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A Medida Provisória n. 881/2019 (Liberdade Econômica) e as Alterações do Código Civil (Segunda Parte)

ALTERAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL

CONTRATO DE ADESÃO

DIREITO DE EMPRESA

FUNDOS DE INVESTIMENTO

III JORNADA DE DIREITO CIVIL

LIBERDADE ECONÔMICA

MEDIDA PROVISÓRIA 881/2019

MP 881/2019

TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

07/05/2019

Teoria geral dos contratos, direito de empresa e fundos de investimento

Em texto anterior, publicado neste mesmo canal, comecei a analisar a Medida Provisória n. 881, editada pelo Presidente da República no dia 30 de abril de 2019, conhecida como “MP da Liberdade Econômica”. Dei destaque para duas alterações relativas Código Civil de 2002 e que constam do seu art. 7º, quais sejam as concernentes à desconsideração da personalidade jurídica (art. 50) e à função social do contrato (art. 421).

Neste segundo texto, abordarei as outras modificações realizadas na codificação privada, no mesmo dispositivo, relativas à teoria geral dos contratos, ao Direito de Empresa e ao Direito das Coisas, a saber: a) alteração do art. 423, que trata da interpretação dos contratos de adesão; b) inserção dos arts. 480-A e 480-B, com regras relativas aos contratos empresariais; c) inclusão do § 7º no art. 980-A, a respeito da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI); d) novo parágrafo relativo ao art. 1.052, criando a sociedade limitada unipessoal e e) acréscimo dos arts. 1.368-C a 1.368-E, tratando dos fundos de investimento no livro relativo à propriedade.

Vejamos, de forma pontual e eventualmente comparada dos dispositivos legais, novamente na linha de fazer algumas sugestões de alterações no texto, para debate no Congresso Nacional.


Apesar da coincidência entre as figuras, na grande maioria dos casos práticos, o contrato de adesão não necessariamente será de consumo. Nesse sentido, o Enunciado n. 171, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, a partir de uma proposta realizada por mim. Como é notório, nos termos dos arts. 2º e 3º da Lei n. 8.078/1990, o contrato de consumo é aquele em que o fornecedor ou prestador, que desenvolve atividade de forma profissional, fornece um produto ou presta um serviço a um destinatário final, fático e econômico, desse objeto do negócio. São exemplos de contratos de adesão que não se enquadram como negócios consumeristas, como regra geral: a franquia, a locação empresarial, a locação de espaços em “shopping center“, a aquisição de imóveis por empresas para fins de investimentos, os empréstimos bancários empresariais, o seguro empresarial, o transporte de cargas para a entrega dos produtos da empresa, a representação comercial, a agência, a distribuição, entre outros contratos importantes para a realidade jurídica nacional.A norma trata dos contratos de adesão, aqueles em que o estipulante impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas opções: aceitá-lo ou não (take it or leave it). O contrato de adesão contrapõe-se aos contratos paritários ou negociados, figura no qual as cláusulas negociais são debatidas amplamente pelas partes. No primeiro caso, a liberdade contratual é mais limitada do que no segundo, o que justifica a intervenção legislativa.

O Código Civil de 2002 trouxe, como uma das suas principais inovações, a preocupação de tutela do aderente como vulnerável contratual, não importando a sua posição econômica frente ao estipulante. Além da interpretação que lhe é favorável, prevista no dispositivo em estudo, o art. 424 da codificação privada estabelece a nulidade absoluta de qualquer cláusula de renúncia prévia a direito que resulte da própria natureza do negócio jurídico celebrado.

Sobre a proposta de alteração do art. 423 do CC/2002 pela Medida Provisória n. 881/2019, é a que mais me agrada, tendo os seus elaboradores, nesse aspecto, preocupado-se com os pequenos e médios empresários, na linha do que motivou a sua elaboração. Isso, ao contrário do antes combatido art. 3º, inc. VIII, da MP, que veda a tais figuras alegar a violação a normas de ordem pública, mitigando a força obrigatória do contrato. Como destaquei no meu texto anterior, o último preceito deve ser retirado totalmente do texto quando da conversão em lei, até porque está em conflito com o que motiva a alteração que ora se estuda neste momento.

