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JURISPRUDÊNCIA

Servidão legal ou passagem forçada?

CÓDIGO CIVIL

PENHORA

RESP 1.268.998-RS

SERVIDÃO LEGAL

Sérgio Jacomino

Sérgio Jacomino

19/04/2018

No STJ encontramos a renovação da jurisprudência brasileira. Muitos acórdãos inovam, outros confirmam a doutrina. Há, contudo, alguns arestos que podem ser objeto de boas discussões.

É o caso do REsp 1.268.998-RS, da relatoria do min. Luís Felipe Salomão.

Discutia-se a possibilidade de penhora incidir sobre imóvel encravado. O executado havia oposto embargos sustentando que os imóveis de sua propriedade seriam impenhoráveis, pois “o primeiro deles é sua residência e o segundo está encravado no imóvel residencial”.

O tribunal entendeu perfeitamente possível a penhora com base no fato de que os imóveis têm matrícula própria no Registro de Imóveis competente. Nos termos do inc. I, § 1º, do art. 176 da LRP, com base no “princípio da unitariedade matricial”, o imóvel encravado, “por ter matrícula própria, constitui um segundo bem imóvel do executado”, sendo, portanto, perfeitamente possível a penhora.

Para superação do óbice à inscrição da constrição judicial, o ministro relator acenou para a possibilidade de se instituir uma “servidão legalem caráter precário, isto é, de direito de vizinhança, e não de servidão (predial), da qual distingue-se, em inúmeros pontos, visto que aqueles direitos são limitações impostas por lei ao direito de propriedade, restrições estas que prescindem de registro”. Decidiu, ainda, que, previamente à expropriação judicial, caberia ao juízo executivo delimitar judicialmente a passagem.

Vamos analisar os vários aspectos que este aresto suscita.

Preliminarmente, concorda-se com o resultado do recurso. Será perfeitamente possível a penhora de imóvel encravado. Todavia, exsurge uma dissonância conceitual acerca dos institutos tratados no v. acórdão. Veremos que a expressão – servidão legal, citadanão foi acolhida e prestigiada no ordenamento civil brasileiro. Já a expressão passagem forçada sim.

Pergunta-se: (a) por qual razão, no v. acórdão, se adotou, na própria ementa, a primeira expressão em detrimento da segunda? (b) será possível, ainda no iter executivo, com a penhora decretada e sua inscrição no Registro competente, impor desde logo a passagem forçada?

A codificação civil não adotou a expressão servidão legal[1], embora o termo tenha transitado pela legislação (inc. II do art. 1.558 do CC/1916 ou no art. 77 do Código de Águas).

A chamada servidão legal insinuou-se, de fato, em nosso direito. Lafaiete já a recolhia aludindo à servidão legal de trânsito para favorecer “prédio encravado sem serventia de caminho pelos prédios vizinhos para a via pública”[2].

Contudo, no desenvolvimento da doutrina, como observa Pontes de Miranda, o conceito de servidão legal seria mais e mais estranho ao direito brasileiro. A figura “englobava limitações ao direito de propriedade (direitos limitativos, direitos por fora do direito de propriedade, portanto nunca direitos sobre coisa, ou gravame de domínio) e relações jurídicas diferentes, que ofereciam dificuldade ao jurista que as queria conceituar e classificar. E continua:

“Desde que se chegou à maturidade da investigação, caracterizando-se, suficientemente, os direitos limitativos, os direitos formativos geradores de servidão e os direitos de servidão propriamente ditos, o conceito de servidão legal passou a ser inadmissível, e não só incorreto[3]. (Destaque nosso).

Para o tratadista, o direito de passagem “é, elipticamente, poder contido no direito de propriedade; o dever de tolerar é contido na propriedade do dono do prédio que tem de dar a passagem. Não há pensar-se em servidão legal, conceito já superado; há, precisa e exatamente, limitação e extensão das propriedades em proximidade. O vizinho que tem de passar não exerce direito que grave a outra propriedade; exerce o próprio domínio”[4].

