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A Recente Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018): o Novo Cenário Jurídico dos Contratos de Aquisição de Imóveis em Regime de Incorporação Imobiliária ou de Loteamento (Parte 3)

CDC

CONSÓRCIO

CONTRATOS DE AQUISIÇÃO DE IMÓVEIS

JUROS REMUNERATÓRIOS

LEI DO DISTRATO

LEI Nº 13.476/2017

LEI Nº 13.786/2018

LEI Nº 4.591/64

LEI Nº 6.766/76

LEILÃO DE IMÓVEIS

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

07/02/2019

Por Carlos E. Elias de Oliveira e Bruno Mattos e Silva*

O § 13 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 estabelece que “poderão as partes, em comum acordo, por meio de instrumento específico de distrato, definir condições diferenciadas das previstas nesta Lei”. Esse dispositivo é o único que – talvez – possa ser considerado como referente ao distrato propriamente dito, assim entendido o acordo de vontades destinado a extinguir um contrato (resilição bilateral). Sobre esse dispositivo, discorreremos no próximo capítulo. Os demais dispositivos da nova lei, ao se referir ao termo “distrato”, está, na verdade, referindo-se à resilição unilateral, pois esses dispositivos pressupõem um “distrato” que independe de um acordo de vontades e que só depende da vontade unilateral de uma das partes, ou a um mero contrato para quitação de uma dívida.

Nesse sentido, o inciso VI do art. 35-A da Lei nº 4.591/64 e o inciso V do art. 26, V, da Lei nº 6.766/76 exigem que, no quadro-resumo a ser aposto nos contratos de venda de imóveis “na planta” e de lotes, conste “as consequências do desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual …”. O termo “distrato” aí se refere, na verdade, à resilição unilateral, pois, como a resilição bilateral pressupõe um acordo de vontade futuro, é absolutamente impossível que, no momento da celebração do contrato principal, as partes já antevejam as cláusulas de um futuro acordo de resilição. Não existe, por impossibilidade jurídico, distrato com cláusulas já definidas no momento da celebração de um contrato, pois o distrato pressupõe que o acordo seja necessariamente posterior ao contrato. Além do mais, quando o § 13 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 estabelece que as partes podem, em instrumento específico de distrato, afastar as regras da nova lei, ele está a confirmar que a definição das cláusulas do distrato é fruto de um acordo futuro das partes.

Igualmente, o caput do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 pontifica: “Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus …”. O termo “distrato” aí também se refere, na verdade, à resilição unilateral, e não à resilição bilateral. É que, no momento em que esse dispositivo estabelece que o adquirente “fará jus” a algo, ele está estabelecendo um direito subjetivo, assim entendida a faculdade de agir (facultas agendi) em favor do adquirente. Ora, se o adquirente tem um direito subjetivo a receber um determinado valor, esse seu direito não pode ser condicionado ao consentimento prévio do incorporador. Entendimento contrário nos conduziria ao absurdo de entender que, se o incorporador não consentir em assinar um instrumento de distrato, o adquirente não terá os direitos assegurados no caput do art. 67-A.

Idêntico raciocínio vale para o § 2º do art. 67-A, que, ao mencionar o termo “distrato”, está reportando-se, na verdade, à resilição unilateral por imperativo lógico, pois esse preceito também estabelece um direito subjetivo ao adquirente.

Por outro lado, o § 2º do art. 32-A da Lei nº 6.766/76 estabelece que, no caso de resolução do contrato por culpa do adquirente, o loteador somente poderá revender o lote após comprovar que já começou a restituir ao adquirente os valores que lhe são devidos, tudo “na forma e condições pactuadas no distrato”. O termo “distrato” aí não se refere ao distrato propriamente dito, e sim um mero contrato para pagamento de dívida. É o distrato propriamente dito é uma resilição bilateral e, portanto, não decorre de uma extinção do contrato por culpa de quem quer que seja. Distrato é incompatível com resolução contratual por culpa de uma das partes. Ora, como o referido dispositivo cuida de uma resolução contratual por culpa do adquirente e estabelece como será calculado o valor final a ser pago ao adquirente após as deduções de multas e outros encargos, não se pode falar em distrato propriamente dito. Enfim, o termo “distrato” no § 2º do art. 32-A da Lei nº 6.766/76 trata, na verdade, de um mero contrato de negociação da dívida final que o loteador terá perante o adquirente que deu causa à resolução contratual.

