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A Querela Nullitatis e seu Cabimento nas Ações em que o Litisconsorte Passivo Necessário Unitário não foi Citado para Integrar a Lide

AÇÃO DE NULIDADE

AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS DE EXISTÊNCIA

LITISCONSÓRCIO PASSIVO

QUERELA NULLITATIS INSANABILIS

Elpídio Donizetti

Elpídio Donizetti

02/08/2018

Artigo escrito em coautoria com Daniel Calazans*

A ação rescisória e os recursos não são os únicos meios de invalidar uma decisão judicial. Há, ainda, um terceiro meio específico previsto em nosso ordenamento: a querela nullitatis,[1] também denominada ação de nulidade, que tem por fundamento a ausência de pressupostos processuais de existência.[2] De origem latina, a expressão significa, basicamente, “nulidade do litígio” e “indica a ação criada e utilizada desde a Idade Média para impugnar a sentença, mais especificamente, anular a própria relação processual, independentemente de recurso”.[3]

A doutrina costuma arrolar como pressupostos processuais, cuja falta implica inexistência de relação processual, a capacidade de ser parte, o direcionamento da ação a um órgão jurisdicional e a existência de uma demanda. Sem tais pressupostos, o que os autos registram é apenas um arremedo de processo, mais precisamente um não processo, cuja inexistência pode ser declarada a qualquer tempo, porque a tutela jurisdicional que a tanto visa não está sujeita a prescrição ou decadência.

O que rende ensejo à querela nullitatis é a ausência daquilo que deveria ter vindo antes, que deveria ter antecedido o próprio processo, aquilo que deveria ser suposto para a existência da relação processual. Fala-se em vícios transrescisórios, isto é, aqueles vícios que podem ser arguidos mesmo depois, e muito além, de passado o prazo decadencial para a ação rescisória. A rescisão pressupõe a existência do processo; se este sequer chegou ao patamar do ser, não há o que ser rescindido.

No que concerne à ausência de pressupostos processuais e, por conseguinte, a inexistência de relação processual, Alexandre Freitas Câmara com muita propriedade leciona:

“Pressupostos de existência são os elementos necessários para que a relação processual possa se instaurar. A ausência de qualquer deles deve levar à conclusão de que não há processo instaurado na hipótese. Assim, e sem nos preocuparmos (por enquanto) com a enumeração dos pressupostos processuais, pode-se dizer que é inexistente o processo se o mesmo se desenvolve fora de um órgão estatal apto ao exercício da jurisdição (juízo). Com isso, verifica-se que não é processo o que se desenvolve perante o professor da Faculdade de Direito, com fins meramente acadêmicos, objetivando mostrar aos estudantes como se desenvolve um processo real”.[4]

 A sentença prolatada num processo que tramitou perante um juízo absolutamente incompetente ou peitado – o processo existe, embora falte um requisito de validade – pode ser rescindida no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da decisão. Em contrapartida, pode ser invalidado (mais propriamente declarado inexistente) o processo que se desenvolveu e chegou ao seu fim, entre outros vícios invalidantes, sem a participação de todos os litisconsortes necessários unitários.

O propósito deste artigo é delinear os contornos dessa ação de nulidade, que tem por escopo a declaração de que o processo não existe. Reconhecendo-se a ausência de um pressuposto de existência, o juiz, como conclusão do silogismo, vai declarar a inexistência – na prática, usa-se a palavra nulidade – do processo.

O exemplo no qual situamos, de maior incidência na vida dos operadores do direito, refere-se à ausência do pressuposto da existência da demanda, por falta de citação, naqueles casos em que o litisconsórcio é necessário e unitário. O litisconsorte, de modo geral por esquecimento ou atecnia, é deixado de fora do jogo e, pelo fato de o processo ter como objeto uma relação jurídica de direito substancial una e indivisível, a não participação compromete todo o processo. Inválido para um dos litisconsortes, de regra aquele que deveria ter sido citado, inválido para todos. Ninguém pode ter seus direitos tangidos sem o devido processo legal. A citação ou a participação espontânea figura como requisito desse processo devido; como pela natureza do direito material deduzido não há como cindi-lo, todo o leite acaba derramado.

O pressuposto da capacidade de ser parte alcança tanto o autor quanto o réu e os terceiros intervenientes. Capaz de ser parte é aquele que tem personalidade jurídica ou o ente ao qual, em razão de alguma atribuição de direito, reconheça-se ao menos personalidade judiciária. A análise da ausência desse pressuposto, que poderia servir de supedâneo à ação de querela nullitatis, porque não comum na lida forense, não será feita neste ensaio. Afinal, nunca vimos uma ação proposta por São Pedro para reclamar indulgências a ele prometidas em troca da abertura das portas do céu.

