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José Manuel de Sacadura Rocha

José Manuel de Sacadura Rocha

07/12/2018

No dia da “consciência negra” (20 de novembro) compartilhei via WhatsApp um post onde se afirma que Black Friday tem origem em uma prática do tempo da escravidão nos EUA. Diz o post que era prática que um dia depois da Ação de Graças (celebração tipicamente americana) os comerciantes de escravos vendessem os escravos a preços mais baixos, “para a temporada de inverno” (sic).

No dia seguinte recebi o retorno de uma querida amiga (só para esclarecer, não se trata de amiga virtual, mas de conhecimento próximo pessoal!) pela mesma rede social, indagando-me da “fonte” da referida mensagem. Apesar da delicadeza de minha amiga, levei um choque! Como assim, a “fonte”?

Só então percebi que eu não tinha “fonte” alguma, e tinha imediatamente compartilhado para vários amigos o post. Eu quis fazer uma homenagem e chamar à reflexão sobre esse episódio nefasto que assombra nossa história. Mas minha amiga não deixou escapar a atenção precisa da academia. Eu como acadêmico há tantos anos deveria saber… Pelo menos poderia ter tido mais cuidado.

Imediatamente fui procurar as “fontes”. Eis o que consegui apurar, resumidamente: em 1621 em Plymouth, Massachusetts, para agradecer pela ótima colheita que terminava e comemorar antes que o inverno no hemisfério norte começasse, o governador da vila mandou fazer uma grande festa. No dia 24 de setembro de 1869, dois especuladores compraram muito ouro na Bolsa de Nova York, obrigando o governo a vender a commodity para corrigir a alta provocada por eles; os preços caíram e muitos investidores perderam grandes fortunas. Aí estaria a “verdadeira” origem da expressão Black Friday.

Outros acontecimentos contribuíram para que esse dia fosse para os americanos a antecipação do Natal, levando-os às suas compras natalinas, patrocinado pelo marketing das grandes redes varejistas, até que em finais de 1941, uma resolução conjunta do Congresso americano finalmente estabeleceu a quarta quinta-feira de novembro como o Dia de Ação de Graças. Com isso o mercado americano garantiu uma semana extra de compras de Natal. E assim, a sexta-feira logo após esse dia transformou-se, com a ajuda de pesados investimentos de propaganda, no dia de ofertas maciças das redes de varejo, que se estendeu a todo comércio, como Black Friday. Nesse dia o trânsito causado pelos consumidores ficava caótico, e os policiais começaram a se referir a ele de forma pejorativa, como Black Friday. Por isso durante um tempo o termo foi trocado pelos varejistas para Big Friday. Contudo, o termo só se tornou nacional em meados dos anos 90, e mercadologicamente repaginado, voltou a se usar a expressão Black Friday. (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38087960).

E o que tudo isso tem a ver com o post?

O que realmente me fez pensar após o “choque de realidade” proporcionado por minha amiga, não foi exatamente onde estão as “fontes”, mas por que eu não me indaguei sobre elas antes de compartilhar? E, em consequência, me alertou o fato que raramente meus amigos me perguntam sobre as “fontes” das mensagens que compartilho e que compartilhamos todos nas redes sociais. Eu entendo que podem existir vários motivos para isso: amizade, cortesia, correria do dia a dia, desinteresse, ou porque simplesmente já nem se liga mais para o que compartilhamos. De qualquer forma, não foi, felizmente, este o caso: era a primeira vez que me perguntavam sobre as “fontes”, e foi isso que me provocou o espírito: por que, exatamente, aquela mensagem, que tinha o objetivo sério de provocar uma reflexão sobre a nódoa histórica que é a escravidão, foi alvo das “fontes”? Por que aquela e não outra? E por que exatamente essa não me suscitou averiguar antes se era “verdade”?