O mesmo raciocínio vale para o caput e o § 3º do art. 35 da Lei nº 6.766/76, os quais tratam também de uma hipótese de resolução contratual por culpa de uma das partes (no caso, culpa do loteador).

O § 13 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 estabelece que “poderão as partes, em comum acordo, por meio de instrumento específico de distrato, definir condições diferenciadas das previstas nesta Lei”. O texto nos parece ter empregado o termo “distrato” de modo atécnico, pois, pelo que se depreende dele, a sua intenção foi, na verdade, estabelecer um contrato de confissão ou de renegociação de dívida decorrente de uma resolução contratual motiva por culpa de qualquer das partes. Ora, se a extinção do contrato decorrer de uma resolução contratual por culpa de qualquer das partes, o acordo das partes quanto ao pagamento das dívidas devidas não é um distrato, e sim mero contrato de reconhecimento ou de renegociação de dívida. O distrato propriamente dito é uma extinção do contrato por mera vontade imotivada das partes e distingue-se necessariamente da resolução.

Daí decorre que, se o dispositivo acima for interpretado como a se referir ao distrato propriamente dito, ele ficaria sem sentido, pois a nova Lei destina-se a regular os casos de extinção do contrato por culpa de qualquer das partes (resolução ou, conforme já defendemos, resilição unilateral).

Parece-nos que o mais adequado é interpretar que o dispositivo está a tratar de uma resolução contratual por culpa de qualquer das partes, de modo que o termo “distrato” não se refere ao distrato propriamente dito.

Sob essa ótica, surge o problema de definir se essas condições diferenciadas a que se refere o § 13 do art. 67-A poderão reduzir os direitos previstos na lei para o adquirente ou não.

Há duas interpretações viáveis.

A primeira é a de que, se o adquirente for consumidor, seria abusiva qualquer cláusula que suprimisse seus direitos. Não poderia, portanto, esse acordo reduzir a multa compensatória que o incorporador teria de pagar.

A segunda é a de que, mesmo na hipótese de o adquirente ser consumidor, é possível essa supressão de direitos.

Preferimos a segunda corrente, admitindo que sejam reduzidos os direitos do adquirente, ainda que ele seja consumidor. O motivo é o de que o acordo em pauta nos parece ter a natureza jurídica de uma transação, por meio da qual as partes, para evitar uma judicialização (para prevenir litígios), fazem concessões recíprocas para resolver rapidamente o entrevero. Aliás, o próprio Poder Judiciário estimula que as partes façam conciliação em demandas judiciais, de maneira que não vemos ilicitude alguma em que essa conciliação seja feita extrajudicialmente por meio do acordo em pauta.

Portanto, à luz do § 13 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64, o termo “distrato” empregado nesse dispositivo refere-se, na verdade, a um contrato de confissão e de renegociação de dívida e, por se destinar a prevenir judicializações, deve assegurar a mais plena liberdade negocial entre as partes, com possibilidade de redução de direitos tanto do adquirente quanto do alienante.

No caso de resolução contratual por inadimplemento do adquirente, o alienante, após deduzir multas e outros encargos, terá de restituir um valor residual final na forma do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 e do art. 32-A da Lei nº 6.766/76).

