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Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM): O que Mudou em Seu Regime Jurídico Desde a Constituição de 1988 até a Lei n.13465 de 2017?

CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA

CONSTITUIÇÃO DE 1988

CUEM

LEI N. 11.481 DE 2007

LEI Nº 13.465 DE 2017

Thiago Marrara

Thiago Marrara

03/04/2019

O escopo desse artigo é verificar, exclusivamente no plano legislativo, como a concessão para moradia evoluiu desde a Constituição de 1988 até a edição da polêmica Lei nº 13.465 de 2017. Adota-se uma análise cronológica dos principais diplomas federais que cuidaram do tema. Parte-se da Constituição da República, na qual se assenta o instituto e se encontram as normas proibitivas da prescrição aquisitiva sobre bens estatais. Em seguida, resgatam-se os dispositivos regentes da concessão de uso especial no Estatuto da Cidade, o veto que os atingiu e o conteúdo da Medida Provisória subsequente. Caminha-se então para a Lei n. 11.481 de 2007, que deu novo fôlego à CUEM por alterações promovidas no Código Civil e na legislação dos bens públicos federais e dos registros públicos. Ao final, verificar-se-á o que se modificou em 2017 com a edição da Lei n. 13.465.

Primeiro de maio de 2018. Ironicamente, no período de celebração dos 70 anos de Declaração Universal de Direitos Humanos e de 30 anos da Constituição da República, berço da concessão de uso especial para fins de moradia, o edifício Wilton Paes de Almeida, localizado no largo do Paissandu em São Paulo, tomado pelo fogo, desabou em aproximadamente 90 minutos sobre os corpos, ainda vivos, de inúmeros ocupantes sem-teto.

Desenhado por Roger Zmekhol, os 24 andares do arranha-céu modernista, longe do glamour inaugural, eram a prova viva de uma triste realidade: a dificuldade de se concretizar o direito fundamental à moradia mesmo após três décadas de Constituição “cidadã” e a incapacidade, para não dizer desinteresse, do governo em utilizar os mecanismos jurídicos que o legislador lhe oferece para regularizar ocupações como as que ocorriam no bem público abandonado pela União.

A trágica e mortal ruína do Wilton Paes de Almeida retratam a falência e a incompetência da Administração Pública brasileira diante de muitos problemas sociais prementes. E a falta de soluções efetivas a eles têm ensejado clamores desesperados por uma transformação do Estado, dos modos de se fazer política e gestão pública. Porém, nesses e em tantos outros casos, a grande questão parece estar menos na estrutura de Estado e no ordenamento jurídico que o sustenta, e mais na gestão de má qualidade.

Desde algumas décadas, o fato de um bem ocupado ter natureza jurídica de bem estatal público não serve mais como argumento que justifique a inoperância estatal. Para regularizar ocupações de bens públicos, o ordenamento vigente oferece aos governantes variadas ferramentas, a exemplo da concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM). Apesar disso, em estudo elaborado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Cidadania (2016, p. 71-75), revelou-se que, de setembro de 2001 até final de dezembro de 2013, os Tribunais de Justiças julgaram somente 87 casos em que se discutiu a concessão em questão, muitos deles concentrados nas regiões sudeste (51%) e sul do país (32%).

Além dessa assimetria territorial, que espelha os discrepantes déficits de moradias por regiões, a partir da análise dos julgados, o Ministério da Justiça (2016, p. 71-75) demonstrou que: (i) a atuação do Ministério Público e da Defensoria, como órgãos de promoção de interesses coletivos e difusos e de defesa da população carente, ainda é extremamente tímida nesse campo; e (ii) o direito à concessão é negado na maioria absoluta dos casos, sobretudo com fundamento na desqualificação da posse, na oposição à posse, na discricionariedade da Administração Pública (existente em certas hipóteses de concessão), na dimensão do imóvel ocupado e na falta de prévio requerimento em processo administrativo.

Esses dados servem para demonstrar que, apesar dos dispositivos legais existentes, a ação estatal ainda é insuficiente para solucionar os problemas de ocupação de bens públicos para fins de moradia. Porém, escapa ao objetivo desse artigo buscar entender as razões para a baixa efetividade do instituto jurídico. Seu escopo é outro e consiste em verificar, exclusivamente no plano legislativo, como a concessão para moradia evoluiu desde a Constituição de 1988 até a edição da polêmica Lei n. 13.465 de 2017.

Para se atingir esse objetivo, adota-se uma análise cronológica dos principais diplomas federais que cuidaram do tema. Parte-se da Constituição da República, na qual se assenta o instituto e se encontram as normas proibitivas da prescrição aquisitiva sobre bens estatais. Em seguida, resgatam-se os dispositivos regentes da concessão de uso especial no Estatuto da Cidade, o veto que os atingiu e o conteúdo da Medida Provisória subsequente. Caminha-se então para a Lei n. 11.481 de 2007, que deu novo fôlego à CUEM por alterações promovidas no Código Civil e na legislação dos bens públicos federais e dos registros públicos. Ao final, verificar-se-á o que se modificou em 2017 com a edição da Lei n. 13.465. Com as informações e dados levantados nesse percurso, pretende-se conclusivamente responder como, no plano exclusivamente normativo, o regime jurídico da concessão evoluiu ao longo dos últimos trinta anos.

A concessão de uso especial para fins de moradia configura uma das muitas espécies de outorga de uso de bens estatais e, diferentemente de muitas, encontra expresso fundamento constitucional. Afirma-se isso, pois a construção da disciplina jurídica geral das outorgas de uso se operou menos por apoio do legislador e mais por esforço da doutrina – sobretudo pela obra de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que sistematizou em tese de referência os institutos da concessão, da permissão e da autorização de uso de bens públicos.[1] A Constituição de 1988, em verdade, não trouxe grandes contribuições para a teoria geral dos bens, senão normas esparsas, em grande parte repetidas das Constituição anteriores e que se preocupam muito mais com a divisão patrimonial pela estrutura federativa tripartite (art. 20 e 26) e com a relação dos bens com os serviços públicos e atividades econômicas a cargo dos entes estatais.