Os direitos da vizinhança simplesmente limitam o conteúdo do direito de propriedade, diferentemente da servidão convencional, por exemplo, que não limita nem diminui o conteúdo do direito de propriedade, só o restringe no tocante ao exercício.

São bastante conhecidas as distinções que Pontes de Miranda faz entre restrição e limitação de direito. A expressão restrição aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade[5].

As diferenças entre os institutos são muito bem-postas por Washington Monteiro de Barros. Na servidão predial há a sujeição de um prédio a outro – ditos serviente e dominante. Já na limitação de direito de vizinhança a sujeição é recíproca, “sendo os prédios, ao mesmo tempo, servientes e dominantes”. Além disso, como já sustentava Pontes de Miranda, as limitações decorrentes da vizinhança são “imanentes à propriedade” e surgem simultaneamente com o próprio direito[6]. Portanto, as servidões legais constituem os chamados direitos de vizinhança[7].

Igualmente esta é a opinião de Caio Mário da Silva Pereira que funda o direito de passagem forçada como expressão do “princípio de solidariedade social”[8]. Para ele as ditas “servidões legais” são apelidos inadequados[9].

Enfim, esta distinção, já clássica em nosso Direito, parece estar na base na classificação metodológica adotada pelo nosso Código Civil.

Não tem sentido, portanto, falar-se em servidão legal no estágio atual de nossa doutrina.

Parece haver outra imprecisão no v. acórdão. O ministro que proferiu o voto-vogal aludiu à peculiar situação do imóvel encravado, lançando uma interpretação da expressão bastante original. Segundo ele, “somente o que pode estar encravado em um terreno é uma construção, uma casa, um edifício, ou uma benfeitoria, mas um terreno não pode estar encravado em outro terreno”.

Não nos parece correta tal interpretação. O imóvel dito encravado é o “insulado”, na expressão de Lafaiete[10], isto é, o que não conta com acesso à via pública, nascente ou porto, nos termos do art. 1.285 do Código Civil em vigor.

Lenine Nequete nos esclarece muito bem este ponto:

“Para haver encravamento impõe-se que o prédio, confinando ou não com a via pública, a) não tenha saída para ela, nem possa buscar-se uma, ou, podendo, somente a conseguiria (razoavelmente cômoda) mediante uma excessiva despesa ou trabalhos desmesurados; ou b) a saída de que disponha (direta, indireta, convencional ou mesmo necessária) seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou ampliá-la – ou porque isto é impossível, ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente incômoda) requereriam por igual gastos ou trabalhos desproporcionados”[11].

O imóvel encravado não conta com serventia de caminho pelos prédios vizinhos para acesso à via pública.

O v. acórdão prevê que a passagem forçada há de ser declarada no iter do processo executivo – antes mesmo de consumada a expropriação judicial. Vale o recorte do respeitável voto para maior clareza:

“Por último, é de todo prudente sublinhar que, tendo em mira que o objetivo da atividade jurisdicional é pacificar conflitos – e não criar outros -, e também para o sucesso da atividade jurisdicional na execução, previamente à expropriação do imóvel encravado, cabe ao Juízo da Execução delimitar judicialmente a passagem, estabelecendo o rumo, sempre levando em conta, para a fixação de trajeto e largura, a menor onerosidade possível ao prédio vizinho e a finalidade do caminho”. (Voto, destaque nosso).

Notem que a lei pressupõe titularidades diversas (art. 1.285 do CC.). Faculta-se ao dono do prévio encravado “constranger o vizinho a lhe dar passagem”. A expressão “vizinho” é o proprietário distinto do prédio próximo a via pública – diz Pontes de Miranda[12].

A necessidade de existência atual de titularidades distintas parece insuperável. Bastaria que se questionasse: quem será o legitimado ativo na postulação da passagem forçada? O depositário? O exequente? Nem o mero possuidor está legitimado.

