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Brevíssimo Ensaio sobre a Função Socioambiental da Propriedade

CÓDIGO FLORESTAL

FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL

MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

MEIO AMBIENTE

Marco Aurélio Bezerra de Melo

Marco Aurélio Bezerra de Melo

14/09/2018

A função social da propriedade supera a concepção individualista tradicional desse direito subjetivo fundamental e se apresenta com um tratamento jurídico com um viés mais econômico e social no sentido de obrigar o titular do domínio a atribuir ao que lhe pertence uma destinação voltada para uma preocupação social de, por exemplo, assegurar o direito constitucional à moradia e ao trabalho (arts. 5.º, XXIII, e 170, III, CF). Há muito a propriedade não é apenas o direito subjetivo do proprietário, mas sim o dever de atribuir às titularidades a devida funcionalização no seio da sociedade.

A par dessa perspectiva, a propriedade goza igualmente de uma função socioambiental que recebe uma identificação especial autônoma na tessitura constitucional, impondo-se a todos, coletividade e Poder Público, o dever de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado e que garanta uma sadia qualidade de vida para as presentes (direito intergeracional) e futuras gerações (direito transgeracional), conforme disciplina o art. 225 da Constituição Federal. O § 3.º do citado artigo preconiza que a lesão ao meio ambiente desafia a aplicação de sanções administrativas, penais, sem embargo da obrigação de reparar os danos causados (reparação in natura).

Como baliza para o legítimo exercício da livre-iniciativa e das fundamentais atividades produtivas a serem exercidas no País, a proteção ao meio ambiente é reputada como princípio constitucional da atividade econômica no art. 170, VI, da Constituição Federal.

No plano infraconstitucional, o Código Civil no § 1.º do art. 1.228 demonstra que a função socioambiental da propriedade também integra o direito subjetivo de propriedade, como se pode verificar do seu texto que, de modo eloquente, explana que o direito de propriedade, na forma da legislação especial, deve ser exercido a fim de que sejam preservados “a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

Na concepção do meio ambiente na ordem constitucional, a doutrina especializada[1] tem reconhecido a existência de quatro planos de abordagem dessa temática:

1.º) O meio ambiente natural, que envolve os recursos da natureza, pode ser encontrado, por exemplo, no inciso I do art. 3.º da Lei 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente quando prescreve que se entende por meio ambiente “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. O inciso V da citada legislação inclui na categoria de recursos ambientais a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.

Exemplo jurisprudencial de radicalização na proteção do meio ambiente natural pode ser colhido no Caso da Represa Billings,[2] em que, a despeito da existência de núcleo populacional nascido de loteamento clandestino que se estabelecera no entorno dessa área de merecida preservação ambiental, houve a determinação de recomposição da Mata Atlântica com a demolição das edificações irregularmente erigidas. A prova dos autos demonstra que a proteção desse bem coletivo ambiental se mostrava fundamental para o abastecimento de água na Grande São Paulo e que essa função socioambiental corria sério risco pelo preocupante assoreamento da região.

Nessa mesma linha de raciocínio, os incisos I e II do art. 186 da Constituição Federal estabelecem que a função social da propriedade rural é cumprida quando se atende, entre outros requisitos, ao aproveitamento racional e adequado do solo com a utilização dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente.

2.º) O meio ambiente cultural deve ser salvaguardado como patrimônio cultural brasileiro material e imaterial que diga respeito à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, CF) e também, como faz ver Flávio Ahmed,[3] ter o seu exercício pleno assegurado pelo Poder Público (art. 215, CF) e pela coletividade, a todos os cidadãos, como uma das diversas manifestações da própria dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF).

Enfrentamos como julgador uma questão interessante na qual havia a necessidade de preservação do meio ambiente cultural em área tombada pelo Município do Rio de Janeiro (Decreto 15.878/1997) conhecida como “Fazenda dos Barata”, no bairro do Realengo. Em ação civil pública proposta pelo Ministério Público, foi imposta ao Município do Rio de Janeiro a obrigação de fazer no sentido de restaurar o bem tombado e o seu entorno protegido para fins de recuperação ambiental (meio ambiente cultural), sem prejuízo da promoção da regularização fundiária da região com a tutela do direito à moradia das famílias que ocuparam o local ante o abandono do ente federativo municipal.[4]

3.º) O meio ambiente artificial que consiste no espaço urbano construído nas cidades, cujo cumprimento da função social se verifica a partir da observância dos ditames do Plano Diretor, na forma disciplinada pelo art. 182 da Constituição Federal e previsto em legislação infraconstitucional, por exemplo, a Lei de Saneamento Básico (Lei 11.445/2007) e o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010).

