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A laqueadura de Mococa e os filhos de chocadeira! Nada é por acaso!

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Lenio Streck

Lenio Streck

19/06/2018

Estamos acabando com as palavras. Textos longos não são lidos. Fotos são as mais curtidas. Tem gente que curte e não lê. Não abre o texto. Como é possível que alguém curta algo sem ler? Como o curtidor pode falar do texto se não abriu o link? Claro que não me refiro a você, que está lendo esta coluna agora. Refiro-me ao “outro”. De todo modo, peço que, ao ler isto, avise a esse “outro”. Pronto. Agora já pode olhar os quadrinhos abaixo. E compartilhar, sem sequer mesmo ler o restante.

Estamos, dia a dia, perdendo a capacidade de falar e escrever. E perdemos a capacidade de criticar e de nos indignar. Dia desses comecei uma coluna falando em epistemologia. Fuga em massa. O imaginário da resumização está matando o saber. Lê-se pouco. Os resumos e simplificações dominaram as práticas cotidianas. No Direito, denuncio essa prática de há muito. Décadas. Desde os personagens Caio e Tício e os exemplos bizarros da dogmática penal sobre coisas como “Caio vai caçar e vê uma galhada, atira e depois descobre que atirou em Tício fantasiado de cervo”.

O tempo passa e a coisa piora. Basta ver o que faz determinado professor (veja e ouça aqui), que quer ensinar decoreba para seus alunos construindo paródias de gosto duvidoso, como dar o nome do personagem de Putefo. A chamada do vídeo é assim: “PUTEFO levou ANITA pro MATO”. Sério. O cara disse isso mesmo. A “sigla” PUTEFO quer dizer “Penitenciário, Urbanístico, Tributário, Econômico, Financeiro, Orçamentário”. ANITA, sabe-se lá por que motivo, leva a “Patrimônio ARTUPACUL, que quer dizer Patrimônio ARTístico, TUrístico…”. Vocês entenderam. Que tal? Depois nos queixamos se a Constituição é/foi apatifada. Ou que ninguém respeite o texto da Constituição. Afinal, o que é isto — a Constituição?

Outro teacher (ver aqui) se intitula “advogado, professor e super-herói” (?) e ensina direito constitucional (!). Ele não ensina o Putefo. Ensina o PUTEIRO. Uma zona, na verdade. Lamentavelmente, ele e o outro — e tanta gente mais — se levam a sério. Vejam: para falar sobre competência legislativa concorrente, virou um PUTEIRO: Penitenciário, Urbanístico, Tributário, Econômico, financeIRO. Trata-se de uma nova-velha modalidade de ensino: o trash jurídico. Algo como O Ataque dos Tomates Assassinos, em que o diretor fez o filme a sério e todos vimos o zíper da roupa do monstro.

Diz o professor super-herói que “ADI e ADC é igual quando você leva a gata no motel: depois que entrou, não se admite desistência”. Genial. Não preciso nem dizer que a piada ainda por cima é ruim; felizmente, sou jurista. Sou professor, ensino Direito Constitucional, mas não sou super-herói e, menos ainda, humorista.

Só que a vida não é brincadeira. E o Direito lida com a vida. Com direitos.

Parece que o negócio virou piada mesmo. O Direito brasileiro ficou hilário e… trágico. Cada um diz o que quer. E decide como quer. Raciocínios profundos como os calcanhares de uma formiga anã. Só que a vida não é brincadeira. E o Direito lida com a vida. Com direitos. Imagine se os médicos ensinassem operação cardíaca desse modo… O Direito está se autodevorando.

Direito produz vítimas. O uso fora da bula faz mal à saúde do usuário-cidadão. Quantos dos condenados, hoje, (nem falo do passado) perderam a liberdade por inversão do ônus da prova? Quantos dos processos nos quais foram condenados os quase um milhão de presos (contando junto as tornozeleiras e domiciliar) resistiriam a uma análise rigorosa — por exemplo, usando o modelo de prova do sistema anglo saxão, tão decantado em prosa em verso por juízes, professores e membros do MP? Quantos condenados o foram por prova ilícita? E o que dizer do inferno pelo qual passam os advogados, cujo tormento começa no balcão do cartório?

Ninguém é filho de chocadeira. E em chocadeira não tem laqueadura. Quando vemos decisões e ações como a de Mococa da qual resultou a laqueadura forçada (ver aqui) de uma mulher de rua (veja: foi usada uma ação civil, que serve para preservar direitos e não os tirar), é porque já de há muito algo está errado. Por quais livros eles estudaram? Gostaria de ver a biblioteca.