Pois bem, constata-se que, na sua redação original, a codificação privada estabelecia que, “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. O texto que consta da MP, no meu entender, amplia a interpretação mais favorável ao aderente, e contra o estipulante (interpretatio contra proferentem vel stipulatorem), ao preceituar que “quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente”. Observe-se, pelas redações transcritas mais uma vez, que a interpretação mais favorável ao aderente não se dará apenas quando houver ambiguidade, mas em qualquer situação de dúvidas, muito além de contradição entre duas previsões, por exemplo. A norma terá incidência, por exemplo, quando a interpretação ou o silêncio de uma previsão contratual possa trazer soluções diferentes para o caso concreto. Seguindo a linha adotada pela codificação privada, em prol dos princípios da eticidade e da socialidade que o inspiraram, segundo Miguel Reale, merece elogios a proposta de alteração legislativa.

Quanto ao parágrafo único do art. 423 constante do texto da MP, tenho duas sugestões de novas redações a fazer. De início, ao invés da locução “nos contratos não atingidos pelo disposto no caput”, seria interessante mencionar os contratos paritários, categoria muito bem definida pela doutrina e pela jurisprudência. Como segunda sugestão, também seria interessante, a fim de deixar claro o seu conteúdo, constar da parte final do comando que a análise da eventual imposição negocial seja cláusula a cláusula. Em suma, ficará esclarecido que, mesmo no contrato paritário, é possível a presença de cláusulas impostas, devendo essas, isoladamente, ser interpretadas de forma contrária a quem as elaborou. Em resumo, o dispositivo ficaria com a seguinte redação: “nos contratos paritários, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controversa, o que deve ser analisado cláusula a cláusula”.

No que diz respeito a tais mudanças, no dispositivo que fecha o tratamento da teoria geral dos contratos no Código Civil de 2002, deixarei de montar a tabela comparativa, pois ambos os preceitos não têm correspondentes na lei então vigente. Cumpre, contudo, destacar, em comparação, que as normas inseridas estão no capítulo que trata da extinção dos contratos, na seção relativa à resolução por onerosidade excessiva. Essa seção é composta por três dispositivos.

O primeiro deles, o artigo art. 478, trata justamente do instituto que dá nome à seção, tendo como origem a teoria da imprevisão, que remonta à antiga cláusula rebus sic stantibus. Conforme o seu teor, nos contratos de execução continuada ou diferida, aqueles com cumprimento pendente no tempo, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. A norma ainda estabelece que os efeitos da sentença de resolução retroagem à data da citação. Tem-se entendido que o dispositivo trata não só da resolução, como também da revisão dos contratos civis. Nessa linha de conclusão, o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”.

Não se olvide, como destaquei no meu texto anterior, que a resolução ou mesmo a revisão de um contrato civil dificilmente ocorre na prática, diante da rigidez dos seus requisitos, merecendo destaque o fator imprevisibilidade, ou seja, a presença de um acontecimento imprevisível e extraordinário superveniente que gere a onerosidade excessiva. Em complemento, vale lembrar que o art. 330 do CPC/2015, em seus §§ 2º e 3º, trouxe pressupostos adicionais para a revisão contratual, quais sejam: a) a verossimilhança das alegações, a ser comprovada pelo autor, geralmente por perícia contábil; b) a determinação das obrigações contratuais controversas e incontroversas; e c) o depósito referente às últimas; tudo isso sob pena de inépcia da petição inicial. Reitero que, na minha leitura, a revisão contratual de um contrato civil situa-se há tempos no campo da excepcionalidade.

Seguindo no estudo dos dispositivos da seção, o art. 479 do Código Civil traz a revisão do contrato por oferecimento do réu, dentro da ação de resolução, uma vez que essa poderá ser evitada, oferecendo ele a modificação equitativa das condições do negócio. Por fim, também tratando de revisão contratual – desde que preenchidos os requisitos anteriores –, o art. 480 estabelece que, “se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”. Tem-se interpretado majoritariamente o último comando no sentido de possibilitar a revisão de contratos unilaterais e onerosos, caso do mútuo feneratício, do empréstimo de dinheiro a juros (art. 591 do Código Civil).

