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Lenio Streck

Lenio Streck

11/09/2018

Abstract: O lenhador entra na floresta e as árvores ficam em pânico. E uma delas, a espertinha, diz, com ar de superioridade: “— Não se preocupem. O cabo do machado é dos nossos”. Ao que a árvore mais velha redargue, tristemente: “— Mas a lâmina não”! Bingo!

Li matéria no jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul (ler aqui), da lavra da professora Priscilla Menezes. Ela leciona em MBAs, mestre e doutoranda em direito de empresa e é membro do ITechLaw. No texto, tece loas às novas tecnologias que ingressam no Direito. Diz ela que as novas tecnologias estão mudando drasticamente a forma como vivemos, mas lamenta que exista ainda uma resistência a elas no ensino superior.

Para ela, o Direito é um desses polos de resistência, porque as aulas ainda são excessivamente expositivas. Em tempos de Google e em turmas nas quais cada aluno tem um smartphone, diz ela que não faz sentido o professor ainda achar que é a única fonte de todo o conhecimento.

E ela pergunta: Mas por que ainda ensinamos assim? E responde: Bom, por um lado, existe uma preocupação genuína das instituições com exames como o Enade, OAB e concursos para carreiras jurídicas. Essas provas, em regra, exigem um processo de memorização por parte do candidato (decoreba de leis, súmulas), não de análise crítica e resolução de problemas, pelo menos não na primeira fase. Pergunto eu: o que quer dizer “pelo menos”? Haveria alguma reflexão nas fases seguintes dessas provas quiz shows? Ou isso não entra na preocupação da professora?

Ela propõe, então, que se inove. Ela chama a isso de revolução no ensino (sic). Segundo a professora, as startups jurídicas, chamadas lawtechs ou legaltechs, estão ampliando sua atuação, e já há várias iniciativas em áreas como market place (Diligeiro e Jurídico Certo), automação de documentos jurídicos (Looplex e Netlex), gerenciamento de prazos e pendências (Legal Note), pesquisa jurídica (JusBrasil) e resolução de conflitos (Arbitranet e Acordo Fácil). Ufa. Quanta coisa. E digo eu: agora eu era herói e meu “direito só falava inglês”. E ainda acrescento: a professora fala em revolução e considera sites como JusBrasil como pesquisa jurídica… Market place? Acordo fácil? Claro: fácil(itação).

Mas a professora vai mais longe, elogiando softwares de inteligência artificial (IA) com potencial de substituir o operador do Direito em várias áreas. E eu vou para o quarto do pânico ou para as montanhas. E ela elogia o software Victor (Victor ou Victoria?), do Supremo Tribunal Federal, projetado para identificar demandas que envolvem temas de repercussão geral com o objetivo de agilizar os julgamentos.

Está bem, professora. Eu aceito o argumento, mas… Toda essa parafernália é boa como mera ferramenta. Um parêntesis para uma pequena anedota: o lenhador entra na floresta e as árvores ficam em pânico. E uma delas, a espertinha, diz, com ar de superioridade: “— Não se preocupem. O cabo do machado é dos nossos”. Ao que a árvore mais velha redargue, tristemente: “— Mas a lâmina não”. Bingo! Ferramentas… ferramentas. Instrumentos… O pior que, nesse imaginário, o próprio direito é apenas uma ferramenta. Afinal, o processo não era também só um instrumento? Sempre estamos retornando. Império da técnica. A era da técnica, tão bem denunciada por Heidegger.

Sigo. Para dizer que a crise do ensino jurídico e a crise da aplicação do Direito não existem por causa da falta de tecnologia e quejandos. Ao contrário: essa tecnologia está emburrecendo mais ainda os alunos, porque traz facilitações, substituindo leituras e pesquisas por tecnologias prêt-à-porter, como resumos e resuminhos e drops jurídicos e ementas descontextualizadas. Agora os resumos são high tech. Aliás, isso tudo constitui um “novo” tipo de ensino prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler. A sala de aula com os alunos utilizando seus celulares conectados com Google e Face, etc, transformou-se em um inferno.

Ledo engano de quem acha que a ferramenta substitui a ciência. Ou o saber. Ou que melhores ferramentas podem substituir a necessidade de estudo. Claro que a professora poderá dizer que sou jurássico, que não entendi nada e que ela não quis afirmar isso e que as tais ferramentas tecnológicas apenas servem para ajudar. Está bem. Mas o que li do seu texto aponta na direção da tese “só a tecnologia salva o Direito”. Em nome “de o” senhor Deus ex machina. Ora, ao se discutir a qualidade do Direito praticado e ensinado no Brasil, é obrigatório deixar bem claras as prioridades, para não produzirmos discursos cosméticos.