Igualmente despiciendo para este artigo é o pressuposto da exigência de um órgão jurisdicional investido de jurisdição. Não se tem notícia de que algum advogado, no seu perfeito juízo, tenha ajuizado uma ação judicial perante a diocese, a fim de ser examinada pelo Bispo. Processo jurisdicional é analisado e julgado por juiz investido de jurisdição, portanto com poderes e deveres inerentes à função jurisdicional do Estado. Na academia, costumamos dar exemplo de processo que pretende ser ajuizado perante padre, pai de santo ou do chefe do tráfico. Pode até haver processo ajuizado perante essas altas autoridades, mas o processo jurisdicional – no sentido modelado pela Constituição Federal – não há.

Como advogados, não descuramos da formação teórica, mas todo o arcabouço abstrato, conceitual e especulativo é direcionado à apresentação de soluções para os casos concretos que nos são submetidos, seja no contencioso, na consultoria ou na emissão de pareceres jurídicos. Fiquemos, pois, com o caso concreto, ou melhor, com a hipótese sobre a qual o nosso Escritório teve oportunidade de atuar.

O presente artigo tem como principal escopo tratar acerca da viabilidade da querelanullitatis nas hipóteses em que não há a citação de todos os litisconsortes necessários unitários em demandas que necessariamente exigem a integração de todos os participantes do ato jurídico de direito substancial.

Assim como ocorre com as relações jurídicas de direito material em geral, a respeito da qual se pode declarar a mera existência ou inexistência (art. 19, I, do CPC/2015), aquele que se sentir prejudicado com o desfecho de um processo, do qual deveria ter participado, mas para tanto não foi citado, detém legitimidade para ajuizar ação com o fito de obter mera declaração da inexistência.

Não custa reafirmar algumas diferenças entre a querela nullitatis e a ação rescisória. Nos tribunais, não é incomum o ajuizamento de uma pela outra. Entretanto, de modo geral, prevalece a regra ao contrário, ou seja, quem pode o mais não pode o menos. Em outras palavras, os tribunais não perdoam a “falha”.

Não se desconhecem julgados que não admitem a rescisória em vez da querela:

“Ação rescisória. Processual civil. Não cabimento de ação rescisória diante da nulidade decorrente de vício/inexistência de citação. Litisconsorte passivo necessário. Proprietário do imóvel. Ação demolitória. Cabível ação declaratória – querela nullitatis. Inadequação da via eleita. Ação extinta. Condenação da parte autora em honorários advocatícios e custas processuais. Necessário o recolhimento de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa nos termos do artigo 488, II, do CPC. À unanimidade. 1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é cabível ação declaratória de nulidade (querela nullitatis) para se combater sentença proferida com nulidade ou inexistência de citação, sendo inadequado o uso da ação rescisória. 2. Não estando prevista tal causa de pedir dentre as taxativas hipóteses constantes dos incisos do art. 485 do CPC, o expediente processual adequado para corrigir o suposto equívoco praticado no primeiro grau de jurisdição é a querela nullitatis. 3. Precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça. 4. Ação Rescisória julgada extinta. À unanimidade. Prejudicado o Agravo Regimental interposto pela parte autora. 5. Condenação da parte autora ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes arbitrados em R$ 500,00 (quinhentos reais). 6. Deve, ainda, a parte autora fazer o pagamento do depósito de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, conforme previsto no artigo 488, II, do Código de Processo Civil” (TJPE, Grupo de Câmaras de Direito Público, AGR 3254235/PE, Rel. Erik de Sousa Dantas Simões, j. 05.08.2015, data de publicação 14.08.2015).

No entanto, a jurisprudência felizmente tem caminhado para admitir a fungibilidade:

Agravo interno. Ação rescisória. Alegação de vício transrescisório (ausência de citação). Possibilidade. Necessidade, entretanto, de observância do prazo decadencial. Tutela antecipada. Suspensão dos efeitos da sentença rescindenda. Requisitos ausentes. Indeferimento. Recurso provido.