Observe-se que os comandos inseridos pela Medida Provisória n. 881 não têm relação direta com o último comando. De início, pelo art. 480-A, “nas relações interempresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual”. O dispositivo traz como conteúdo o teor do Enunciado n. 23, aprovado na I Jornada de Direito Comercial, promovido pelo Conselho da Justiça Federal em março de 2013: “em contratos empresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual”.

Como primeira ressalva dogmática a respeito dessa inserção, está ela mal colocada na codificação pela MP, devendo estar no art. 478 do Código Civil. No que concerne ao seu conteúdo, apresento duas objeções. Primeiro, pretende-se com o dispositivo – e também com o outro que será analisado – criar um microssistema próprio de revisão para os contratos empresariais dentro do Código Civil, o que não me parece correto do ponto de vista metodológico. Penso que isso deve ser feito eventualmente por meio de outro caminho legislativo, que não por medida provisória, com amplo e profundo debate no Congresso Nacional. Como segunda objeção a respeito do conteúdo, entendo que pode o julgador afastar tais parâmetros objetivos para a interpretação, revisão ou até resolução do negócio, pois vejo no art. 478 e em outros comandos da codificação a natureza de norma cogente ou de ordem pública.

Exatamente na mesma linha, as lições de Anderson Schreiber, para quem “a norma, como alguns outros acréscimos promovidos pela MP, representa inovação de pouca ou nenhuma utilidade prática: os contratantes sempre puderam, no exercício de sua autonomia privada, estabelecer parâmetros objetivos (ou subjetivos) para a interpretação dos requisitos de revisão ou resolução do contrato, nas relações interempresariais ou de qualquer outra natureza. Tal faculdade, já há muito reconhecida pela doutrina, não exclui a necessidade de um juízo concreto de merecimento de tutela para determinar, em cada caso, a compatibilidade dos parâmetros contratualmente estabelecidos com a ordem jurídica brasileira, atentando especialmente para a impossibilidade de afastamento do princípio do equilíbrio contratual. A fixação convencional de parâmetros para a interpretação dos requisitos instituídos em lei não pode, a toda evidência, conduzir à supressão dos referidos requisitos”.[1] Por essas razões técnicas, penso que, no trâmite no Congresso Nacional, o texto deve ser retirado.

A mesma conclusão vale para o art. 480-B do Código Civil, segundo o qual, “nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida”. Trata-se de projeção de outros dois enunciados doutrinários. O primeiro deles foi aprovado IJornada de Direito Comercial, o de número 25: “a revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, deve-se presumir a sofisticação dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles acordada”. O outro, com redação muito próxima, da V Jornada de Direito Civil, é o de número 439: “A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, observar-se-á a sofisticação dos contratantes e a alocação de riscos por eles assumidas com o contrato”.

Essa última previsão constante da Medida Provisória, exatamente como foi proposta, não tem qualquer relação com a resolução ou revisão contratual, justamente porque parece que foi suprimida a primeira parte constante dos enunciados doutrinários. Assim, deveria estar nos dispositivos iniciais da teoria geral dos contratos, possivelmente entre os arts. 421 e 423. Todavia, novamente quanto ao conteúdo, não concordo com o seu teor, novamente porque não vejo como viável construir um microcosmo legislativo próprio para os contratos empresariais na codificação privada, não havendo qualquer urgência que justifique o tratamento por MP. Além disso, o Código Civil não adota o modelo de simetria ou assimetria econômica como critério para interpretação, mas, sim, o debate ou não das cláusulas contratuais, protegendo o aderente, como antes exposto. Por fim, destaco, mais uma vez, as lições de Anderson Schreiber, a quem me filio integralmente, pelas suas próprias razões:

“Já o art. 480-B prevê que ‘nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida’. A norma é insólita. A simetria entre os contratantes é presumida em qualquer relação contratual, e não apenas em relações interempresariais. A caracterização da vulnerabilidade de um dos contratantes é que afasta tal presunção, sempre relativa. Também a parte final do dispositivo que determina seja observada a alocação de risco estabelecida pelos contratantes parece fora de lugar: tal alocação deve ser observada em qualquer espécie de relação contratual, e não apenas nas relações interempresariais. O novo artigo 480-B é ruim, pois, se interpretado a contrario sensu, poderia levar à conclusão de que, fora das relações interempresariais, a simetria não se presume e a alocação convencional de riscos deve ser ignorada, bem ao contrário do que deveria pretender uma assim chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Merece crítica, ademais, a tentativa de estabelecer, pela introdução de normas não constantes da redação original da codificação civil, uma espécie de microssistema das relações interempresariais, incompatível com um código que, ao revés, unificou as relações civis e empresariais, contemplando expressamente o direito de empresa”.[2]