Quando se tratar de incorporação imobiliária, o prazo para essa devolução será de 180 dias da data do desfazimento do contrato ou, se a incorporação estiver em regime de patrimônio de afetação, será apenas no prazo de 30 dias após a averbação do “habite-se” (art. 67-A, §§ 5º e 6º, Lei nº 4.591/64). Se, porém, a unidade for revendida antes do transcurso desse prazo, o restituição do valor residual para o adquirente deverá ocorrer em 30 dias da revenda (art. 67-A, § 6º, da Lei nº 4.591/64). Seja como for, somente após esse longo prazo é que se poderá falar que o incorporador estará em mora e, portanto, somente a partir daí será devido cobrar os encargos moratórios, como juros moratórios.

Quando se cuidar de loteamento, a devolução deverá acontecer em 12 parcelas mensais devidas a partir de 180 dias do prazo fixado para o término das obras ou, se a obra já estiver finda, de 12 meses após a formalização da resolução contratual (art. 32-A, § 1º, da Lei nº 6.766/76).

Como se vê, trata-se de prazos longuíssimos. Para receber o dinheiro residual de volta, mesmo já tendo pagado multas e outros encargos, o adquirente terá de aguardar, em muitas situações, mais de um ano.

A opção legislativa merece críticas vorazes. Com efeito, a nova lei aí desvirtuou o instituto do patrimônio de afetação, que nada mais é do que uma segregação patrimonial apenas para efeito de proteger os credores do empreendimento perante outros credores pessoais do incorporador. Patrimônio de afetação nada mais é do que uma exceção ao princípio da patrimonialidade previsto no art. 789 do CPC e apenas é uma blindagem de um patrimônio perante penhoras de credores alheios ao fim da afetação. A nova lei tratou o patrimônio de afetação como se transformasse o empreendimento em um consórcio imobiliário, em uma sociedade ou em um grupo de amigos que teriam se comprometido a construir um prédio para si. Do ponto de vista técnico, não há justificativa alguma para distinguir valor de multa ou prazo de pagamento entre um empreendimento com patrimônio afetação e outro sem. Ademais, é um despropósito obrigar o dinheiro do consumidor continuar nas mãos do incorporador até o final da obra, especialmente porque o consumidor não possui qualquer ingerência sobre a gestão financeira do empreendimento. O consumidor sequer pode impedir que o incorporador dilapide o seu caixa com uma ruinosa administração. Se se tratasse de um consórcio imobiliário, a situação seria diferente, pois os consorciados possuem poder de interferência na gestão do empreendimento por meio de participação em assembleias e o Banco Central fiscaliza o consórcio (arts. 6º e 18 da Lei nº 11.795/2008), o que justifica que a devolução do dinheiro só ocorra ao final do grupo de consórcio. Todavia, apesar da crítica técnica, não nos parece – em uma primeira leitura – haver inconstitucionalidade nessa opção (malgrado haja um odor de ofensa ao princípio constitucional da razoabilidade) e, portanto, cabe à doutrina render-se com a lembrança da máxima romana “legem habemus” (há lei).

Há, porém, um fato relevantíssimo a ser levado em conta pela jurisprudência e pela doutrina. É que, embora o incorporador ou o loteador só passe a estar em mora após os longevos prazos estabelecido nos §§ 5º e 6º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 e no art. 32-A, § 1º, da Lei nº 6.766/76, o fato é que o valor residual remanescente pertence ao adquirente desde o momento da resolução do contrato e, portanto, acarretaria enriquecimento sem causa se o incorporador ou o loteador nada pagasse ao adquirente pela fruição desse dinheiro durante o período. Violaria a vedação ao enriquecimento sem causa que o incorporador ou o loteador pudesse fazer do dinheiro do adquirente um capital de giro e colhesse os frutos desse dinheiro sem pagar nada ao adquirente. Por essa razão, em nome da vedação ao enriquecimento sem causa (art. 884, CC), o incorporador ou o loteador deverá, entre a data da resolução e a data do vencimento, pagar ao adquirente um valor de fruição do dinheiro, o que pode ser estimado no patamar de uma taxa razoável de juros remuneratórios (e não moratórios, porque não há mora). Lembre-se de que juros remuneratórios são os frutos do dinheiro e, portanto, são devidos antes do vencimento, ao passo que os juros moratórios são punição e indenização presumida a serem cobrados só após o vencimento. Para nós, essa taxa razoável de juros remuneratórios deveria ser a do teto previsto no art. 591 do CC, que atualmente corresponde à taxa Selic, pois se aproxima dos rendimentos obtidos pelos particulares em aplicações financeiras.