Bem, nada do que eu li sobre o surgimento da expressão (veja, falo da expressão e não de um dia específico de promoções no mercado – não o dia propriamente dito, mas a expressão!) Black Friday, é suficiente para negar o fato que a expressão pode ter surgido da prática bem mais antiga de escravocratas venderem negros com desconto em determinado dia, que poderia ter bem sido em uma sexta-feira após o Dia de Ação de Graças – por mais detestável que isso possa ser, alguém ficaria espantado com isso? Se sim, por quanto tempo? Todas as explicações sobre o surgimento do Black Friday são coerentes e parecem inquestionáveis, mas por que a expressão Black, e não Red, ou Green, ou Grey ou Pink, sei lá…

Mas, claro, sem “fontes” não se pode afirmar que a ideia macabra de usar a expressão “black”, em um dia dedicado a grandes promoções e descontos das redes lojistas, e que hoje se estende ao comércio de forma geral, exatamente em um país onde a escravidão foi das mais atrozes nos tempos modernos (só comparável ao Brasil), não se pode afirmar que tal “inspiração” foi a venda de escravos em “condições promocionais”, como prática que poderia ter ocorrido qualquer dia entre 1621 e 1863 (fim oficial da escravidão nos EUA). Contudo, também não se pode afirmar que ela seja absolutamente despropositada, ou pura coincidência, ou só motivada por outros aspectos como a queda do valor do ouro nas bolsas, ou palavrões de policiais enlouquecidos pelo caos do trânsito causado pelos consumidores ensandecidos. Se faltam “fontes” para afirmar A, com base em quê dizemos que A é falso? Então poder-se-ia alegar simplesmente: cadê as fontes em contrário? Mas não é assim que funcionam nossos cérebros, e a explicação porque nos preocupamos com apenas a “metade da verdade” é, a meu ver, outra.

Independente da questão acadêmica, aqui o que se trata, obviamente, pouco tem a ver com as “fontes”, com o verdadeiro ou o falso, mas muito mais com algo não imediatamente perceptível, com algo indizível. Esse algo diz respeito às Estruturas Elementares do Pensamento. Portanto, está na dimensão de algo que diz respeito a todos nós – nos inocenta a todos tanto quanto nos revela nossas profundas estruturas mentais. Isto significa, no entanto, que somos tão responsáveis como inconscientes!

Nenhuma criança até 5 anos de idade (mais ou menos) (VIGOTSKI, 1994) sabe da verdade e falsidade, dos jogos possíveis entre uma e outra. Ela aprende tudo; daí para frente, ela começa a comparar (daí a importância da família e dos mais próximos), selecionar, guardar parte como verdadeiro e parte como falso, sendo tudo depositado em pequenas estruturas (arquétipos), que a mente resgatará quando precisar, diante de cada aspecto da realidade, diante de cada fato a deliberar. O adulto, mais ou menos depois dos 16 anos, tem menos dificuldades para escolher, e assim continuará, com mais certezas (também ampliadas pelas experiências exitosas ou traumatizantes), até morrer. A nossa mente compara, seleciona, interpreta, escolhe, enfim, numa palavra, nós somos animais seletivos, altamente seletivos!

Immanuel Kant (1724-1804 [2010]) afirmava que nossa razão nunca seria capaz de revelar a “verdadeira realidade”, porque o processo cognitivo é interpretativo, isto é, entre perceber um objeto externo a mim, e o descrever, o cérebro o “interpreta”, logo, o modifica, e quando o descreve o descreve modificado. A nossa mente (1) desconstrói, e (2) constrói em busca da ordem (GOMBRICH, 2012): a isto pode-se, simplificando, chamar-se de “interpretação”. Este processo de reordenação (1+2) tende em maior número de vezes a “confirmar” nossas certezas aprendidas, desde cedo, ao longo de nossa experiência de vida, e é a confirmação destas certezas que nos dá prazer, caso contrário, nos provoca dor/ sofrimento (ROCHA, 2014 [Epicuro]).

Então, o que observamos e indagamos, que “fontes” nos preocupam ou “não”, que post nos fazem pensar e indagar sobre a verdade etc., diz respeito muito a cada um, mas a cada um segundo uma localização temporal-espacial coletiva muito específica. Cada um tem seu repertório básico, essa mistura de vida única e coletiva, que observou, sentiu, comparou com o sucesso ou fracasso, que selecionou pelos valores e pelas práticas reforçadas naquilo que os outros fazem, reforçadas pelo seu grupo, contra outros grupos etc. A consciência, do subjetivo ao coletivo, só se sente provocada pela ciência se for estimulada, preferencialmente se o que a estimula de fora lhe causa algum desprazer. E cada indivíduo, ainda que a compartilhar uma “consciência coletiva”, recorta suas experiências diárias e interpreta de forma absolutamente seletiva.