Poucos são os instrumentos de outorga de uso de bens previstos na Constituição. Um deles é exatamente a concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM). Em contraste com muitos institutos que surgiram apenas com a edição da legislação infraconstitucional e de modo esparso, a concessão em exame aparece de modo expresso no texto da Carta Maior. Para encontrá-la, é preciso examinar o art. 183.

Em seu caput, o dispositivo assim prescreve: “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-se para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural” (g.n.). Em nenhum momento, fala-se no texto de concessão de uso ou de propriedade estatal, mas sim de usucapião como forma de aquisição de domínio. Em outras palavras: o caput trata apenas da usucapião especial para fins de moradia.

Contudo, foi no § 1º do art. 183 da redação originária da Constituição que a concessão[2] ganhou respaldo – muitos antes, aliás, de a Emenda Constitucional n. 26/2000 inserir o direito fundamental à moradia no rol de direitos sociais do art. 6º.[3] O referido parágrafo dispõe que “o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher…” (g.n.)

Observe-se bem: o caput tratou apenas do domínio, fazendo referência à usucapião. Porém, o parágrafo ampliou a proteção dos moradores ocupantes ao prever tanto a aquisição de domínio do bem quanto a concessão de uso!

Resta saber a razão para que o art. 183, § 1º tenha se referido adicionalmente à concessão de uso. Não bastaria a menção à aquisição de domínio pela usucapião especial já prevista no caput? A resposta a essa dúvida se encontra no próprio artigo 183, cujo § 3º prescreve que: “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Esse dispositivo cria uma vedação constitucional à prescrição aquisitiva de imóveis públicos urbanos. Em paralelo – e até de modo curioso –, o art. 191, parágrafo único previu texto em tudo idêntico, mas desejando se referir, por obvio, aos imóveis públicos rurais. Juntos, o art. 183, § 3º e o art. 191, parágrafo único, transformaram a imprescritibilidade em uma característica geral dos imóveis públicos.

Como sustentado por Marrara e Ferraz (2014, p. 169), esse mandamento constitucional, aplicável aos bens rurais e urbanos do Estado, deve ser lido sob duas advertências. A primeira é a de que ele diz respeito somente aos imóveis. Exatamente por isso, o legislador necessitou estender a regra da imprescritibilidade a todos os bens públicos, incluindo os móveis. Isso se nota no art. 102 do Código Civil, de acordo com o qual: “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. Enquanto a Constituição restringe a imprescritibilidade aos imóveis, o Código estende a todos os bens, móveis, semoventes ou imóveis, afetados ou não afetados.

A segunda advertência diz respeito à abrangência patrimonial da norma. Tanto a Constituição, quanto o Código Civil falam de bens “públicos”, ou seja, apenas de uma parcela de um conjunto muito maior: os bens estatais. Entendidos como bens pertencentes a pessoas jurídicas de direito público interno (art. 98 do Código Civil), os bens públicos são automaticamente imprescritíveis, pois se pressupõe sua imprescindibilidade à continuidade de serviços essenciais à coletividade e ao exercício de direitos fundamentais, como a locomoção e a manifestação. No entanto, os bens estatais privados, ou seja, os bens das pessoas jurídicas estatais de direito privado (como sociedades de economia mista, empresas controladas, empresas públicas, associações estatais e fundações privadas), não se confundem com bens públicos e não gozam de imprescritibilidade, salvo nas excepcionalíssimas situações em que desempenharem o papel de “bens públicos de fato”, de parcela do “domínio público impróprio”.[4]

O conhecimento mínimo dessas normas básicas e classificações gerais do direito administrativo dos bens é condição para que se entenda, como dito, a previsão constitucional da concessão de uso para fins de moradia no art. 183, § 1º. Como os imóveis públicos são imprescritíveis por norma constitucional (não se sujeitando a usucapião), a única medida que permite compatibilizar a permanência dos moradores com o domínio público do bem é a outorga de uso. E mais: para que se dê um mínimo de previsibilidade aos ocupantes, não seria adequado o emprego de outorgas precárias como a autorização ou a permissão de uso, daí porque o legislador bem apontou a figura da concessão de uso.

De todo modo, como adverte Di Pietro (2014, p. 204), é evidente que o tratamento da concessão está mal colocado na Constituição. Afinal, o § 1º do art. 183 deveria se vincular ao conteúdo do caput, que cuida de usucapião como instituto exclusivo de aquisição de bens privados por decurso do tempo. Mais correto teria sido explicitar, em artigo próprio, a norma da imprescritibilidade dos bens estatais públicos, seguindo-se a norma que garante a concessão de uso especial para viabilizar o direito à moradia por sua relação com a dignidade humana.

Apesar da falha de legística, o fundamento constitucional explícito da CUEM é inegável e dele se originou o dever de o Congresso Nacional expedir diretrizes sobre o tema. Reitere-se a expressão “diretrizes”, aqui tomada como sinônimo de normas gerais de direito urbanístico. A CUEM é mecanismo de gestão patrimonial vinculado a políticas de desenvolvimento urbano. Por sua ligação com a “gestão patrimonial”, ele se insere no âmbito de autonomia administrativa dos três níveis políticos da federação (art. 1º e 18 da Constituição), que tem competência para detalhar sua aplicação. Já por sua relação com o desenvolvimento urbano, ele está enquadrado na competência legislativa concorrente do art. 24, inciso I, combinada com o art. 182, caput da Constituição.

Do cruzamento desses mandamentos competenciais resulta que o Congresso não deve fazer mais que expedir normas gerais, básicas, que estruturem o instituto em todo o território nacional, sem impedir que Estados e Municípios possam exercer sua competência suplementar nesse campo. Em outras palavras: os entes subnacionais podem cuidar da matéria em legislação própria, de modo a detalhar o regime jurídico da concessão de uso especial, contanto que respeitem as disposições gerais. Nesse sentido, os poderes legislativos estaduais e locais podem expedir normas, por exemplo, sobre: 1) procedimentos administrativos para a outorga da concessão de uso sobre seus respectivos imóveis urbanos; 2) a definição de imóveis de interesse ambiental, destinados a infraestruturas ou envolvidos em outras situações que gerem ao Poder Público a faculdade de assegurar o direito à moradia em outra localidade e 3) a escolha de imóveis públicos alternativos para casos em que a concessão sobre o imóvel ocupada for facultativa ou vedada nos termos da MP n. 2.220.

