEM PÚBLICO – UNIÃO. REDE FERROVIÁRIA FEDERAL – RFFSA. Os bens imóveis originariamente integrantes do acervo das estradas de ferro da RFFSA foram incorporados pela União (Lei 11.483/2007), portanto, são considerados bens públicos, não estão sujeitos à usucapião (Lei nº 3.115/57 e Decreto-lei nº 9.760/46 e CF §3º do art. 183). Súmula 340 do STF: “Desde a vigência do Código Civil de 1916, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. AC 0013893-34.2008.4.03.9999/SP, j. 5/3/2018, Dje 13/3/2018, rel. Maurício Kato. http://bit.ly/2HFR12t.

USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. HIPOTECA. SFH. Imóvel objeto do SFH. Hipoteca em favor da CEF/EMGEA. O financiamento do imóvel pelo Sistema Financeiro da Habitação atrai sobre ele o regime de direito público. A hipoteca do imóvel à CEF para garantia da dívida acarreta a precariedade da posse, incapaz de conferir justo título à aquisição do bem, descaracterizado o animus domini. AC 0000439-68.2009.4.03.6113/SP, j. 5/3/2018, Dje 13/3/2018, rel. Maurício Kato. http://bit.ly/2HHMwEK.

USUCAPIÃO DE TERRENO DE MARINHA. OCUPAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE ENFITEUSE. Impossibilidade de usucapião por ausência de demonstração do domínio útil de imóveis públicos, inexistindo prévia enfiteuse. Na ocupação inexistem vínculos jurídicos definitivos entre o ocupante e o bem ocupado, caracterizada pela precariedade, enquanto na enfiteuse o vínculo é seguro, constituindo um direito real imobiliário. Os terrenos de marinha, reconhecidos constitucionalmente como bens públicos (CF/88, art. 20, inciso VII), não podem ser adquiridos por usucapião, conforme preceitua o art. 183 da Constituição Federal. AC 0012749-36.2009.4.03.6104/SP, j. 5/3/2018, Dje 13/3/2018, rel. Maurício Kato. http://bit.ly/2vlQkJ6.


[1] Henrique Ferraz de Mello é o Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Itapevi/SP. Membro da Comissão do Pensamento Registral Imobiliário (CPRI/IRIB). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Civil – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutorando em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi juiz de direito em São Paulo, tendo atuado preponderantemente nas Varas de Registros Públicos da Capital (1993/1998). Publicou obras e artigos sobre o tema. Foi advogado vários anos e de 2002 a 2007 sócio do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra advogados, atuando na área contenciosa cível e registral.
[2] Para os interessados as inscrições estão abertas: http://bit.ly/2H9BqLC.
[3] Após a entrevista, foi publicada a sentença da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo trtando do tema. V. Processo 1008143-25.2018.8.26.0100, j. 6/4/2018, DJe 17/4/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli
ESPECIALIDADES: Registro de Imóveis. http://bit.ly/2qDrQWX.
[4] V. AC 1001141-04.2016.8.26.0543, Santa Isabel, j. 17/10/2017, Dje 15/3/2018, rel. des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. http://bit.ly/2JK1gDo.
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