Esse valor a ser pago a título de fruição do dinheiro deverá ser cumulado com a correção monetária do valor residual, pois se trata de fatos diferentes. O valor de fruição é um valor decorrente da vedação do enriquecimento sem causa, ao passo que a correção monetária é mera manutenção do valor real da moeda e está determinada expressamente no § 8º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64.

Portanto, havendo a resolução do contrato por culpa do adquirente, o valor residual deverá a ser-lhe restituído deverá ser feito no prazo estabelecido nos §§ 5º e 6º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 e no art. 32-A, § 1º, da Lei nº 6.766/76, mas, durante esse período, esse valor deverá ser acrescido com: (1) correção monetária para mera preservação do valor real da moeda por ordem expressa do § 8º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 (que tem de se aplicar por analogia para o regime de loteamento); e (2) um valor de fruição do dinheiro para evitar o enriquecimento sem causa, valor esse que deverá corresponder a uma taxa razoável de juros remuneratórios, a qual, ao nosso sentir, deve ser o teto estabelecido no art. 591 do CC. Após o vencimento, somente incidirá sobre o valor residual os encargos moratórios do arts. 389 e 395 do CC, como correção monetária, juros moratórios etc.

O § 5º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 estabelece que, se houver patrimônio de afetação, a devolução do valor residual ao adquirente no caso de resolução contratual por culpa deste quando houver patrimônio de afetação é o de 30 dias “após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente”.

O texto legal, porém, foi omisso para a hipótese de haver atraso na entrega das obras. Ora, nesse caso, entendemos que, se o habite-se não for obtido até a data final de entrega do imóvel na forma estabelecida no contrato (com inclusão do prazo de suspiro de 180 dias prevista no art. 43-A da Lei nº 4.591/64), ocorrerá o vencimento da obrigação de devolver o valor residual, sob pena de o vencimento da dívida se arrastar no tempo ad seculorum e o atraso do incorporador ser injustamente relevado.

Portanto, o § 5º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 deve ser entendido no sentido de que o prazo de 30 dias para a devolução do valor residual ao adquirente no caso de resolução contratual por culpa deste quando houver patrimônio de afetação é a data do habite-se ou a data contratual final para a entrega do imóvel (com inclusão do prazo de suspiro do art. 43-A), o que ocorrer em primeiro lugar.

O § 1º do art. 43-A da Lei nº 4.591/64 estabelece que, no caso de resolução do contrato por culpa do incorporador, a devolução do dinheiro deverá ocorrer no prazo de 60 dias da data da resolução.

Entendemos que, durante esse período, para evitar enriquecimento sem causa do incorporador, este deverá pagar um valor de fruição do dinheiro do adquirente perante esse período, valor esse que poderá corresponder a uma taxa razoável de juros remuneratórios. Temos que essa taxa razoável é o teto do art. 591 do CC.

No momento da entrega das chaves, é comum o adquirente ter de pagar um saldo devedor remanescente, que geralmente é de valor elevado.

Para tanto, o adquirente tem três opções: (1) pagar tudo com dinheiro pessoal; (2) contrair financiamento com uma instituição financeira e oferecer-lhe, como garantia do pagamento do empréstimo, uma garantia real sobre o imóvel; e (3) parcelar a dívida diretamente com o incorporador.

No primeiro caso – pagamento com recursos próprios –, nada há a comentar. O adquirente já não possui relação jurídica com ninguém em relação ao seu imóvel.

