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Marcílio Toscano Franca Filho

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16/01/2019

Artigo escrito em coautoria com Inês Virgínia Prado Soares

Música e Direito mantêm uma relação tormentosa e apaixonada e, talvez por isso, não fujam à regra: são uma dupla que desperta atenção e divide opiniões quando entra em conflito. Censuras, vetos, músicas marciais, hinos nacionais xenófobos, decálogos normativos com estéticas de Estado, subvenções espúrias, ostracismos, demissões, expurgos, detenções de artistas, fomento de academias oficiais, condenações judiciais de cantores e produtoras que veiculam canções, jabás são indicativos concretos das dificuldades dessa relação.

Na intimidade do espelho, o Direito se enxerga muito parecido com a música: moldam e induzem comportamentos, constituem expressões de linguagem e, principalmente, tornam a convivência social possível. Algumas vezes, belamente possível. Já a música, não percebe tantas semelhanças. Ela quer ser livre. Na maioria das vezes não foi pensada para moldar nada ou ninguém. Curiosa, a música pergunta ao espelho o que aconteceria se ela rompesse o ideal de convivência harmônica.

A liberdade de expressão musical, garantida pelo Direito, não seria o abrigo para quem cantar ou compor o impossível, o injusto, o desagradável e o feio? Embora o desejo de segurança, certeza, previsibilidade sejam aspirações do Direito, caberia sua interferência quando, no exercício da liberdade musical, artistas revelam a complexidade, perversidade ou mediocridade das relações humanas e incitam comportamentos ilegais e socialmente inaceitáveis? A música, como outras formas de arte, não seria o veículo para se expressar o indizível e o repugnante?

Em 18 de março de 2010, o popstar Simon Bikindi, célebre músico, cantor, compositor e artista de Ruanda, rosto mais visível do Ministério da Juventude e Esporte do país africano destruído pela guerra civil, foi condenado a 15 anos de prisão por um Tribunal Internacional das Nações Unidas por crime contra a humanidade. O seu delito? Incitar de maneira grave, repetitiva, direta e pública, com composições musicais distribuídas em fitas cassete e divulgadas em alto-falantes citadinos, shows ao vivo e gravações na Rádio Ruanda, os seus compatriotas da etnia hutu ao feroz genocídio da etnia tutsi, durante os massacres de 1994. Em sua defesa, Binkindi comprovou que sequer estava no país durante os cem dias mais violentos. Que não tinha como proibir a veiculação de suas músicas em rádios e tampouco que fosse cantada pelos algozes. Mas o entendimento foi de que sua voz ecoava e suas canções alcançavam o inconsciente da população, sendo um importante fator no massacre.

Guardadas as devidas proporções, o Superior Tribunal de Justiça, num contexto não criminal, desconsiderou a participação ou a intenção do compositor, quando, em 2018, no julgamento de ação civil pública contra a veiculação da música Tapinha (hit “Um tapinha não dói”), proposta em 2003 pela ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos e pelo Ministério Público Federal/RS, confirmou a condenação da produtora musical Furacão 2000 ao pagamento indenização de R$ 500 mil. A defesa era de que a música mencionava uma relação consensual entre iguais, homem e mulher e que o “tapinha” seria um gesto de intimidade e sensualidade entre casais. No voto relator, o ministro Herman Benjamin destacou que houve banalização da violência contra a mulher e que a liberdade de expressão artística não autoriza “a apologia a comportamentos ilícitos em manifestações populares”. Na decisão, prevaleceu o entendimento de que “deve ser combatida qualquer forma de violência concreta ou simbólica (humilhação), que – se não é estimulada- é retratada em canção”. (Resp. 1664581, DJ 05/09/2018). Esse funk, quando cantado por Caetano Veloso e Paula Toller, foi vaiado pela plateia, numa reação clara à mensagem da música e não aos intérpretes.

Se a música pode ser banida pelo Direito, por causa de seu conteúdo, também o pode ser pela vontade do compositor ou cantor? Diversos cantores americanos interpelaram e proibiram o presidente Trump de usar suas músicas em eventos políticos. O último episódio envolveu a música Happy de Pharrell Williams, que foi veiculada num evento com o presidente americano, poucas horas após ter acontecido um massacre em outra cidade dos EUA, numa Sinagoga, no qual morreram 11 pessoas. Além da falta de autorização, o cantor considerou desrespeitoso tocar uma música feliz num momento de luto coletivo.