Resta verificar se o Poder Legislativo realmente se manteve fiel aos limites legislativos estabelecidos pela Constituição e manteve esses espaços competenciais aos outros entes federativos.

Valendo-se de sua competência legislativa concorrente em matéria urbanística, o Congresso inseriu no Estatuto da Cidade um bloco de dispositivos para reger a CUEM. Em sua redação originária submetida à sanção do Presidente da República, os art. 15 a 20 do Estatuto visavam concretizar o texto constitucional ao prever a concessão de uso especial sobre imóveis públicos para fins de moradia na modalidade individual e, como novidade, na modalidade coletiva, exclusiva para população de baixa renda. Tais dispositivos pretendiam garantir a concessão aos possuidores de áreas ou edificações urbanas situadas em imóvel público exclusivamente urbano nos seguintes termos:

Seção VI

Da concessão de uso especial para fins de moradia

Art. 15. Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados situada em imóvel público, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação à referida área ou edificação, desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural.

§1º A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez.

§3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

Art. 16. Nas áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados situadas em imóvel público, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam concessionários de outro imóvel urbano ou rural.

Parágrafo único. Aplicam-se no caso de que trata o caput, no que couber, as disposições dos §§ 1o a 5o do art. 10 desta Lei.

Art. 17. No caso de ocupação em área de risco, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 15 e 16 desta Lei em outro local.

Art. 18. O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial.

§1º Em caso de ação judicial, a concessão de uso especial para fins de moradia será declarada pelo juiz, mediante sentença.

§2º O título conferido por via administrativa ou a sentença judicial servirão para efeito de registro no cartório de registro de imóveis.

§3º Aplicam-se à concessão de uso especial para fins de moradia, no que couber, as disposições estabelecidas nos arts. 11, 12 e 13 desta Lei.

Art. 19. O direito à concessão de uso especial para fins de moradia é transferível por ato inter vivos ou causa mortis.

Art. 20. O direito à concessão de uso especial para fins de moradia extingue-se, retornando o imóvel ao domínio público, no caso de: I – o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou sua família; II – os concessionários remembrarem seus imóveis.

Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada no cartório de registro de imóveis, por meio de declaração consubstanciada do Poder Público concedente.”

Em simples resumo, os referidos dispositivos previam: (i) a concessão de uso especial gratuita individual, independentemente de baixa renda do possuidor (art. 15); (ii) a concessão de uso especial gratuita coletiva para população de baixa renda (art. 16); (iii) o direito à modificação da área de concessão, caso a área ocupada estivesse sujeita a risco de desastre (art. 17); (iv) a possibilidade de outorga da concessão pela via administrativa ou judicial (art. 18);

(v) o direito de transferência do uso do concessionário a outrem por ato inter vivos ou causa mortis (art. 19); e (vi) as hipóteses de extinção da concessão (art. 20).

O Presidente da República, porém, vetou todos os artigos mencionados. Nos seis curtos parágrafos em que se apresentam à sociedade as razões do veto, reconheceu a importância da concessão para propiciar segurança da posse como um fundamento do direito à moradia, sobretudo em benefício de moradores de favelas e de loteamentos irregulares. No entanto, considerou haver muitas incorreções na redação das normas constantes do projeto aprovado pelo Congresso Nacional.

Entre outros aspectos, as normas contrariariam o princípio do interesse público por “não ressalvarem do direito à concessão de uso especial os imóveis públicos afetados ao uso comum do povo, como praças e ruas, assim como áreas urbanas de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental ou destinadas a obras públicas”. Os dispositivos tampouco estabeleciam “uma data-limite para a aquisição do direito à concessão de uso especial, o que torna[va] permanente um instrumento só justificável pela necessidade imperiosa de solucionar o imenso passivo de ocupações irregulares gerado em décadas de urbanização desordenada”. Diante desses e doutros argumentos, o veto foi dito inevitável, mas o Executivo federal se comprometeu a encaminhar “sem demora ao Congresso Nacional um texto normativo que preench[esse] essa lacuna, buscando sanar as imprecisões apontadas”.

A promessa se cumpriu – ao menos em parte! Em 04 de setembro de 2001, ainda no ano em que se editara o Estatuto da Cidade, a Presidência da República aprovou a Medida Provisória n. 2.220. Nela, introduziu a concessão de uso especial de imóvel público situada em área urbana para fins de moradia em nove artigos que permaneceram intactos até a edição da MP n. 759 de 2016, convertida então na Lei n. 13.465, de 2017.

Nos termos da MP, a CUEM, como instrumento de outorga de uso privativo de imóvel público urbano a particulares, ingressa num regime especial e que se caracteriza, entre outras coisas, pela gratuidade, pela reduzida discricionariedade do Poder Público, na qualidade de outorgante, pela perpetuidade e pela contratação direta.

Esse regime especial fica evidente quando se recorda que as concessões de uso privativo empregadas no direito público costumam ser onerosas, ou seja, o concessionário paga um valor pelo uso privativo do bem público calculado, por exemplo, com base no seu potencial de exploração, em seu tamanho, localização e na duração do contrato, vedando-se concessões sem termo final. Além disso, a concessão de uso tradicional configura um contrato, cuja celebração depende da iniciativa do ente público proprietário e do usuário. Sem essa conjunção de vontades, não há concessão. Cabe ao Estado, como proprietário, decidir se celebrar ou não o contrato, por quanto tempo e por qual valor. E sempre que desejar conceder um bem, deverá a princípio realizar um procedimento licitatório para garantir igual possibilidade de competição aos interessados no seu uso privativo.