Na segunda hipótese – a de financiamento bancário –, nada da nova lei será aplicada, pois o adquirente não possui mais nenhuma relação jurídica com o incorporador. O contrato de aquisição do imóvel já foi extinto pelo pagamento feito com o dinheiro obtido com o empréstimo bancário. A nova lei não trata de relações jurídicas envolvendo o banco. O próprio caput do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 tomou o cuidado de usar o advérbio “exclusivamente” para deixar claro que só a estava a regulamentar relações jurídicas com o incorporador. O adquirente só mantém relação jurídica com a instituição bancária, envolvendo, geralmente, um contrato de mútuo e um contrato de alienação fiduciária em garantia. Nesse caso, a instituição financeira poderá executar a garantia real nos moldes da lei específica para quitação do empréstimo.

Na terceira hipótese – financiamento direto com o incorporador –, a nova lei textualmente determina que “a restituição far-se-á de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva lei especial ou com as normas aplicáveis à execução em geral” (§ 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64). O texto não ficou com a devida clareza e, para buscar entendê-lo, convém previamente lançar os olhos para a prática negocial atual.

Deveras, no caso de financiamento direto com o incorporador, é comum que este celebre um contrato de compra e venda a preço parcelado acrescido de juros remuneratórios correspondente ao teto do art. 591 do CC com um contrato coligado de alienação fiduciariamente em garantia. Nesse caso, o adquirente figurará como comprador no primeiro contrato e assumirá o dever de pagar as parcelas do preço do imóvel (na prática, é o valor do saldo devedor remanescente) e, como garantia do pagamento dessa dívida pecuniária, o adquirente aliena fiduciariamente o imóvel. Trata-se de uma criatividade negocial interessante de que se valem os incorporadores para cobrarem os seus créditos com a força violenta do rito executivo extrajudicial da Lei da Alienação Fiduciária em Garantia (Lei nº 9.514/97). Nesse rito executivo, o imóvel é leiloado para quitação integral da dívida remanescente, de modo que o adquirente só será direito a receber algum valor residual se o leilão for exitoso e consiga um valor superior ao valor total da dívida. A bem da verdade, na prática, com esse rito executivo, o adquirente acaba perdendo integralmente tudo quanto pagou, além de ficar sem o imóvel, que foi leiloado para quitação da dívida. Há ainda hipóteses em que o valor obtido com o leilão sequer quita a dívida integralmente, caso em que sobrará um saldo devedor remanescente. Por esse saldo devedor remanescente, o devedor não irá responder por força da extinção dessa dívida residual à luz do § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97. Alerte-se que, se o credor fosse uma instituição financeira, não haveria a extinção de saldo devedor remanescente: o devedor continuaria obrigado por ele, conforme art. 9º da Lei nº 13.476/2017.

Daí surge a seguinte questão: havendo financiamento direto com o incorporador, o adquirente poderá ou não valer-se das regras das nova lei para o cálculo da sua dívida, como a relativa aos valores que poderiam ser deduzidos do valor a se restituído?

À luz da recente § 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64, entendemos que a sua melhor interpretação é no sentido de que: (1) o cálculo do valor total do crédito do alienante deverá ser disciplinado pela nova lei nos moldes do previsto no art. 67-A da Lei nº 4.591/64); e (2) o modo de expropriação e o prazo de pagamento seguirá o disposto na lei especial, a exemplo da Lei nº 9.514/97, se houver alienação fiduciária em garantia.

Afinal de contas, o § 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 apenas estabeleceu que “a restituição far-se-á de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva lei especial ou com as normas aplicáveis à execução em geral”. Ora, esse dispositivo apenas está remetendo para lei especial as regras de procedimento (regras processuais) e prazo de pagamento, mas não as regras de direito material relacionadas ao cálculo do valor da dívida (regras de direito material). Em nenhum momento, o referido dispositivo tratou do valor a ser restituído será calculado, mas apenas do modo como a restituição desse valor devido será feito.