Em resumo, concluo que, na conversão da MP, os arts. 480-A e 480-B devem ser suprimidos. Reafirmo que não há qualquer necessidade de trazer regras próprias para os contratos empresariais, quando doutrina e jurisprudência já encontram certa estabilidade, na interpretação do Código Civil de 2002, no sentido de afastar a intervenção nesses negócios, especialmente se assumirem a forma paritária.

Nesse sentido, o Enunciado n. 21 da própria I Jornada de Direito Comercial, com o qual concordo, após muito refletir: “nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais”. No mesmo sentido, o Enunciado n. 29 do mesmo evento, do qual fui um dos proponentes: “aplicam-se aos negócios jurídicos entre empresários a função social do contrato e a boa-fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil), em conformidade com as especificidades dos contratos empresariais”.

Da jurisprudência superior, com mesma posição, destaca-se acórdão que debateu a validade e eficácia da cláusula de duplicação do valor do aluguel no mês de dezembro em contrato de locação de espaço em “shopping center“. Conforme o seu teor, “a discussão acerca da validade dessa cláusula centra-se na tensão entre os princípios da autonomia privada e da função social do contrato. De acordo com doutrina especializada, o princípio da autonomia privada corresponde ao poder reconhecido pela ordem jurídica aos particulares para dispor acerca dos seus interesses, notadamente os econômicos (autonomia negocial), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos efeitos. A autonomia privada, embora modernamente tenha cedido espaço para outros princípios (como a boa-fé e a função social do contrato), apresenta-se, ainda, como a pedra angular do sistema de direito privado, especialmente no plano do Direito Empresarial. O pressuposto imediato da autonomia privada é a liberdade como valor jurídico. Mediatamente, o personalismo ético aparece também como fundamento, com a concepção de que o indivíduo é o centro do ordenamento jurídico e de que sua vontade, livremente manifestada, deve ser resguardada como instrumento de realização de justiça. O princípio da autonomia privada concretiza-se, fundamentalmente, no direito contratual, por meio de uma tríplice dimensão: a liberdade contratual, a força obrigatória dos pactos e a relatividade dos contratos. A liberdade contratual representa o poder conferido às partes de escolher o negócio a ser celebrado, com quem contratar e o conteúdo das cláusulas contratuais. É a ampla faixa de autonomia conferida pelo ordenamento jurídico à manifestação de vontade dos contratantes” (STJ, REsp 1.409.849/PR, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26/04/2016, DJe 05/05/2016). Ao final, a cláusula foi considerada válida, preservando-se a autonomia privada.

Como se observa – e destaquei isso no meu último texto –, os quinze anos de teoria e prática trouxeram certa estabilidade para a teoria geral dos contratos prevista no Código Civil de 2002, aplicando-se o seu teor com menos intervenção nos contratos empresariais. As propostas constantes dos arts. 480-A e 480-B já têm o seu reconhecimento por doutrina e jurisprudência, não havendo qualquer necessidade urgente de introdução por Medida Provisória, afastando-se do que consta do art. 62 da Constituição Federal. Reforço que tal introdução somente pode trazer mais dúvidas e instabilidades no momento, sendo o caminho correto para o seu debate o trâmite regular no Congresso Nacional.

Mais uma vez não farei a análise confrontada por falta de previsão no texto original da codificação, que trata da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), incluída por força da Lei n. 12.441/2011. Na verdade, o parágrafo proposto pela MP para o art. 980-A traz como conteúdo, pelo menos em parte, o antigo § 4º, que acabou por ser vetado pela então Presidente da República. Conforme o texto da Medida Provisória, “somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude”.

As razões anteriores do veto foram motivadas pelo fato de a norma supostamente limitar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da empresa individual, até porque não havia qualquer ressalva anterior, mesmo quanto à fraude. Conforme a mensagem de veto, “não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão ‘em qualquer situação’, que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio”.