Basta comparar essas características com o regime da CUEM delineado pela MP n. 2.220 para se perceber a razão de seu regime especial. A concessão de uso para fins de moradia é especial por sua gratuidade (ou vedação de cobrança pelo uso), perpetuidade (não havendo possibilidade de se estipular termo final), vinculação (já a legislação confere um direito ao ocupante), unilateralidade (pois, em geral, não haverá contrato) e contratação direta, sem licitação.

Ponto polêmico do regime especial da CUEM é certamente o da sua natureza jurídica. Boa parte da doutrina viu na concessão um ato administrativo vinculado, e não um contrato administrativo como tradicionalmente se pratica. Para Carvalho Filho (2013, p. 484), o fundamento para se entender a CUEM como ato administrativo vinculado é simples: “não há ensejo para que se configure formação contratual de vontades…”. A defender o mesmo posicionamento, Di Pietro (2014, p. 211) argumenta que o caráter vinculado fica evidente no item 37 do art. 167, I da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), incluído pelo art. 15 da MP n. 2.220. Nesse item, refere-se a lei a “termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia”. O “termo” seria a evidência maior de que o legislador não desejou criar um contrato, com obrigações recíprocas, mas sim um ato unilateral, com obrigações apenas para o concessionário.

Apesar de reconhecer a natureza de ato administrativo, a doutrina é crítica em relação à competência do Congresso para vincular os Estados e Municípios à sua celebração. Nesse sentido, Di Pietro (2014, p. 205-206) reconhece que a União tem a competência geral, mas, em primeiro lugar, recorda que o Município tem competências próprias como a de promover, no que couber o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (inciso VIII). Em segundo lugar, a MP envolve bens públicos, tema para o qual cada ente tem competência própria. Em terceiro, a União deveria somente estipular normas gerais, não lhe cabendo, pois, “impor aos Estados e Municípios a outorga de título de concessão de uso”. Em quarto, nota que “a aplicação da medida é praticamente impossível sem a destinação de recursos públicos a essa finalidade”.

Para se compreender melhor essas implicações da CUEM, é preciso expor com mais detalhes seu regime jurídico. Nos termos da MP n. 2.220, para que surja o direito subjetivo dos possuidores do imóvel público à concessão, inúmeros requisitos legais de natureza temporal, subjetiva, material e formal necessitam ser observados:

Os requisitos temporais são de duas ordens. De um lado, há que se comprovar a posse por um período mínimo de cinco anos. Para tanto, não vale a posse interrompida, embora se permita a sucessão na posse pelo herdeiro legítimo que já residia no imóvel por ocasião da abertura da sucessão. De outro lado, é necessário que o prazo quinquenal tenha se exaurido até uma data limite – que, na redação revogada da MP, recaia no dia 30 de junho de 2011. Em outras palavras, o prazo não configura um limite para o início da posse, mas sim para a configuração de seu período quinquenal. Com a Lei n. 13.465, esse prazo foi bastante estendido, como se demonstrará. Apesar disso, continua a dúvida se cabe ou não ao Congresso estipular um prazo de uso de um mecanismo de política urbanística. A meu ver, a norma geral se restringe indevidamente o instituto ao prever qualquer limite temporal e, por invadir a competência de gestão patrimonial dos entes federativos, é claramente inconstitucional.

O requisito subjetivo é relativamente simples. O possuidor não poderá ser proprietário, nem concessionário de qualquer outro imóvel rural ou urbano. Essa norma encontra suas bases na própria Constituição (art. 183, caput, parte final) e se aplica igualmente às transferências de concessão por ato inter vivos ou causa mortis. Na concessão coletiva, um requisito subjetivo se impõe adicionalmente: o da comprovação da baixa renda dos ocupantes, que dependerá da definição, pelos entes federativos, de parâmetros específicos criados a partir de sua realidade socioeconômica.[5]

Os requisitos materiais consistem: (i) na utilização do imóvel público para moradia própria ou da família – segundo Carvalho Filho (2013 p. 482), o legislador teria exigido a presença do elemento subjetivo, a convicção do possuidor de que seria ele o dominus (animus possedendi); (ii) no limite de tamanho máximo para a concessão individual e mínimo e máximo, para a coletiva; (iii) na ausência de oposição à posse pelo Poder Público e (iv) na indivisibilidade do imóvel, apenas para a modalidade de concessão coletiva.

Os requisitos formais abrangem: (i) a solicitação escrita, pelo possuidor, da concessão de uso especial na via administrativa e, apenas subsidiariamente, perante o Judiciário; (ii) a comprovação dos requisitos anteriores e (iii) se o imóvel for de propriedade da União ou de Estado da federação, a demonstração, “por certidão”, de que o Município atesta sua natureza urbana e sua destinação para moradia pelo ocupante ou sua família. A certidão, mencionada pela MP, necessita ser compreendida de modo relativo, sem prejuízo ao uso de outros meios equivalentes de prova (nesse sentido, também CARVALHO FILHO, 2013, p. 498).

Em linha com o que previam as normas vetadas do Estatuto da Cidade, fica evidente que a MP n. 2.220 diferencia duas modalidades de concessão de uso especial de acordo com um critério de número de possuidores e de tamanho do terreno. Na CUEM individual, o direito atinge imóveis públicos de até 250 metros quadrados e não se exige que o possuidor comprove pertencer à população de baixa renda. Já a CUEM coletiva abarca imóveis superiores a 250 metros, sem limitação de tamanho, mas requer a comprovação de impossibilidade de definição da área ocupada por cada possuidor e de condição de baixa renda dos potenciais beneficiários – que, como dito, dependerá dos parâmetros federais, estaduais e municipais para sua compreensão. Na coletiva, por consequência, aparecem os requisitos da indivisibilidade da posse e da vulnerabilidade do possuidor.