– Mostra-se possível a aplicação da fungibilidade dos meios processuais, particularmente à Ação Rescisória e à querela nullitatis, que constituem remédios essenciais, presentes em nosso sistema, destinados a extirpar do mundo jurídico decisões que padeçam de vícios que nem mesmo a coisa julgada é capaz de sanar. Não se afigura razoável, com a devida vênia, extinguir a Ação Rescisória, sem resolução de mérito e exigir da parte interessada o ajuizamento, perante o Juízo de Primeiro Grau, de nova demanda declaratória de nulidade (querela nullitatis), cujo resultado prático, em caso de eventual procedência, será exatamente o mesmo (desconstituir os efeitos da sentença).
– A Ação de Divisão e, por sua vez, a presente ação rescisória, que visa desconstituir a Sentença nela proferida, têm natureza real, que exige a citação dos cônjuges dos Réus, a teor do art. 10, § 1.º, I, do CPC.
– Objetivando a parte invalidar sentença de mérito tida por inexistente, posto que contaminada pelo vício transrescisório da falta ou nulidade da citação, deve valer-se da Ação Declaratória de Nulidade (querela nullitatis), a ser proposta, a qualquer tempo (imprescritibilidade), perante o juízo prolator da decisão. Tem-se admitido, em homenagem aos princípios da instrumentalidade dos meios e da economia processual, que tal pretensão seja exercida, excepcionalmente, através do manejo da Ação Rescisória. Mas, optando pela via do iudicium recindens, o interessado não pode se furtar à observância do prazo decadencial legalmente previsto.
– Constituindo a Ação de Divisão procedimento especial cuja resolução de mérito dá-se em mais de uma sentença, não pairam dúvidas de que, estando a causa de rescindibilidade relacionada à sentença da primeira fase – como ocorre inegavelmente no caso presente, em razão de uma das causas de pedir elencadas pelos Agravados tratar da ausência de citação de litisconsorte necessário no início do procedimento –, a fluência do prazo decadencial para o ajuizamento da Ação Rescisória se inicia com o trânsito em julgado daquela decisão.
– Nos termos do art. 489 do CPC, a antecipação dos efeitos da tutela em ação rescisória depende do atendimento dos requisitos previstos no art. 273 do CPC. Ausente qualquer desses requisitos, impõe-se o indeferimento do pedido de antecipação dos efeitos da tutela.

– Recurso provido (TJMG, 18.ª Câmara Cível, Ag. Int. 1.0000.06.445510-8/002, Rel. Des. Roberto Vasconcellos, j. 18.11.2014, publicação 20.11.2014).

Nada mais arcaica do que a intolerância de alguns tribunais que, numa atitude limitadora de processos, não admitem a rescisória para declarar a invalidade de processo. Permita-nos a “enfadonhice” de repetir clássicas distinções entre as duas ações, lembrando que a querelanullitatis raramente é lembrada.

A rescisória tem por fundamento vícios que não contaminam o plano de existência, mas sim o plano de validade do processo; a querela nullitatis, por seu turno, visa a declaração de nulidade da relação processual, ao passo que a rescisória tem por objetivo a desconstituição de uma situação jurídica a princípio válida, com aptidão para formar a coisa julgada material acerca da relação substancial e, passados os dois anos do trânsito em julgado, a coisa soberanamente julgada, sem possibilidade de qualquer desconstituição futura, em respeito ao princípio da segurança jurídica.

Nesse contexto, a ação com base na querela nullitatis veicula pretensão de natureza negativa, por meio da qual almeja a parte a declaração de inexistência de relação jurídica processual, naquelas hipóteses extremas de ausência de pressupostos processuais relacionados à própria existência do processo (nulidades insanáveis).

Outro importante aspecto que merece ser destacado é o fato de a querela nullitatis não se submeter a qualquer prazo prescricional ou decadencial, uma vez que seu principal objetivo é o de preservar a segurança jurídica e o exercício do devido processo legal, que são intimamente afetados pela presença das nulidades insanáveis (ou vícios transrescisórios); em outras palavras, o objeto dessa ação é a declaração de que o processo não tem existência no mundo jurídico. Na esteira de Marcos Bernardes de Mello,[5] afirma-se que o fato jurídico (o arremedo de processo) não foi suficiente para a incidência da norma juridicizante, de modo a caracterizar o devido processo legal.

Em nosso ordenamento, embora com outra terminologia, a querela nullitatis pode ser arguida via impugnação ao cumprimento de sentença (CPC/2015, art. 525, I), embargos à execução (CPC/2015, art. 917, VI), ou mesmo em ação autônoma (actio nullitatis), com base no art. 19, I, do CPC, que nada mais é do que a querela nullitatis de que estamos a tratar.