Posso demonstrar que toda a transformação dos processos judiciais em material digital não trouxe melhoria na qualidade dos julgamentos. Mais rapidez, sim. Decisões melhor fundamentadas? Não. Ao contrário. O recorta e cola corre frouxo. E milhares de REsp, RE, Embargos e Agravos são dizimados por uma espécie de grupos de extermínio de recursos, os Prozess Einsatzgruppen (me apropriando da expressão de Dierle Nunes). E, pior, agora surge o tal de Victor, robô que vai fazer exame de admissibilidade e identificação de recursos repetitivos e quejandos no STF. Um robô especialista em Direito Constitucional. Pois é. Permito-me dizer que isso tudo apenas reforça as antigas distopias que a literatura nos mostra. Como uma espécie de “De volta para o futuro”, em que a SkyNet toma conta do mundo. Quero que me mostrem como e no que o processo eletrônico melhorou as decisões. E que, com isso, diminuiu a jurisprudência defensiva. Quero que me digam como os depoimentos filmados são assistidos em grau de recurso, para falar só desse problema. Já discuti o processo eletrônico (aqui e aqui), essa invenção tecnológica brasileira, sem a qual outros sistemas de justiça (bastante funcionais) passam bem.

Diz a professora: a tecnologia promove uma democratização do conhecimento… E eu indago: Como assim? A tecnologia apenas promove a democratização da… informação. O professor é quem tem a tarefa de transformar essa informação em conhecimento (que é apenas o começo), esse conhecimento deve ser transformado em saber e esse saber em sabedoria. Ora, professora, não há mais segredos hoje em dia. Está tudo nas redes e nos pen drives (e agora na nuvem). As pessoas cada vez mais se “comunicam” por neo-hieroglifos (os emojis). Os livros são pirateados, escamoteando direitos autorais ou estão nas redes, grátis ou por dois reais; há robôs que fazem petições, sites vendendo “tudo fácil”, “direito pré-pronto”, robôs que fazem acordos, etc. Milhões de artigos e conceitos pequeno-gnosiológicos estão à disposição dos alunos e dos profissionais. Ao alcance de um clique.

Então, se está tudo nas redes, se está tudo nos smartphones, no Google, por que ir à aula? Aliás, você se operaria com um médico que se formou à distância? Ah, medicina não pode? E Direito, sim? Mas, a questão não é “a ferramenta”? Simples: porque essa parafernália de technismos só tem sentido se alguém, uma pessoa que tenha saber, souber fazer “gerenciamentos epistêmicos”, se me entendem o que quero dizer. O furo da crise do ensino e da aplicação do Direito é bem mais embaixo. Bem mais do que computadores e tecnologia “justech”, o bom ensino exige uma coisa chamada e-pis-te-mo-lo-gia, que a maioria dos professores e alunos nunca ouviu falar. Exige, pois, cultura. Exige olheiras. Perda de sono. No Direito perdemos a capacidade de adquirir olheiras. Os melhores centros de estudo do mundo mantém sua excelência nessa base, incorporando os úteis desenvolvimentos tecnológicos às suas rotinas, mas sem viajar em modismos. Não se trata de nostalgia de minha parte. Descobertas que facilitam a vida são bem-vindas, mas há falsas facilidades sobre as quais devemos alertar.

Um conceito lido na internet não é um conceito, mas, sim, apenas mais uma informação entre milhões, que precisa ser decodificada. O psicanalista Mário Corso (ler aqui) põe o dedo na ferida, quando denuncia os equívocos do pragmatismo no ensino. Diz-nos que os caminhos de nosso cérebro são mais complexos que os nossos pragmáticos imaginam. O teclado substitui a caligrafia… Que bom, só que a caligrafia não melhora apenas o desenho das letras, ela está ligada ao aumento da velocidade e fluência na leitura e na fala. Cita o psiquiatra e psicanalista Norman Doidge, que critica o abandono de certas práticas do ensino tradicional e como isso contribuiu para o declínio da eloquência. E Corso adverte: na pressa de mudar, os “pragmáticos” do ensino jogaram fora o bebê com a água suja. O pragmatismo confundiu andaimes e escoras com o futuro prédio. Bingo, Mário. E eu acrescento: parece-me que esse é o caso da professora e de quem pensa que a parafernália tecnológica e inteligência artificial são a solução para a melhoria do ensino e da aplicação do Direito. Tenho visto cada coisa por aí… Professores cheios de “balaca tecnológica” que não conseguem articular uma frase sem o Power Point.