E há uma evidência robusta de que esse é o espírito da legislação: o inciso III do § 2º do art. 67-A textualmente prevê a possibilidade de o incorporador reter um valor de fruição pelo tempo de posse do adquirente sobre o imóvel. Ora, o adquirente somente imite-se na posse do bem no momento da entrega das chaves, quando também lhe incumbe quitar o saldo devedor ou contrair o financiamento bancário ou o financiamento direto com o incorporador. A razão de ser de o art. 67-A prevê essa retenção do valor de fruição é exatamente porque as regras de direito material para a definição do montante total da dívida a ser cobrada são dadas pela nova lei, ao passo que as regras procedimentais de cobrança (de natureza processual) e as de prazo de pagamento serão o da lei especial. Como se vê, o § 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 guarda sintonia com o inciso III do § 2º do art. 67-A da mesma lei.

Assim, se um consumidor financiou o saldo devedor diretamente com o incorporador por meio de um contrato de compra e venda a preço parcelado com juros remuneratórios em coligação com um contrato de alienação fiduciária em garantia e se esse consumidor incorreu em inadimplência ou pleiteou a resilição unilateral do contrato de compra e venda, o valor total da dívida a ser executada deve ser calculada na forma do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 e, portanto, será correspondente ao somatório das rubricas previstas nos incisos I e II do caput do referido artigo com as rubricas dos incisos I a IV do § 2º do mesmo artigo. Esse valor é o crédito devido ao incorporador. Esse crédito poderá ser executado por meio do procedimento previsto na Lei nº 9.514/97 (leilão extrajudicial) e eventual devolução do saldo devedor será restituído ao adquirente na forma dessa lei, ou seja, não serão aplicados os largos prazos de devolução previstos nos §§ 5º, 6º e 7º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64.

Essa nossa interpretação parece ser mais adequada com o texto da nova lei e que guarda sintonia com a intenção das partes.

Se eventualmente o contrato estipular que o cálculo da dívida a ser garantida com a alienação fiduciária será o preço pactuado no contrato de compra e venda com os pertinentes acréscimos de juros remuneratórios, entendemos que esse pacto contratual será nulo se o adquirente for consumidor, pois, além de o art. 53 do CDC vedar a perda integral dos valores pagos (o que fatalmente ocorreria se o pacto contratual prevalecesse), essa cláusula afigura-se abusiva ao consumidor por lhe impor uma obrigação manifestamente excessiva e incompatível com a sua vontade presumível caso tivesse poder de barganha (art. 51 do CDC).

Portanto, entendemos que, no caso de “financiamento direto” com o incorporador para pagamento do saldo devedor devido no momento da entrega das chaves, o § 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 somente se aplica para regras procedimentais e para o prazo de vencimento do valor residual a ser restituído ao adquirente, de modo que o cálculo da dívida a ser cobrada pelo alienante deverá ser o somatório das rubricas previstas nos incisos I e II do caput do art. 67-A e nos incisos I a IV do § 2º do art. 67-A. Ademais, nesse caso de financiamento direto com o incorporador, se o adquirente for consumidor, é nula cláusula contratual que estipule o cálculo da dívida a ser cobrada pelo alienante de modo diverso.

O § 3º do art. 32-A da Lei nº 6.766/76 estabelece que “o procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997”.

Esse dispositivo deve ser interpretado da mesma forma que o seu irmão gêmeo, o § 14 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64, de maneira que a incidência da Lei nº 9.514/97 nos contratos de compra e venda de lotes coligados a contratos de alienação fiduciária em garantia só ocorrerá quanto às regras procedimentais (direito processual) e ao prazo de pagamento, mas não quanto ao cálculo da dívida que o loteador poderá executar. E, se o adquirente for consumidor, é nula cláusula que disponha em sentido contrário.