Em vez de pesquisas, estudos, o atalho: simplificar. Eis a solução. Resumir. Ensinar conceito de crime cantando funk.

Será que isso tudo é a fase 1 do processo de tomada do poder de uma nova classe? Uma nova ordem comandada pelo punitivismo e higienização social? Lembremos do “pacote punitivista” proposto pelo MPF pelo qual se admitia prova ilícita de boa fé…! Os sinais estão ali. Basta saber (e estar disposto a) vê-los.

Tenho denunciado esse estado de coisas há décadas. Tudo começa na primeira aula. Passa por um ensino que virou teoria política do poder. Passa pelo realismo jurídico retrô. Professor diz: “— ah, o Direito é o que os tribunais e juízes dizem que é”. Começa aí e passa por docentes com formação deficiente. Que formam alunos com inópia mental. E tudo continua em cursinhos e quejandos, todos buscando ganhar bons caraminguás com gente que nada aprendeu nas faculdades e precisa aprender coisas para passar em concurso público e exame de ordem (insisto: os cursinhos que não compactuam com esse tipo de coisa devem lutar por um marco regulatório, para que todos os gatos não sejam pardos).

Em vez de pesquisas, estudos, o atalho: simplificar. Eis a solução. Resumir. Ensinar conceito de crime cantando funk. Vi dia desses um vídeo em que o “professor” ensina o poder de fiscalização de polícia… cantando. Buscando o atalho, eis o espaço em que aparecem os “teóricos” do PUTEFO e do PUTEIRO do tipo que falei acima. E esse também é o espaço em que surgem professores já com pós-graduação que fazem metáforas infelizes para ensinar o que é emenda constitucional, fazendo analogia com uma mulher que põe silicone; isso, no fundo, pode ter inspirado a “genial” sacada da “teoria” da recepção das normas e da impossibilidade de desistência de ADI que se passa no motel que o professor super-herói “bolou”. Tudo para quê? Para resumir. Decorar. Para ser “eficiente”. Cortar caminho.

Mas já não bastam resumos; eles já são considerados longos e cansativos; houve uma adaptação darwiniana. Hoje a coisa vai de sushi jurídico ao fitness — é sério —, passando por mega-ultra facilitações. Tenho conversado com estudantes em congressos. Isso, e mais alguns comentários do Facebook e do próprio ConJur, e penso em fugir para as montanhas.

Os textos — inclusive os da ConJur — são lidos “por cima”. Alguns comentaristas disputam a medalha da teoria do medalhão de Machado de Assis: Quem será mais Janjão?

Vendem-se facilidades de tudo que é tipo e para todos os gostos. Como isso vem se tornando dominante? Simples: Porque há mercado e clima (imaginário que suporta isso). A malta quer apenas informações. Drops. O trash tem espaço. Como disse o grande “filósofo contemporâneo” “mascarado maceteado”, “olha pra mim e esquece o Ferrajoli, esse macete é mole”. É o heavy-trash desjurídico.

Isso sem contar que tem gente fazendo palestra sobre as formigas e o Direito (não é pegadinha minha, não); outro faz conferência-show sobre Deus e a “lava jato”. Ora, falar sobre o Direito não pode ser confundido com gaiatice. Ou pilhéria. Ou putefaria (para “homenagear” o personagem Putefo). Ou admitamos que tudo isso virou uma putefaria. Ou um “puteiro epistêmico”, para “homenagear” o professor super-herói.

Por isso, não surpreendem decisões como a da laqueadura ou de outras que invertem o ônus da prova ou que aplicam direito fofo e que encerram a decisão dizendo “é como penso”. O personagem Conselheiro Acácio, em Primo Basílio, tinha a máxima “as consequências vêm sempre depois”. E eu digo: as consequências já estão aí.

E isso vai piorar. Repito: ninguém é filho de chocadeira. Quando o primeiro professor entrou na sala de aula no dia 6 de outubro de 1988 e disse: princípios são valores; viveremos a fase dos “valores”; sentença vem de sentire (aliás, sentire não tem nada a ver nem etimologicamente com a palavra “sentença”) e coisas do gênero, ali começou a chover na serra. A enchente viria. E veio. Lacrou. Quer dizer, “laqueou”. Em Mococa. E no resto do país.

Fonte: ConJur


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