Diz ainda a professora que uma pesquisa

“mapeou qual será a tendência do mercado em termos de demanda por habilidades dos profissionais. ‘Conteúdo’ aparece em quarto lugar. Primeiro vêm as habilidades cognitivas e de resolução de problemas complexos. Estamos formando profissionais que muitas vezes têm pouca capacidade de raciocínio jurídico ou análise crítica, conformando-se em serem meros reprodutores de peças processuais e decisões, o que os softwares de IA em pouco tempo farão melhor que nós, devido a sua interminável capacidade de armazenamento e processamento de informações”.

Devo, é claro, fazer uma ressalva. Como todos sabem, também sou contra a formação de “meros reprodutores de peças” através de um ensino jurídico “decoreba” — ainda mais de pseudoteorias inventadas por bancas de concurso público. Mas isso jamais pode implicar rebaixar a importância do conteúdo, fundamental para se formar… habilidades e competências! Ou o jurista espera resolver problemas de improviso, num vácuo teórico? Não por acaso, o crítico literário Harold Bloom defende a importância da memória (essa injustiçada), a retenção qualitativa de conteúdo, para o desenvolvimento da imaginação. Hermeneuticamente, acrescentaria: são esses saberes possibilitadores que projetam nosso horizonte interpretativo.

A crise do ensino — e da aplicação do Direito (a professora esqueceu dessa crise) — exige uma ampla reformulação das matrizes teóricas atrasadas com as quais se formam os profissionais. A crise se resolve… lendo. Estudando. Pesquisando…, mas não em sites prêt-à-porters. Sou a favor de um ensino participativo, aulas com exposição dialogada (faço isso muito antes de ter esse nome), leituras de textos resultantes de pesquisas rigorosas, fichamentos, seminários em que os alunos tentam reconstruir suas ideias e se apropriar criticamente delas. Para isso não são necessárias firulas tecnológicas. Adianta uma parafernália high tech se o professor continua ensinando — agora com Power Point e coisas tipo techlaw — equívocos como “princípios são valores” e que entre a realidade social e normatividade, você deve ficar com a primeira, ignorando o Direito? Adianta isso tudo, se o professor continuar a “ensinar” uma péssima teoria política do poder em vez de lecionar Direito? Adianta o high tech se o professor nada sabe sobre (os perigos dos) dualismos metodológicos tratados pela teoria constitucional? Os balconistas tem computadores na frente deles e não sabem fazer operações aritméticas. E, por isso, continuam pensando como balconistas. Como diz o professor Doidge, o cérebro é como um músculo: há que exercitá-lo. Ou atrofia.

Numa palavra: Não existe intelectual bronzeado. E não adianta ter cinco computadores, startups, etc. Nada disso encurta orelha de aluno do Direito e “operadores jurídicos” em geral que ainda estudam em resuminhos, hoje todos à disposição por intermédio… — céus — das tecnologias. Já não se leem nem acórdãos. Os sites jurídicos trazem o resumo. Bingo. Aqui mesmo na ConJur textos longos e sofisticados são odiados. Os tempos são de coisas como as que sites como o JusBrasil apresentam. Tempos de ementinhas prêt-à-porter. Tempos de enunciados. Que são, filosoficamente uma repristinação vulgar do… deixa pra lá. Quem se interessa por isso, nestes tempos em que informação demais é igual informação de menos.

O solipsismo (quantas pessoas sabem o seu significado?) pernicioso que tomou conta do ensino e da aplicação do Direito não será eliminado com tecnologia. Será eliminado com o estudo dos paradigmas jusfilosóficos. E com estudos profundos de teoria jurídica. Simples assim… ou complexo assim. O Direito… bem, ele é um fenômeno complexo. O problema é que tentam simplifica-lo, inclusive com a ilusão da tecnologia e até mesmo com a construção de robôs.

Post scriptum: continuo com aulas expositivas e seminários, do mesmo modo como cursei mestrado e doutorado. Quem quiser assistir às minhas aulas jurássicas e constatar essas coisas ultrapassadas e não-inovadoras, está convidado a conferir. Mas não pode ligar o smarphone e nem ficar olhando a internet ou o Facebook. O professor sou eu!

Fonte: Conjur


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