Aqui estamos cuidando da ação de nulidade em razão da ausência de citação de litisconsorte necessário unitário. Oportuno, pois, revisitar o respectivo conceito, bem como as implicações, para a relação processual, da ausência de citação e não participação de todos eles no processo.

Tecnicamente, dá-se o nome de litisconsórcio quando duas ou mais pessoas litigam, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente (art. 113). É hipótese, portanto, de cúmulo subjetivo (de partes) no processo.[6]

Os arts. 114 a 116 do CPC/2015 estabelecem que:

Art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida,a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.

Art. 115. A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será:

I – nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo;

II – ineficaz, nos outros casos, apenas para os que não foram citados.

Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo.

Art. 116. O litisconsórcio será unitário quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes.

Em suma, o litisconsórcio necessário consiste na cumulação de sujeitos da relação processual (no polo ativo, no polo passivo ou em ambos) (i) por expressa determinação legal em casos específicos ou, (ii) genericamente, para as hipóteses em que haja uma incindibilidade da situação jurídica envolvendo vários sujeitos, em que seja impossível requerer uma providência jurisdicional contra um deles sem atingir os demais.

O caso (ii) envolve o polo passivo da demanda (unitariedade da situação jurídico-material hábil a gerar a necessidade do litisconsórcio passivo), configurando-se uma hipótese em que se pretende que a sentença produza efeitos sobre uma situação que envolve de forma inseparável mais de um sujeito (litisconsórcio unitário – CPC/2015, art. 116).

O art. 47 do CPC/1973 trazia equivocadamente em seu conceito de litisconsórcio necessário a unitariedade:

“Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo”.

O equívoco trazido pelo Código revogado foi devidamente corrigido pelo CPC/2015, ao desmembrar o litisconsórcio em necessário (art. 114) e em unitário (art. 116), uma vez que, por disposição de lei, pode haver casos de litisconsórcio unitário facultativo. No entanto, isso é passado; escorregadela do legislador, que já havia sido suprida pela doutrina e jurisprudência e em boa hora corrigida pelo legislador do novo CPC.

O certo é que, diante de uma situação indissociável, todos aqueles diretamente envolvidos devem ser citados para integrarem a lide (litisconsórcio passivo necessário unitário), sob pena de a decisão de mérito não produzir efeitos sobre o réu faltante e, como a situação é incindível, não produzir efeitos sobre ninguém.

Claro é o ensinamento de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini:

“Se há uma situação material unitária, i.e., uma situação que envolve de modo indissociável uma pluralidade de sujeitos, e se pretende que a decisão de mérito do processo produza seus efeitos sobre tal situação (desconstituindo-a, transformando-a, declarando-lhe a existência, inexistência ou modo de ser), toda aquela pluralidade de sujeitos deve, em princípio, figurar no polo passivo da ação […]. Se algum desses sujeitos não for citado para ser réu na ação, a sentença não produzirá efeitos sobre ele […] – e se não produzir efeitos sobre ele, como a situação controvertida é incindível, não produzirá efeitos sobre ninguém, nem mesmo sobre aqueles que foram citados como réus. Portanto, todos precisam ser incluídos no litisconsórcio passivo e devidamente citados. É isso que a parte final do art. 114 quer dizer com ‘a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes’. Por isso, pode-se dizer que litisconsórcio passivo unitário será também, em princípio, necessário”.[7]

Para verificar se um caso concreto consiste em litisconsórcio necessário unitário, o clássico processualista Cândido Rangel Dinamarco, com base na doutrina italiana, propõe que se submeta a hipótese em três etapas:

“De todo modo, na intepretação de casos concretos em busca de definição sobre ser ou não uma hipótese de litisconsórcio necessário-unitário, é preciso ter muita consciência dos conceitos e sobretudo das razões que conduzem à necessariedade. Da doutrina italiana moderna bem o conselho de desenvolver esse trabalho em três etapas, a saber: a) individualização do petitum formulado; b) ‘individualização dos limites subjetivos e objetivos do provimento pedido’; c) ‘determinação dos sujeitos que devem participar do processo a fim de que tais efeitos possam efetivar-se’. Se em algum dos lados da relação processual for indispensável a inclusão de dois ou mais sujeitos, necessário será o litisconsórcio e precisamente esses sujeitos serão os litisconsórcios necessários”.[8]

No modelo constitucional do processo, “o litisconsórcio necessário é uma projeção infraconstitucional do direito fundamental ao contraditório (art. 5.º, LV, da CF). Sua violação importa, portanto, em violação do direito fundamental ao processo justo (art. 5.º, LV, da CF)”.[9]

Em consequência, “A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório [isto é, sem a citação daqueles que deveriam participar da relação processual], será nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo” (CPC/2015, art. 115, caput e inciso I). Isso porque essa não integração afronta o contraditório e o direito de defesa, conteúdos do devido processo legal. Não há processo sem que alguém tenha proposto uma demanda (petição inicial, pouco importa se viciada ou defeituosa); não há processo – a menos que se trate de controle concentrado de constitucionalidade – sem que o réu seja citado ou espontaneamente integre a relação processual.