No Brasil, tivemos dois episódios recentes no mesmo sentido: Chico Buarque, em 2016, notificou a TV Cultura e pediu a retirada de sua canção Roda Viva do programa homônimo do canal, por não concordar com as mudanças na linha editorial. A presença do presidente Temer no programa, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, parece ter sido o fato determinante a decisão de Chico Buarque. A música, criada em 1967 para uma peça teatral, virou um marco quando em 1968 os atores a peça, após o espetáculo, foram atacados por agentes do regime militar; e João Bosco e Aldir Blanch, compositores da música “O bêbado e a equilibrista”, lançaram notas de repúdio ao uso da expressão “Esperança Equilibrista” para nomear uma operação da Polícia Federal (de 2017), que investigava suposto desvio de verbas na construção do Memorial da Anistia Política do Brasil. Os músicos lembraram que a canção, lançada em 1978, no momento de luta pela anistia dos presos políticos, foi um “hino à liberdade e à luta retomada do processo democrático”.

Há também os casos em que o Direito silencia. As barreiras acústicas, velhas conhecidas no direito ambiental e urbanístico como mecanismo de proteção da poluição sonora, foram usadas numa nova modalidade no verão europeu de 2018, quando o metrô de Berlim começou a difundir ininterruptamente música atonal na estação de Hermannstrasse para evitar que viciados em drogas, traficantes e sem-teto frequentassem o local durante as madrugadas. Em 2016, uma organização de lojistas e comerciantes do centro e San Francisco, Califórnia, utilizou composições de Bach em alto-falantes para evitar a aproximação de mendigos e pedintes. Nesse caso, a mudez do Direito seria uma trégua para a música ou para os que a utilizam com a finalidade de afastar ainda mais grupos já marginalizados? Voltamos à questão anterior: a música pode ser utilizada contra a vontade de seu autor?

Som e silêncio são elementos complexos da música e do Direito. As pausas, as ausências, os vazios estão sempre prenhes de sentido. Antes da música e para que haja música, deve haver silêncio. Além do mais, na música, também há gêneros e classes de silêncios: prudentes, maliciosos, complacentes, inesperados, planejados, denunciantes, românticos, de vanguarda, barrocos, de desprezo, de admiração, de ódio, de amor. No Direito, o silêncio contratual, do réu no direito penal, da Administração Pública, do legislador, do Poder Judiciário, da criança, do nubente, da lei, do costume, da testemunha têm sempre valor (positivo ou negativo) nos sistemas jurídicos contemporâneos.

Silenciar, dar voz e dar ouvidos são expressões de enormes consequências políticas e estéticas na música e no direito. Nas situações de injustiça, em que o Direito não silencia, mas também não resolve, há Música. Bob Marley, falecido aos 36 anos e o maior expoente do reagge, fez barulho ao cantar que “Eles dizem que o sol brilha para todos, mas para algumas pessoas no mundo ele nunca brilha”. Sua música ecoou e, em novembro de 2018, a Unesco declarou o reggae jamaicano patrimônio cultural imaterial da humanidade. Na justificativa para concessão do título, foi dito que o reggae ao falar de injustiças sociais, racismo e opressões, da beleza da natureza e do amor, “conserva intacta toda uma série de funções sociais básicas da música — veículo de opiniões sociais, prática catártica e religiosa.”

Talvez a memória coletiva seja o refúgio nos dias de calmaria entre o Direito e a música. Entre tantas canções e tantas leis, há cantinhos, gavetas e jardins para o belo e o justo. Há momentos de plenitude, de encontro e convergências. Contudo, isso não significa que juristas e artistas possam abrir mão de, quotidianamente, tentar densificar o que uma Constituição ou uma partitura procuram dizer. E aí, a faca corta – a carne do Direito, a carne da música; corta a carne de vocês.

Inês Virgínia Prado Soares – Desembargadora Federal no TRF da 3ª. Região (SP), Doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum)


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