Minha amiga não teve dúvidas em me perguntar pelas “fontes” e eu não tive dúvidas em compartilhar sem me preocupar com elas. Neste momento histórico determinado, político, no Brasil, quantas vezes eu me perguntei se era verdade e não compartilhei, mesmo sem olhar as “fontes”, mensagens que poderiam ser verdades, mas poderiam não ser, e não enviei. Mas o mais importante é que, de qualquer forma, sequer fui olhar! Por que fazemos isto? Porque as informações que me agradam eu compartilho inconscientemente!, e as que não me agradam eu nem vou olhar!, a menos que exista um estímulo específico para isso, uma contradição, quando me sinto contrariado, ou, ao contrário, estou frustrado com outra coisa e então, minha mente precisa de reforço, de prazer, e lá vou eu exigir que algo que me chega seja imediatamente confirmado – neste segundo caso, o prazer está em “picar” meu semelhante, certamente uma certa dose de sadismo.

Passei várias mensagens já depois daquele post de 20 de novembro, e não houve indignação ou questionamento de “fontes”, com exceção de um amigo alguns dias depois sobre este mesmo post, e de outra amiga sobre outro post que continha uma afirmação sobre globalização absolutamente errônea, que sem dúvida foi construído para gerar confusão e apoiar as forças do submundo obscuro e autoritário, exatamente como eu fiz querendo combatê-las.

As pessoas raramente vão procurar saber se notícias virtuais ou não, reúnem as condições para serem consideradas verdadeiras ou falsas, simplesmente porque nossas mentes concordam “antes” ou não com elas, e, portanto, só iremos procurar as que nos desagradarem muito, as que ferirem muito nossas noções e valores. Aquilo que não nos provocarem dor, sofrimento, repulsa, ou seja, aquelas notícias que não vão contra o pensamento imediato, têm pouca chances de serem averiguadas, apesar dos mecanismos cibernéticos de hoje que facilitam essas buscas. Portanto, a maioria das notícias que são fake news não é verificada! Não importa de verdade para o pensamento se existem verdades ou falsidades, se uma notícia é falsa ou verdadeira, apenas interessa se está em consonância e bate com o pensamento ou não. Os fiéis, como um filho, ou aluno, ou aquele nosso grande amigo, têm uma tendência enorme, quase inatacável, em acreditar em nós, simplesmente porque “o mundo” já introduziu informação suficiente nas mentes para que seja analisada antecipadamente a notícia, “filtrada” já de início pelas certezas e opções prévias que fizemos.

Nascemos para aprender, aprendemos pelas relações sociais, e com a observação das coisas e dos fenômenos do mundo ao nosso redor. Nossas vidas cotidianas continuam a reforçar, mais ou menos, essas estruturas arquetípicas formadas; daí permanentemente tudo o que pensamos ser está a se reforçar por nossas vidas concretas, por nossas posições sociais, pela régua que à nossa volta escolhem para medir nosso sucesso, pela vida que temos com mais ou menos segurança, conforto e luxo. Somos seres em permanente construção, mas não tanto; somos seres seletivos, bastante seletivos. Somos seres da experiência “calcificada”, um “fóssil”. Precisamos derreter, e nosso prazo de validade precisa ser esticado, dilatado pelo estudo e pela sensibilidade (sic), e isto, quiçá, possa ainda ser escolhido por nós até o fim!


Referências Bibliográficas
GOMBRICH, E. H. O Sentido da Ordem: um estudo sobre a psicologia da arte decorativa. Porto Alegre: Bookman, 2012
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Fundamentos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2014
VIGOTSKI, Leve S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994

Obs.: Agradeço a todos os amigos que de forma direta ou pelas redes sociais se prestaram de forma cortês a me ajudar com informações sobre o tema.


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