Nas duas modalidades, uma vez cumpridos os requisitos, surge o direito subjetivo à concessão. No entanto, o art. 5º da MP relativizou a vinculação do Poder Público à concessão da área ocupada em certas situações especiais para viabilizar a tutela de interesses públicos primários, do princípio da continuidade de serviços públicos e de direitos fundamentais (como o de locomoção, de manifestação, da própria moradia e ao ambiente equilibrado). O legislador dispensou o Estado do dever de conceder o uso do imóvel público ocupado, abrindo-lhe a faculdade de substitui-lo por outro bem, sempre que a ocupação atingir imóvel estatal: a) de uso comum do povo; b) destinado a projeto de urbanização; c) de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais; d) reservado à construção de represas e obras congêneres ou e) situado em vias de comunicação.

Conquanto elas não afastem o direito subjetivo à concessão de uso para moradia, as cinco hipóteses conferem discricionariedade de conteúdo para o proprietário estatal do imóvel ocupado, permitindo-lhe conceder bem distinto. Diga-se bem: o art. 5º não afeta o direito subjetivo à concessão. Ele apenas quebra a vinculação da concessão ao bem ocupado. Diferentemente, a situação excepcional tratada pelo art. 4º gera efeito mais intensivo. Nele se determina que o Estado tem o dever de conceder outro imóvel no caso de a ocupação acarretar risco à vida e à saúde dos ocupantes. A existência de risco comprovado na área gera, assim, duas consequências: (i) a vedação de concessão de uso do imóvel ocupado e (ii) o dever de concessão de uso de outro imóvel que não esteja na situação do art. 4º e, preferencialmente, não se enquadre nas hipóteses do art. 5º.

Sob a perspectiva processual, a MP esclareceu que o título de concessão deve ser obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública (de acordo com a titularidade do bem urbano) ou, em caso de recusa ou omissão estatal no prazo de 12 meses, pela via judicial. Em parte, a norma diz o óbvio. Afinal, as outorgas de uso de bens públicos sempre ocorrem pelos procedimentos administrativos internos e, quando a

Administração Pública viola algum direito subjetivo, jamais se poderá afastar seu controle pelo Judiciário.

Por ser tão obvio o mandamento da MP, parte da doutrina buscou encontrar nele outro sentido que justificasse sua existência. Di Pietro (2002, p. 168), por exemplo, sustenta que se desejou criar a obrigatoriedade de tramitação prévia do pedido na esfera administrativa, restando o caminho judicial como subsidiário. Essa interpretação se mostra bastante razoável, quer porque o legislador explicitamente registrou que o Judiciário será acionado unicamente diante da recusa ou da omissão do proprietário estatal em conceder o bem ocupado ou outro em seu lugar (art. 6º, caput), quer porque, em situações especiais, a concessão não poderá ocorrer sobre o bem ocupado, exigindo que o Poder Público busque alternativas para viabilizá- la.

Se a solicitação administrativa formulada pelos ocupantes interessados ou quem lhes substitua deixar de ser respondida em 12 meses pela Administração Pública (omissão) ou for recusada apesar do cumprimento de todos os requisitos, os possuidores deverão requerer ao juiz que declare a concessão de uso especial mediante sentença (art. 6º, § 3º). O verbo “declarar”, nesse dispositivo, merece crítica. Ainda que se preveja um direito subjetivo à concessão, a declaração do juiz não terá efeito prático, quando se vedar a concessão na área em razão de riscos aos ocupantes (art. 4º da MP) ou se facultar ao poder público escolher outra área em hipóteses excepcionais, como a de ocupação de bens de uso comum do povo (art. 5º da MP). Nem sempre bastará, portanto, declarar o direito subjetivo à concessão de uso. Em alguns casos, será imprescindível que a sentença condene o proprietário estatal a agir.

Obtida a concessão, na via administrativa ou judicial, caberá então ao ente público proprietário realizar os procedimentos de registro. No caso da CUEM individual, o limite espacial será, de 250 metros quadrados por ocupante, como deixa explícito o art. 1º da MP. Na coletiva, porém, a situação é um pouco distinta. Como a área deve ser indivisível, cada um receberá uma fração ideal idêntica, a despeito da dimensão do terreno que ocupe. E somente por acordo escrito entre os ocupantes é que se aceitarão frações diferenciadas (art. 2º, § 2º da MP).

Para além desses aspectos, a MP trata da transferência (art. 7º) e da extinção da concessão (art. 8º). Uma vez obtido, o direito de concessão será transferível por ato inter vivos ou causa mortis. Note-se, porém, que é vedado a qualquer indivíduo adquirir o direito de uso concedido a outrem caso já tenha se beneficiado de uma concessão ou tenha imóvel em sua propriedade. Deflagram essa vedação a ocupação ou propriedade tanto de imóvel urbano, quanto rural. A MP não cuida, porém, de preços, permitindo-se concluir que a transferência poderá ser gratuita ou onerosa.

O tratamento que a MP conferiu ao tema da extinção também se mostra bastante sucinto. Menciona-se somente a extinção da CUEM caso se comprove que o beneficiado tenha gerido o imóvel com destinação diversa da moradia para si ou para sua família ou que tenha adquirido propriedade ou concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural. Trata-se da conhecida figura da cassação, isto é, de um ato administrativo unilateral e punitivo que redunda na extinção da concessão. Além dela, é de se cogitar da anulação da CUEM caso se comprove ilegalidade danosa e insanável no seu conteúdo ou na sua formação. Porém, a revogação como modo de extinção é incabível, pois não se compatibiliza com atos administrativos vinculados como a CUEM.

Em 2007, o Congresso Nacional editou a Lei n. 11.481, que ocasionou inúmeras modificações no regime da CUEM. No entanto, essa lei não alterou qualquer dispositivo da MP 2.220/2001. Ela modificou inúmeros outros diplomas e trouxe disposições próprias que, apesar de externas ao corpo da MP, valorizaram a concessão para moradia de modo indiscutível. Em rápida síntese, a Lei: (i) ampliou a CUEM para imóvel público remanescente de desapropriação, cuja propriedade tenha sido transferida a empresa pública ou sociedade de economia mista (art. 25), para áreas de propriedade da União, inclusive aos terrenos de marinha e acrescidos (art. 22-A, acrescentado à Lei n. 9.636/1998); (ii) criou um regime de concessão próprio para os imóveis federais, inclusive com a definição do que se entende por população de baixa renda; (iii) promoveu inúmeras alterações em matéria de direitos reais. Vejamos como isso ocorreu.