Salvo melhor juízo, deve-se esperar a consumação da expropriação judicial para que se forme a situação jurídica propiciadora da legitimação ad causam para a postulação da passagem forçada.

Pergunta-se: a passagem forçada pode ser objeto de registro?

A resposta é não. As limitações ao conteúdo do direito de propriedade são irregistráveis. Tal é o caso do direito de vizinhança[13]. Se a passagem forçada for objeto de inscrição ter-se-á concedido servidão, “que lhe fez as vezes”[14].

É de Serpa Lopes a melhor doutrina. Segundo ele, baseado na doutrina italiana, em regra as “servidões legais escapam ao registo imobiliário, em geral por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência”[15]. Diz, ainda, que as restrições legais (servidões legais) não se confundem com as servidões prediais, não estando, portanto, subordinadas à inscrição imobiliária[16].

Aliás, o reconhecimento do direito de passagem, por acordo ou sentença judicial, não prefigura a sua constitutividade.

O advento da Lei 13.097/2015 gerou uma discussão acerca da mal chamada concentração na matrícula. A qualificação não é adequada, pois o sistema brasileiro acolhe limitadamente os fatos inscritíveis, cujo rol de referência continua sendo o art. 167 da Lei 6.015/1973. Certamente não se constituirá a matrícula uma espécie de repositório universal de todas as vicissitudes dos direitos reais ou daqueles que reclamam a eficácia real.

Voltemos nossa atenção ao inciso III do art. 54 da Lei 13.097/2015 que prevê a “averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados”.

Neste passo, pergunta-se: calharia, neste dispositivo, a disposição judicial de instituição de passagem forçada – como no caso aqui aventado?

Penso que não. A expressão “restrição”, como vimos, aponta para atos e negócios jurídicos que diminuem o conteúdo dos direitos ou mitigam seu exercício. Os direitos de vizinhança representam uma limitação legal ao direito de propriedade.

Portanto, a situação de iura vicinitatis não é suscetível de registro. Trata-se de emanação do próprio domínio.

A matriculação de imóvel encravado não é inédito. Posto seja possível a matriculação de imóvel nessa situação, a inscrição da penhora não representaria maior problema e nem seria necessário esventrar as minúcias do instituto do direito de vizinhança.

O próprio Código Civil prevê que a alienação parcial do prédio, “de modo que uma das partes perca o acesso a via pública” obriga o novo proprietário a tolerar a passagem (§ 2º do art. 1.285).

O encravamento do imóvel pode ocorrer em virtude de atos de terceiros, como a desapropriação da parte confinante com a via pública, por exemplo, ou em decorrência de divisão, partilha ou expropriação judicial. Diz o mesmo Lenine Nequete que é “indiferente que se trate de alienação voluntária ou forçada: o comprador em hasta pública tem direito à passagem forçada sobre a outra parte do prédio do proprietário executado”[17].

A jurisprudência registral do Estado de São Paulo, em mais de uma ocasião, tratou do tema da matriculação de imóvel encravado. Permito-me trazer à apreciação o decidido na Ap. Civ. 8.730-0/0, da qual se destaca o parecer elaborado pelo Dr. Aroldo Mendes Viotti:

“Razão assiste ao apelante: a lei não veda o registro da aquisição de imóvel encravado. A tanto não equivale a disposição do artigo 176, § 1º, II, “a” da L.R.P. até porque é da sistemática registrária e inscrição (registro stricto sensu) das servidões em geral (artigo 167, I, 6, da Lei n. 6.015/73). Acresce que o ingresso do título em exame não inova quanto à situação registrária existente, no que respeita à observância do princípio da especialidade. A tábua predial já consagra a existência de prédio encravado, remanescente de área maior, e injurídico seria obstar-se ao “dominus”, por tal motivo, o exercício da livre disponibilidade sobre o bem. De resto, acertada a ponderação do apelante no sentido de que o registro do título aquisitivo se afigura como condição mesma para o exercício da faculdade prevista no artigo 559 do C. Civil”[18].