4.º) O meio ambiente do trabalho que envolve o direito à salubridade no ambiente laboral (arts. 7.º, XXII, e 200, VIII, CF). Exemplo eloquente de proteção ao meio ambiente do trabalhador é a permissão constitucional de expropriação, sem indenização e com destinação para Reforma Agrária, do imóvel no qual se explore trabalho escravo (art. 243).

Tais planos foram expressamente considerados no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.540 MC/DF pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal sob a relatoria do Ministro Celso de Mello por ocasião do julgamento cautelar da constitucionalidade da Medida Provisória 2.166-67, de 24.08.2001, que alterou o art. 4.º do Código Florestal. No decisum consta que “a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral”.

Na realidade, a defesa do meio ambiente coincide com o próprio direito à vida que se verifica de modo difuso e, por tal motivo, podemos afirmar que a sua proteção constitui cláusula pétrea na nossa Constituição ante a característica de se tratar de direito fundamental de terceira geração. Com efeito, a natureza não precisa de quem a projeta, quem precisa somos nós e os que virão…


[1] Por todos: Marcos Alcino de Azevedo Torres, Mauricio Mota e Emerson Affonso da Costa Moura. A nova dogmática do direito de propriedade no Estado Constitucional e Democrático de Direito. 2016, p. 88-105.
[2] Ação civil pública. Proteção do meio ambiente. Obrigação de fazer. Mata atlântica. Reservatório Billings. Loteamento clandestino. Assoreamento da represa. Reparação ambiental. 1. A destruição ambiental verificada nos limites do Reservatório Billings – que serve de água grande parte da cidade de São Paulo –, provocando assoreamentos, somados à destruição da Mata Atlântica, impõe a condenação dos responsáveis, ainda que, para tanto, haja necessidade de se remover famílias instaladas no local de forma clandestina, em decorrência de loteamento irregular implementado na região. 2. Não se trata tão somente de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de recursos financeiros, que, provavelmente, deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas, mas de preservação de reservatório de abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na área de preservação. No conflito entre o interesse público e o particular há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos. 3. Não fere as disposições do art. 515 do Código de Processo Civil acórdão que, reformando a sentença, julga procedente a ação nos exatos termos do pedido formulado na peça vestibular, desprezando pedido alternativo constante das razões da apelação. 4. Recursos especiais de Alberto Srur e do Município de São Bernardo do Campo parcialmente conhecidos e, nessa parte, improvidos (STJ, 3.ª Turma, REsp 403.190/SP, unânime, j. 27.06.2006).
[3] Flávio Ahmed. Direitos culturais e cidadania ambiental no cotidiano das cidades. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 47.
[4] Apelação cível. Ação cível pública. Ação civil pública. Defesa de patrimônio histórico-cultural. Município do Rio de Janeiro. Casa-sede da Fazenda dos Barata, no bairro de Realengo. Tombamento provisório do imóvel. Degradação do bem tombado e da área de entorno. Ocupação irregular. Sentença de improcedência. Recurso do autor. 1. Defesa do meio ambiente cultural. Inteligência dos arts. 225 e 216, § 1.º, da CRFB/1988. Dever do poder público de promover a proteção do patrimônio cultural brasileiro, sendo o tombamento, previsto no Decreto-lei 25/1937, uma das medidas para alcançar tal finalidade. 2. Tombamento provisório da casa-sede da Fazenda dos Barata mediante o Decreto Municipal n.º 15.878/97. Competência municipal estabelecida no art. 30, IX, da CRFB/88. Reconhecimento do valor histórico e cultural do imóvel a ser preservado para as presentes e futuras gerações. 3. O tombamento provisório é uma medida que assegura a preservação do bem até o final do processo administrativo em que se alcançará o tombamento definitivo, e seus efeitos se equiparam, conforme disposto no artigo 10, parágrafo único, do Decreto-lei 25/1937. 4. Proibição absoluta de destruição, demolição ou mutilação dos bens tombados. Previsão do art. 17 do Decreto-lei 25/1937. 5. Em se tratando de bem particular, cabe ao proprietário o dever de conservar o bem tombado, porém, se este não dispuser de recursos para proceder a obras de conservação e reparação, deverá o Poder Público, independentemente de comunicação do proprietário, tomar a iniciativa de providenciar as obras de conservação. 