No Código Civil, o art. 10 da Lei n. 11.481 modificou a redação do art. 1.225 e do art. 1.473. O primeiro passou a incluir no rol de direitos reais a concessão de uso para fins de moradia (inciso XI) e o segundo a incluiu na lista de bens que se sujeitam à hipoteca como modalidade de garantia real (inciso VIII). Em harmonia com essas novas disposições do Código, o próprio art. 3º da Lei n. 11.481 passou a prever que a CUEM poderá ser objeto de garantia real, assegurada sua aceitação pelos agentes financeiros do Sistema Financeiro de Habitação. Já o art. 11 da referida lei, permitiu a alienação fiduciária do direito de uso.

Referidas modificações no Código Civil foram fundamentais por dois motivos. Elas garantem mais estabilidade à situação dos moradores concessionários e permite que eles obtenham recursos no intuito de melhorar suas condições de habitação. Como uma espécie de direito real, o uso obtido via concessão torna-se oponível contra todos (erga omnes), inclusive ao ente público concedente do imóvel urbano. A partir de então, não há dúvidas de que o concessionário está autorizado a empregar todos os instrumentos de tutela possessória, inclusive no âmbito do judiciário.

De outra parte, a Lei n. 11.481 alterou significativamente a Lei federal n. 9.636 de 1998 e nela incluiu a concessão de uso especial para fins de moradia como mais um dos instrumentos de gestão de imóveis públicos da União (art. 22-A). Conforme as normas contidas nesse diploma de aplicabilidade exclusivamente federal, a concessão de uso pode abranger terrenos de marinha e acrescidos.[6] Tradicionalmente, nesses terrenos se empregava a enfiteuse. Embora essa figura ainda continue excepcionalmente aceitável por força do art. 49, § 3º da ADCT[7] e pelo art. 2.038, § 2º do Código Civil,[8] a CUEM em terrenos de marinha e acrescidos poderá substituí-la quando cumpridos os requisitos legais.[9]

A esse despeito, o art. 22-A reduz a amplitude da CUEM quando exclui imóveis funcionais de seu âmbito. A norma é oportuna e compreensível, pois se destina a evitar que servidores públicos que recebam tais imóveis para uso – geralmente os de mais alto escalão – valham-se da concessão, distorcendo seu escopo social. Explica Carvalho Filho (2013, p. 480) que os funcionais “não se prestam à moradia permanente dos servidores, mas apenas à residência temporária, enquanto estão no desempenho de suas funções em determinado local”, daí porque são chamados assim. Assim, entende-se que andou bem o legislador ao prever a exclusão no âmbito federal. Igual medida deve ser tomada por Estados e Municípios em situações semelhantes.

Outra inovação importante que ocorreu com a modificação da Lei n. 9.636 em 2007 foi a definição dos bens de interesse nacional como os imóveis sob administração do Ministério da defesa ou dos Comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Essa definição, antes inexistentes na lei, é essencial. Afinal, de acordo com o art. 5º, III da MP n. 2.220/2001, qualquer ocupação desse tipo de imóvel gerará para a Administração Pública federal a faculdade de assegurar a concessão de uso em outro local – desde que os outros requisitos da MP tiverem sido cumpridos.

Enfim, destaque o papel da legislação de 2007 para a efetividade da CUEM na sua modalidade coletiva. Por força dos mandamentos da MP n. 2.220, essa concessão depende da comprovação não apenas da indivisibilidade da área ocupada, como também da vulnerabilidade da população moradora. No entanto, a MP jamais definiu o conceito de população de baixa renda.

Após as alterações promovidas pela Lei n. 11.481, a lei dos bens públicos federais passou a tratar o tema de modo mais claro. De acordo com o art. 6-A, “No caso de cadastramento de ocupações para fins de moradia cujo ocupante seja considerado carente ou de baixa renda, na forma do § 2o do art. 1o do Decreto-Lei no 1.876, de 15 de julho de 1981, a União poderá proceder à regularização fundiária da área, utilizando, entre outros, os instrumentos previstos no art. 18, no inciso VI do art. 19 e nos arts. 22-A e 31 desta Lei” (g.n.).

A definição válida, portanto, é a do referido Decreto-Lei, cujo art. 1º, § 2º define como de baixa renda: (i) o indivíduo devidamente registrado no Cadastro único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) ou (ii) aquele que, cumulativamente, tenha renda familiar mensal igual ou inferior ao valor correspondente a cinco salários mínimos e que não detenha posse ou propriedade de bens ou direitos em montante superior ao limite estabelecido pela Receita Federal para obrigatoriedade da declaração de imposto de renda.

A polêmica Lei n. 13.465, resultante da conversão da Medida Provisória n. 759/2016, surgiu com o objetivo de rever a política de regularização fundiária rural e urbana no Brasil. Sob esse escopo, além de alterar boa parte da legislação urbanística, ela sistematizou os institutos jurídicos empregados para fins de reurbanização, tornando mais claras as soluções para os problemas constantes de ocupação para fins de moradia.

Em consonância com o art. 15 da Lei n. 13.465, os institutos de reurbanização abrangem: I – a legitimação fundiária e a legitimação de posse; II – a usucapião; III – a desapropriação em favor dos possuidores; IV – a arrecadação de bem vago; V – o consórcio imobiliário; VI – a desapropriação por interesse social; VII – o direito de preempção; VIII – a transferência do direito de construir; IX – a requisição, em caso de perigo público iminente; X – a intervenção do poder público em parcelamento clandestino ou irregular; XI – a alienação de imóvel pela administração pública diretamente para seu detentor; XII – a concessão de uso especial para fins de moradia; XIII – a concessão de direito real de uso; XIV – a doação; e XV – a compra e venda (g.n.).