O inciso II do § 2º do art. 67-A da Lei nº  4.591/64 e o inciso IV do art. 32-A da Lei nº 6.766/76 estabelece que, no caso de resolução do contrato por culpa do adquirente, o alienante deverá reter, entre outras dívidas vinculadas ao imóvel, as contribuições devidas a associações de moradores.

É preciso tomar cuidado na interpretação desse dispositivo. O STJ já pacificou que não há obrigatoriedade de os titulares de lotes pagarem contribuição a associação de moradores, salvo se eles voluntariamente forem associados. De fato, por meio de recurso repetitivo (que tem efeitos vinculantes), o STJ assentou: “As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram” (STJ, REsp 1280871/SP, 2ª Seção, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, DJe 22/05/2015).

Daí decorre que os dispositivos acima devem ser interpretados no sentido de que o alienante só poderá reter o valor das contribuições devidas a associações de moradores se o adquirente era voluntariamente associado, pois só nessa hipótese havia obrigatoriedade de pagamento.

Não se confunda o exposto acima com os casos em que há um condomínio de lotes, formalmente instituído na forma do art. 1.358-A do CC. Nesse caso, os condôminos são obrigados a pagar contribuições ao condomínio. Não se trata aí de contribuição a associação de moradores, e sim de pagamento de quota condominial, a qual é obrigatória por lei. Nesse caso, havendo a resolução do contrato, essas contribuições condominiais poderão ser retidas pelo alienante na forma do exposto no inciso II do § 2º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 e o inciso IV do art. 32-A da Lei nº 6.766/76.

Conforme já exposto, há duas diretrizes interpretativas a serem seguidas na leitura da nova Lei. A primeira é a de que, se a nova Lei não afastou expressamente o que era admitido pela jurisprudência antes dela, é por que essa nova Lei consentiu com a sua manutenção. Afinal de contas, a nova Lei foi elaborada exatamente para remodelar o cenário jurídico vigente antes dela, conforme se extrai do contexto histórico que a animou e dos debates legislativos. A segunda diretriz interpretativa é a de que a nova Lei é de ordem pública e, por flexibilizar o valor constitucional da livre iniciativa, destina-se a garantir direitos à parte mais fraca na relação contratual, o adquirente.

Nesse contexto, tendo em vista que era amplamente admitida na jurisprudência o controle de exorbitância do valor pactuado a título de multa compensatória e multa moratória com base nos arts. 413 do CC e 51 do CDC, como a nova Lei não vedou expressamente isso, mas apenas estabeleceu valores máximos de multas moratórias e compensatórias, é plenamente admissível que o juiz, ao verificar desproporcionalidade nessa multa, poderá reduzi-la com base nos referidos dispositivos, ainda que o beneficiado não seja consumidor. Se o beneficiado não for consumidor, o fundamento será apenas o art. 413 do CC. Se, porém, ele for consumidor, o juiz deverá ser mais intervencionista ainda, pois também seria aplicável o art. 51 do CDC.

A propósito da multa compensatória – que, segundo a nova Lei, poderia chegar a 25 ou 50% do valor pago conforme haja ou não patrimônio de afetação –, a tendência jurisprudencial era considerar abusivas multas compensatórias que exorbitassem a faixa entre 10 a 15% do valor pago. O STJ, diante das limitações de revisar fatos e provas à luz da Súmula nº 7/STJ, só intervinha em recursos especiais que atacassem acórdãos que estipulassem valores muito elevados, assim entendidos os que desbordavam a faixa de 25% do valor pago. Não quer dizer que o STJ aceitava multa compensatória de 25% na média, e sim que, em nome da Súmula nº 7/STJ, essa Corte só intervinha em situações de manifesta exorbitância. Na prática, ao fuçar os julgados do STJ, vê-se que, em geral, a multa compensatória era reduzida para a faixa de 10 a 15%.