6. Responsabilidade solidária entre o particular e o Poder Público. Precedente do STJ. 7. No caso concreto, não foi possível a identificação dos proprietários e ou herdeiros do imóvel e a administração pública municipal iniciou procedimento expropriatório mediante a expedição do Decreto n.º 21496/2002, que declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, a casa-sede da Fazenda dos Barata, também denominada Casa Maria Bananal. 8. Os documentos constantes dos autos comprovam os diversos esforços empreendidos pela municipalidade para o cumprimento de seu dever de conservação do bem tombado, tendo sido contratada no ano de 2006 a elaboração do Projeto de Restauração do bem tombado. Entretanto, o referido projeto pende de execução desde o ano de 2007, sendo que desde 2014 é aguardada a sua análise pelo Conselho Municipal de Patrimônio Cultural. 9. Desta forma, diante das provas dos autos, é inegável que a ausência de execução do projeto prorroga no tempo o estado de abandono do imóvel tombado e possibilita a sua degradação. 10. Demonstração da ineficácia da proteção do patrimônio cultural municipal. Favorecimento de novas ocupações irregulares. Descumprimento do dever constitucional e legal por parte do réu. 11. Obrigação de o réu promover a execução integral do projeto de restauração do bem tombado e de seu entorno protegido, para fins de recuperação ambiental específica com a devolução do bem ao status quo ante, no prazo de 60 (sessenta) dias para início do cumprimento e de 1 (um) ano para a sua conclusão. 12. Na hipótese de ocupação de famílias nas ruínas da casa-sede da Fazenda dos Barata, deve o réu realocá-las imediatamente ao início da execução do projeto de restauração, mediante entrega de uma nova moradia a cada família, seja pela construção de unidades residenciais de bom padrão construtivo, seja pela compra de uma casa, preferencialmente na mesma localidade, sem prejuízo da possibilidade de adotar medidas para a solução da ausência temporária de moradia, tal como o Auxílio Habitacional Temporário previsto no Decreto Municipal 38.197/2013. Direito social à moradia digna e segura. Inteligência dos artigos 6.º e 23, IX, da CRFB/1988. Remoção justificada em razão da insegurança intrínseca do local por eventuais desabamentos das partes remanescentes do imóvel. 13. Área de entorno. Proteção do Decreto 15.878/1997. Existência de grande loteamento clandestino, denominado Loteamento Cachoeira dos Barata, que está sendo objeto de regularização fundiária. Reconhecimento do loteamento como Área de Especial Interesse Social pela Lei Municipal 3.278/2001. Comunidade consolidada protegida por instrumento de política urbana prevista no artigo 4.º, V, alínea “f”, do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10257/2001) e no art. 70, parágrafo único, II, do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro (Lei Complementar 111/2011). Impossibilidade de remoção da comunidade nesta ação judicial. Princípio da não remoção. Respeito ao direito fundamental à moradia. 15. Em caso de impossibilidade de cumprimento da obrigação de fazer (recuperação ambiental específica), deve a mesma ser convertida em perdas e danos (recuperação ambiental pecuniária), em sede de liquidação, e o valor apurado deverá ser pago pelo réu e revertido ao Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (FECAM), nos termos do artigo 13 da Lei 7.347/1985. 16. Reparação integral do dano ambiental em sua faceta cultural. Previsão do art. 225, § 3.º, da CRFB/1988 e do art. 14, § 1.º, da Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente). 17. Improcedência do pedido de conversão do tombamento provisório em definitivo. Violação ao princípio da separação dos poderes. Mérito administrativo. Ademais, o tombamento provisório se equipara ao definitivo e garante a sua eficácia, não sendo fase procedimental antecedente. Informativo 152 do STJ. 18. Impossibilidade de condenação do réu ao pagamento de honorários advocatícios. Princípio da simetria. Precedente do STJ. 19. Condenação do réu ao pagamento da taxa judiciária. Súmula 145, do STJ. 20. Sentença reformada. 21. Recurso parcialmente provido (TJRJ, 16.ª CC, Apelação 0281309-32.2015.8.19.0001, Rel. Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, j. 03.10.2017).

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