Mas o que afinal mudou? De que modo o regime da CUEM foi atingido? Quais foram os dispositivos da MP n. 2.220 afetados? Em que medida essas modificações restringem ou ampliam o emprego da concessão? De pronto, é possível afirmar que muito pouco aconteceu. A lei de 2017 ficou bem atrás da Lei n. 11.481/2007 em termos de avanços.

Na verdade, em 2017, o legislador acabou por alterar somente três artigos da Medida Provisória n. 2.220: o art. 1º, caput, que trata do direito individual à concessão de uso especial para fins de moradia; o art. 2º, caput, referente à concessão na modalidade coletiva e o art. 9º, que, porém, não se refere à concessão para fins de moradia, senão à autorização de uso de bem público para fins comerciais.

O art. 1º da MP n. 2.220 foi alterado basicamente em dois aspectos, a saber:

Prazo de aquisição do direito – antes de 2017, a CUEM havia ficado restrita aos ocupantes que tivessem comprovado a posse quinquenal sobre o imóvel público urbano até 30 de junho de 2001. Agora, o prazo foi bastante alargado e passou para dia 22 de dezembro de 2016. Com isso, foram beneficiados ocupantes que não tinham logrado atingir os cinco anos de posse até 2001, bem como aqueles que iniciaram as ocupações após a MP n. 2.220 e conseguiram os requisitos até o final de 2016. Note-se, porém, que o legislador insiste em fixar uma data aparentemente nacional e que, a meu ver, é completamente inconstitucional diante da competência do Congresso para apenas prever normas gerais de direito urbanístico, não para decidir como os Estados e Municípios farão sua gestão patrimonial.

Característica do imóvel: antes de 2017, a legislação se referia à ocupação de imóvel público situado em área urbana. A partir de então, fala-se da ocupação para moradia de área com características e finalidade urbanas. Com isso, o legislador aparentemente buscou deixar de lado a questão mais rígida do perímetro urbano, de modo a permitir a CUEM em áreas que não estejam dentro dele, mas demonstram características urbanas, sobretudo em termos de serviços e de infraestruturas. Para se chegar à conclusão se há ou não característica e finalidade urbana, podem ser empregados, por exemplo, os critérios do art. 32, § 1º e 2º[10] do Código Tributário Nacional.[11]

Já o artigo 2º da MP n. 2.220/2001, que cuida da CUEM coletiva, sofreu três mudanças: as duas já apontadas em relação ao art. 1º (prazo limite até 22 de dezembro de 2016 e imóvel ocupado com características e finalidade urbanas), e outra referente às características da ocupação. Como se observou anteriormente, na redação originária da MP, a concessão na modalidade coletiva dependia da comprovação de requisitos adicionais não previstos para a concessão individual, a saber: a indivisibilidade da posse, bem como a vulnerabilidade dos possuidores. A indivisibilidade, na redação originária do art. 2º, caput, constava da seguinte oração: “onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor”.

Na nova redação do art. 2º, o requisito da vulnerabilidade dos ocupantes foi mantido. Todavia, a oração transcrita a respeito da indivisibilidade foi suprimida e substituída pela seguinte: “cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor”. Dessa modificação ao menos duas conclusões podem ser extraídas.

Em primeiro lugar, o legislador parece ter desejado mitigar a importância da indivisibilidade, já que não mais fala da impossibilidade de identificação dos terrenos ocupados por possuidor. Assim, esse requisito não se mostra mais essencial para a concessão na modalidade coletiva. Ainda que a área seja divisível e as ocupações por família ou indivíduo estejam bem separadas e identificadas, poderá ser empregada a concessão coletiva, além da individual. A opção coletiva, apesar da eventual divisibilidade da área ocupada pelo grupo de baixa renda, pode ser recomendável, por exemplo, para garantir a gestão do espaço urbano nas mãos de um ente representativo do grupo, tornando mais forte os interesses coletivos que os individuais no processo de reurbanização. Se houver divisibilidade, portanto, tanto a modalidade coletiva quanto a individual poderão ser utilizadas pelo proprietário concedente.

De outro lado, porém, o novo texto aparentemente criou um requisito não previsto na redação de 2001: a necessidade de que a porção, divisível ou não, de cada ocupante não supere 250 metros quadrados. Essa regra serve para igualar o direito de concessão dos ocupantes coletivos com o direito do ocupante na concessão individual. Trata-se de uma padronização das modalidades que objetiva evitar tratamento discriminatório. No entanto, a regra pode causar inúmeros inconvenientes práticos, seja por inviabilizar a regularização de inúmeras áreas por pequenas superações da metragem per capita, seja por problemas no cálculo.

Apesar para ilustrar: a área total do imóvel dividida pelo número de possuidores incluirá estritamente a área ocupada ou a área do imóvel como um todo? Tome-se o exemplo de um edifício de 10 andares com 200 m2 cada, mas em que os dois primeiros andares sofram a ocupação por quatro pessoas e todos os outros andarem permaneçam desocupados. Caso se considere para o cálculo a área dos andares efetivamente ocupados (400 m2), haverá direito subjetivo à concessão coletiva. Caso se utilize a área total do imóvel (2000 m2) – interpretação que se afigura, a meu ver, incorreta –, não surgirá o direito. Esse simples problema ilustra, portanto, que o legislador, de uma parte, buscou ampliar a possibilidade de aquisição do direito à concessão de uso especial, mas, de outro, criou algumas dificuldades adicionais para seu emprego na prática. Ainda que a limitação a 250 metros quadrados se imponha pela regra da isonomia, ela não deve ser empregada para burocratizar e inviabilizar a regularização pela via da CUEM.

Sob a motivação de incontáveis notícias e tragédias envolvendo a ocupação de imóveis públicos urbanos, buscou-se apresentar, nesse artigo, a evolução normativa da CUEM como ato administrativo unilateral, vinculado, gratuito, perpétuo e independente de licitação, praticado por pessoas jurídicas de direito público interno para conferir direito real de uso resolúvel a ocupantes individuais ou coletivos de imóveis públicos urbanos. Embora, como se tenha demonstrado de início, a efetividade desse relevante instrumento da política de regularização fundiária ainda se mostre tímida, no plano legislativo, a estruturação de seu regime jurídico tem avançado constantemente.