Conforme mencionado, nos casos de litisconsórcio necessário, a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo. A consequência da ausência de citação vai variar conforme o tipo de litisconsórcio.

Tratando-se de litisconsórcio necessário e unitário, a sentença será nula (CPC/2015, art. 155, I). Nesse caso, ocorrerá a nulidade do processo em sua totalidade, não produzindo a sentença efeito algum, quer para o litisconsorte que efetivamente integrou a relação jurídica, quer para aquele que dela não participou. É o que se passa, por exemplo, na ação de anulação de assembleia de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, na qual foram deliberadas matérias de alcance geral para os sócios, mas que, a despeito disso, nem todos os sócios foram citados. A sentença é nula, uma vez que a validade ou a invalidade da assembleia a todos alcança (nula para um, nula para todos).

Assim dispõe o § 4.º do art. 966 do CPC/2015:

“§ 4.º Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei”.

Por sua vez, o art. 525, § 1.º, I, do CPC/2015 assim estabelece:

“§ 1.º Na impugnação, o executado poderá alegar:

I – falta ou nulidade da citação se, na fase de conhecimento, o processo correu à revelia”.

Com espeque nesses dispositivos da legislação processual, doutrina e jurisprudência[10] têm reconhecido ser possível, por meio da querela nullitatis, desconstituir uma relação processual e sua respectiva sentença – ainda que transitada em julgado –, caso uma parte que necessariamente deveria constar do polo passivo de determinada lide (litisconsórcio passivo necessário) não tenha sido citada para compor a demanda.

Com efeito, a citação válida constitui condição de eficácia do processo em relação à parte demandada e aos atos processuais seguintes (CPC/2015, art. 239, caput, primeira parte). Sob essa ótica, a decisão que transite em julgado, a despeito de ter sido prolatada em processo cujo ato citatório não tenha ocorrido (ou ocorrido de forma viciada) para um litisconsorte necessário unitário, não tem condições de atingir o réu prejudicado – razão pela qual pode o réu preterido valer-se da ação declaratória de nulidade insanável (querela nullitatis insanabilis) para aventar a ausência ou a nulidade da citação.

Desse modo, o cabimento da querela nullitatis é o meio adequado para os casos em que se discute a nulidade absoluta da citação, especialmente quando o processo correu à revelia, uma vez que, nessas hipóteses (quando não há integração do contraditório), não há que falar sequer em convalidação do ato pelo comparecimento voluntário do réu ao processo.

A propósito, “o STJ firmou o entendimento de que a juntada dos autos de procuração sem poderes especiais para receber citação não configura comparecimento espontâneo do réu”.[11]

Vejamos trechos de acórdãos do STJ que corroboram esse entendimento:

“O acórdão proferido pelo Tribunal estadual alinhou-se à jurisprudência atual e predominante do STJ no sentido de considerar que o comparecimento espontâneo do réu não tem lugar se a apresentação de procuração e a retirada dos autos foi efetuada por advogado destituído de poderes para receber citação, caso em que o prazo somente corre a partir da juntada aos autos do mandado citatório respectivo” (AgRg no Ag 1176138/MS, 4.ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 09.10.2012, DJe 06.11.2012).

“O comparecimento espontâneo do réu supre a falta de citação quando o procurador da parte possui poderes de receber citação” (AgRg no Ag 1144741/MG, 4.ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 14.08.2012, DJe 27.08.2012).

“O comparecimento espontâneo do réu não tem lugar se a apresentação de procuração nos autos foi efetuada por advogado destituído de poderes para receber citação, caso em que o prazo somente corre a partir da juntada aos autos do mandado citatório respectivo (art. 241 do CPC)” (REsp 877.057/MG, 4.ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 18.11.2010, DJe 1.º.12.2010).