Ao nosso sentir, somente se o adquirente não for consumidor (como no caso de fundos de investimento imobiliário), é que efetivamente a multa compensatória poderá vir a ser admitida como razoável se for estipulada no patamar máximo de 25% a 50% do valor pago, conforme haja ou não patrimônio de afetação. Afinal de contas, nesse caso, só se aplicaria o art. 413 do CC, e não o art. 51 do CDC. Se se tratar de relação de consumo, deve ser mantida a faixa de razoabilidade da jurisprudência anterior à nova Lei por força do art. 51 do CDC.

Disso nos dão lição os Professores Flávio Tartuce e Marco Aurélio Bezerra de Melo, dois entre mais respeitados civilistas contemporâneos, os quais, com olhar cirúrgico, fundamentaram essa incolumidade da jurisprudência anterior relativa ao controle de exorbitância de multas moratórias e compensatórias, consoante se lê no seu recente artigo intitulado “Primeiras linhas sobre a restituição ao consumidor das quantias pagas ao incorporador na Lei 13.786/2018”[1]. Eles, com olhar cirúrgico, lembram que a jurisprudência deve continuar entendendo que, no caso da multa compensatória contra o consumidor, será abusivo pacto superior a 10%. Com grande sensibilidade com a realidade social, eles citam um exemplo que merece transcrição:

“Imagine-se, a título de exemplo, um consumidor que investe todas as suas economias para a compra de um imóvel, visando a sua moradia e de sua família, com o desembolso de uma entrada de valor considerável, correspondente a cerca de metade do valor do bem. Logo em seguida, fica ele desempregado, não podendo mais arcar com o pagamento das parcelas que assumiu. Haverá a perda de metade do que pagou? Entendemos que não, sendo necessário aplicar, nessa hipótese fática, a redução equitativa da cláusula penal que consta do art. 413 do Código Civil, podendo a penalidade ser reduzida ao patamar de 10% do montante pago, na linha do entendimento jurisprudencial anterior, aqui citado.”[2]

Portanto, a nova Lei não afastou os arts. 413 do CC e 51 do CDC para efeito de permitir a redução de multa compensatória ou multa moratória exorbitantes, de maneira que a jurisprudência anterior à nova Lei não foi atingida nesse ponto. No caso da multa compensatória, somente se poderá admitir, como razoável, o teto da nova Lei (25% a 50% do valor pago, conforme haja ou não patrimônio de afetação) se o adquirente não for consumidor, pois, nesse caso, não se aplicará o art. 51 do CDC, mas apenas o art. 413 do CC.

Inúmeros outros pontos haverão de ser debatidos pela doutrina e pela jurisprudência, mas enfatizamos que nunca poderão ser ignoradas as diretrizes interpretativas expostas neste texto, que nos recordam que a razão de ser de leis de ordem pública que limitam a liberdade contratual é proteger a parte mais fraca. Afinal, na lição do pensador francês do século XIX Henri Dominique Lacordaire, “entre o forte e o fraco (…), a Liberdade oprime, e o Direito liberta”[3].

Carlos E. Elias de Oliveira é Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro, Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civi, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012), Advogado, ex-membro da Advocacia-Geral da União (Advogado da União) e ex-assessor de ministro Superior Tribunal de Justiça.

Bruno Mattos e Silva é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP e Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt, Alemanha. Consultor Legislativo do Senado Federal e advogado em Brasília. Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador Federal da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Procurador chefe do INSS nos tribunais superiores e Assessor Especial do Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Professor de Direito Comercial. Autor da obra “Compra de Imóveis – Aspectos Jurídicos, Cautelas Devidas e Análise de Riscos”.


[1] Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/661995206/primeiras-linhas-sobre-a-restituicao-ao-consumidor-das-quantias-pagas-ao-incorporador-na-lei-13786-2018.
[2] Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/661995206/primeiras-linhas-sobre-a-restituicao-ao-consumidor-das-quantias-pagas-ao-incorporador-na-lei-13786-2018.
[3]Entre le fort et le faible, entre le riche et le pauvre, entre le maître et le serviteur, c’est la liberté qui opprime et la loi qui affranchit.

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