Nascida com a Constituição da República de 1988, a CUEM foi inicialmente detalhada nos dispositivos vetados do Estatuto da Cidade. Em seguida, ressuscitou com a edição da Medida Provisória n. 2.220/2001, mas ali foi limitada por critérios de natureza temporal em relação à posse do imóvel. Mais tarde, seu regime foi bastante reforçado com as várias modificações promovidas pela Lei n. 11.481, principalmente no Código Civil e na legislação dos bens públicos federais. Finalmente, em 2017, a Lei n. 13.465 progrediu mais alguns passos ao flexibilizar o requisito do imóvel “urbano” e também o da “indivisibilidade” da ocupação coletiva.

A despeito dos irrefragáveis avanços, inclusive em 2017, muitos aspectos ainda pedem aprimoramento e soluções legislativas futuras. Como se viabilizará, por exemplo, a substituição do imóvel ocupado em caso de vedação da concessão por risco? Quem custeará essa substituição principalmente na triste realidade municipal brasileira? A quem os ocupantes deverão recorrer em casos assim? Para além dessas indagações, é preciso conduzir alguns debates sobre a destinação do instituto e seus limites de uso na federação. Deveria ser mantida a concessão na modalidade individual para indivíduos que não se encontrem em situação de baixa renda? Não seria inconstitucional o Congresso insistir na limitação temporal da concessão, considerando-se que sua competência legislativa se restringe à edição de normas gerais de direito urbanístico? Como se vê, mesmo que se deixe de lado o exame de sua efetividade para a concretização do direito à moradia e se concentre o foco de análise ao plano das normas, de estruturação do regime jurídico, é indubitável que a história da CUEM, apesar dos inegáveis avanços, ainda tem um longo caminho a percorrer.


Referências Bibliográficas
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (org.). Estatuto da Cidade, comentários à Lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Concessão de uso especial para fins de moradia. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (org.). Estatuto da Cidade, comentários à Lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Uso privativo de bem público por particular, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
FERRAZ, Luciano; MARRARA, Thiago. Tratado de direito administrativo: direito administrativo dos bens e restrições estatais à propriedade, v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
FORTINI, Cristiana; LAFETÁ, Adriana Silveira. A concessão de uso especial para fins de moradia. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, n. 4, 2002, disponível em: http://200.198.41.151:8081/tribunal_contas/2002/04/-sumario?next=4
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA. Não tinha teto. Não tinha nada: por que os instrumentos de regularização fundiária (ainda) não efetivaram o direito à moradia no Brasil? Brasília: Ministério da Justiça, SAL, IPEA, 2016. Versão digital disponível na página eletrônica: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/07/PoD_60_Aricia_web-3.pdf
KOZICKI, Katya; BESSA, Fabiane L.B.N.; MOREIRA, Tomás A.; ALMEIDA, Gabriel G. (org.). Espaços e suas ocupações: debates sobre a moradia e a propriedade no Brasil contemporâneo. Campinas: Russel, 2010.
MARRARA, Thiago. Bens públicos, domínio urbano, infra-estruturas. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
SERRANO JÚNIOR, Odoné. O direito à moradia, escassez de recursos e controle judicial das escolhas orçamentárias. In: KOZICKI, Katya; BESSA, Fabiane L.B.N.; MOREIRA, Tomás A.; ALMEIDA, Gabriel G. (org.). Espaços e suas ocupações: debates sobre a moradia e a propriedade no Brasil contemporâneo. Campinas: Russel, 2010.

[1] A tese de doutorado, cuja primeira edição foi publicada em 1983, foi recentemente revisada e republicada. Cf. DI PIETRO, 2014, em geral.
[2] A previsão da concessão consta, portanto, da redação originária da Constituição, enquanto o direito fundamental à moradia se consagrou dez anos Apesar disso, Odoné Serrano Júnior bem explica que o direito à moradia já tinha status constitucional no Brasil em razão de sua previsão explícita em convenções internacionais (como os Pactos Internacionais de Diretos Civis e Políticos e de Direitos Sociais, Culturais e Econômicos de 1966) e por força do art. 5º, § 2º da Constituição, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Mais tarde, em 2004, a EC n. 45 incluiu o § 3º nesse artigo e, com isso, reconheceu-se que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (SERRANO JÚNIOR, 2010).
[3] Sobre os conceitos de bem público de fato e de domínio público impróprio no direito administrativo dos bens, MARRARA; FERRAZ, 2014, p. 153.
[4] Segundo Carvalho Filho (2013, 489), “a expressão população de baixa renda, no entanto, é polissêmica, porquanto estampa inegavelmente um conceito jurídico indeterminado (…). Sua aplicabilidade às situações fáticas esbarra indiscutivelmente na falta de exatidão do sentido…”. Na falta de parâmetros, o autor sugere que se considere a situação fática, de modo que a incluir no conceito as populações que vivam em “aglomerações – favelas, cortiços, comunidades – constituídas nas periferias dos centros urbanos, sem obediência aos standards exigidos pela legislação urbanística”.
[5] As definições de terrenos de marinha e seus acrescidos constam do 2º e art. 3º do Dl n. 9.790/1946. A respeito, MARRARA; FERRAZ, 2014, p. 122.
[6]Vale a transcrição: 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. (…) § 3º A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima (g.n.).
[7] 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, e leis posteriores. § 1o Nos aforamentos a que se refere este artigo é defeso: I – cobrar laudêmio ou prestação análoga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor das construções ou plantações; II – constituir subenfiteuse. § 2o A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial (g.n.).
[8]Em mais detalhes sobre o histórico da enfiteuse no direito brasileiro, DI PIETRO, 2014, p. 175-179.
[9] Vale a transcrição: 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I – meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II – abastecimento de água; III – sistema de esgotos sanitários; IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. § 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.
[10] Em detalhes sobre a configuração do urbano a partir do CTN, MARRARA, 2007, p. 162-165.

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