Do mesmo jaez o decidido na Ap. Civ. 573-6/6, cuja ementa é a seguinte:

“Registro de Imóveis – Alienação parcial de imóvel – Parte remanescente, que permanecerá sob a propriedade dos vendedores, ficará supostamente encravada – Hipótese que não impede o registro – Além da eventual servidão de trânsito, o Código Civil ainda assegura o direito à passagem forçada – Inteligência do seu artigo 1.285, § 2º – Recurso provido para que o Procedimento de Dúvida seja julgado improcedente”[19].

Por fim, cite-se o decidido na Ap. Civ. 1.168-6/5, em que se decidiu pela possibilidade de se registrar área encravada: “[N]ada impede que se adquira, por doação ou outro meio, imóvel encravado. Nem que se registre tal aquisição, desde que ele se ache devidamente especializado”[20].

À guisa de conclusão, podemos afirmar que a decisão enfrentou adequadamente o problema posto à apreciação da corte. Todavia, melhor seria ajustar os termos dos institutos, tendo em vista a tradicional civilística pátria, que bem distingue as hipóteses de servidão, direito de vizinha, restrição e limitação da propriedade privada.


[1] SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de Registos Públicos. Vol. III. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 4ª ed. 1961, n. 431, p. 118.
[2] PEREIRA. Lafaiete Rodrigues. Direito das Cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, § 125-E, n. 1. Sabemos que a doutrina portuguesa, que tão grande importância representou para nós, desde muito cedo distinguiu as servidões dos direitos intervicinais. A expressão adotada no acórdão – servidão legal – certamente rende tributos à codificação francesa com a repartição das servidões em naturais, legais e convencionais. Para uma visão panorâmica do direito português antigo consulte: SAN TIAGO DANTAS. F. C. de. O Conflito de Vizinhança e sua Composição. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed. 1972, p. 215 et seq. n. 109.
[3] PONTES DE MIRANDA. Tratado, Tomo XVIII, § 2.204.
[4] Idem. Tratado, Tomo XIII, § 1.542, n. 4.
[5] Idem. Tratado, Tomo XI, § 1.163, 1, 2 e § 1.164.
[6] MONTEIRO. Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 128.
[7]Idem, ibidem, p. 251.
[8] PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. IV, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 137, n. 323.
[9]Idem, ibidem, p. 132 e p. 170, n. 336.
[10]Op. Cit. nota 2, p. 293, § 125. Na nota 1 o civilista indica algumas hipóteses em que se pode dar o encravamento.
[11] NEQUETE. Lenine. Da Passagem Forçada, Porto Alegre: Livraria Editora Porto Alegre, 3ª edição, 1985, págs. 21 e22.
[12] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Predial. V. I, Rio de Janeiro: José Konfino, 1947, p.190, n. 3.
[13] PONTES DE MIRANDA. Op. cit. nota 3. Tomo 11, § 1.223, n. 1 e 2.
[14] PONTES DE MIRANDA. Op. cit. nota 12, p. 192, n. 8.
[15]Idem, ibidem nota 1, p. 119.
[16]Idem, ibidem, p. 122.
[17] Op. cit. nota 11, p. 41.
[18] Ap. Civ. 8.730-0/0, São Paulo, j. 15/8/1988, DJ 8/9/1988, rel. des. Milton Evaristo dos Santos.
[19] Ap. Civ. 573-6/6, Catanduva, j. 21/11/2006, DJ de 29/1/2007, rel. des. Gilberto Passos de Freitas.
[20] Ap. Civ. 1.168-6/5, São Bernardo do Campo, j. 6/10/2009, DJ 3/12/2009, rel. des. Reis Kuntz.

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