Não há dúvida, portanto, acerca do cabimento da querela nullitatis insanabilis para declaração de nulidade do processo – inclusive da sentença que porventura seria proferida, ainda que transitada em julgado – em que algum litisconsorte passivo necessário unitário não tenha sido citado para integrar a lide, ainda que tenha ocorrido o comparecimento espontâneo desse réu faltante.

Ao contrário da rescisória, que sempre é processada e julgada por tribunal, a competência para o julgamento da querela nullitatis insanabilis é do juízo que decidiu a causa em primeiro grau de jurisdição, porque não se trata de desconstituição da coisa julgada (que, a rigor, não se formou), mas de declaração da inexistência da relação jurídica processual.

O entendimento do STJ não é diferente:

“Tem competência para processar e julgar a querela nullitatis o juízo que proferiu a decisão supostamente viciada (CC 114.593/SP, da minha relatoria, Terceira Seção, julgado em 22.06.2011, DJe 1.º.08.2011)” (AgRg na Pet 10.975/RJ, 6.ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 13.10.2015, DJe 03.11.2015).

Como se vê, a ação declaratória de nulidade insanável não busca desconstituir a coisa julgada (como é o caso da ação rescisória), mas sim reconhecer a inexistência da relação processual.

Relacionando-se diretamente com os chamados vícios transrescisórios, a querela nullitatis insanabilis desempenha importantíssimo papel no exercício da jurisdição e na garantia da segurança jurídica, podendo ser manejada a qualquer tempo. Afigura-se, portanto, como ação declaratória cujo objeto é a declaração de inexistência de suposta relação processual. De modo diverso da ação rescisória, que rescinde o que é inválido ou defeituoso (desconstituindo a coisa julgada ora formada), a querela nullitatis declara a inexistência daquilo que nunca chegou a ser.

A ausência de citação, por sua vez, é tida como um dos principais exemplos de vícios transrescisórios, haja vista que, ante a falta do ato citatório, o processo não existe em relação àquele que deveria ser citado. Conforme demonstrado no presente trabalho, há casos em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os que devam participar da relação processual, chamado de litisconsórcio necessário. Há, ainda, as circunstâncias em que, na sentença, o juiz tenha de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes, configurando-se as hipóteses de litisconsórcio necessário unitário. Nessas situações, não havendo citação daqueles que deveriam compor a demanda, a sentença que porventura venha a ser prolatada não produzirá qualquer efeito, seja para aqueles que foram devidamente citados, seja para aqueles que não foram.

Com suporte nessas premissas, a conclusão lógica a que se chega é que a ausência de citação de litisconsorte necessário unitário passivo para integrar a lide configura indubitável hipótese de cabimento da ação declaratória de nulidade insanável (querela nullitatis), uma vez que a referida inexistência de citação constitui patente vício transrescisório que, por consequência, se torna prejudicial à própria existência da relação processual.

Daniel Calazans é Advogado Sócio-Fundador do Escritório Elpídio Donizetti Advogados. Bacharel em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil. Professor em cursos de pós-graduação (lato sensu) e autor de diversos artigos jurídicos.


[1]       O ordenamento contempla ainda outros meios anômalos de impugnar uma decisão judicial, como o Mandado de Segurança e os Embargos de Terceiro.
[2]      Redundante, na visão da doutrina especializada, é falar em “pressuposto processual de existência”. Bastaria dizer pressuposto processual. Como observa José Orlando Rocha de Carvalho (Teoria dos pressupostos processuais e dos requisitos processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 67), pressuposto só diz respeito ao plano de existência jurídica, ao passo que requisito se refere ao plano da validade do direito.
[3]      CRETTELA NETO, José. Dicionário de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 368.
[4]   CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. v. I, p. 229-230.
[5] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 117.
[6] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2, t. I, p. 446.
[7] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo. 16. ed. São Paulo: RT, 2016. v. I, p. 340. Destaques lançados.
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 168.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 2. ed. São Paulo: RT, 2016. v. II. p. 94.
[10] STJ. “[…] a ora recorrente buscou, por via oblíqua, a desconstituição de sentença transitada em julgado, a pretexto de não ter sido citada para integrar a lide na condição de litisconsorte necessário, pretensão que deveria ter sido deduzida por meio da querela nullitatis, na forma do art. 486 do CPC, e não por intermédio do que ela denominou ‘incidente processual’” (REsp 1492925/MG, 3.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 12.04.2016, DJe 25.04.2016).
[11] STJ, 3.ª Turma, REsp 1250804/MS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 03.12.2015, DJe 26.02.2016.

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