Quanto ao atual texto da MP, concordo com o seu conteúdo, com uma pequena ressalva e proposta. De fato, o patrimônio da EIRELI não se confunde com o patrimônio da única pessoa que a constitui. Todavia, a ressalva quanto à fraude deve ser ampliada, para que conste também a possibilidade de desconsideração da sua personalidade jurídica em qualquer outra hipótese prevista pela legislação. Proponho, nesse contexto, o seguinte texto para a conversão legislativa: “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, prevista neste Código Civil e na legislação específica”.

Em suma, é imperioso reconhecer a incidência da desconsideração da personalidade jurídica em qualquer hipótese prevista no art. 50 do Código Civil ou na legislação específica, caso do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Ambiental (art. 4º da Lei n. 9.605/1998). Segue-se, assim, o teor do Enunciado n. 470, aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, a saber: “O patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica”.

Como palavras finais, registro aqui a crítica feita por Mário Luiz Delgado, que novamente pode afastar a necessidade urgente de o tema ser regulado por MP: “a inclusão desse parágrafo era desnecessária, eis que o § 6º já dispõe sobre a aplicação à EIRELI das regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio”. O autor também defende a aplicação do art. 50 à EIRELI, mesmo com o texto da MP: “de qualquer forma, a absoluta separação patrimonial entre a empresa e o seu titular não afasta as hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil (ver Enunciado n. 470 da V Jornada de Direito Civil)” (DELGADO, Mario Luiz. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 668). As lições do jurista reforçam a minha proposta.

Ainda sobre o Direito de Empresa, a MP inclui uma nova modalidade de sociedade limitada, tratada pelo art. 1.052, segundo o qual nessa pessoa jurídica a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. Conforme o novo parágrafo único, que não tem correspondente no texto então em vigor, “a sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social”.

Cria-se, portanto, a sociedade limitada unipessoal, o que já era defendido por alguns juristas. Há uma crítica no sentido de que a inovação poderá esvaziar a EIRELI, então a única opção para a constituição de pessoas jurídicas formadas apenas por um sujeito. Chega-se a afirmar que o legislador criou um bis in idem societário.

Com o devido respeito a quem critica, não vejo assim. A nova modalidade de sociedade não cria qualquer problema, apenas valoriza a autonomia privada e representa mais uma saudável tentativa de redução de burocracias para a constituição de pessoas jurídicas no Brasil. Além disso, não vejo qualquer lesão à norma de ordem pública no texto proposto pela Medida Provisória. E mais, a sociedade limitada unipessoal não sofrerá restrições existentes para a EIRELI, como a exigência de capital social mínimo de 100 salários mínimos e de vedação de uma mesma pessoa intitular mais de uma pessoa jurídica dessa forma (art. 980-A, caput e § 1º, CC).

Somente proponho que a inovação seja introduzida em um parágrafo do art. 981, que trata das sociedades da seguinte forma: “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados”. Penso que esse seria o melhor enquadramento dessa nova categoria que surge.

Como última categoria a ser analisada neste artigo, a MP n. 811/2019 inclui tratamento do fundo de investimento nos novos arts. 1.368-C a 1.368-E, dentro do Livro de Direito das Coisas e do capítulo da propriedade fiduciária, in verbis:

“Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.

Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput“.

“Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único do art. 1.368-C:

I – estabelecer a limitação da responsabilidade de cada condômino ao valor de suas cotas;

II – autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade.

Art. 1.368-E. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança”.

 Sem ter correspondente no texto anterior, não vislumbro problemas a respeito do conteúdo dos comandos em si, salvo outra anotação redacional, que proponho a seguir. Todavia, alguém que seja mais especialista do que eu pode detectar e apontar eventuais problemas objetivos nos textos legais.

Entretanto, não vejo como viável juridicamente tratar do assunto dentro do Código Civil, notadamente no capítulo de Direito das Coisas. Isso porque a codificação privada está toda fundada na ideia de que “coisa” é bem corpóreo ou material, sendo os fundos de investimento formados por bens incorpóreos ou imateriais. Nesse contexto de afirmação, penso que o instituto deveria ser tratado por lei especial. No mesmo sentido, merecem destaque as palavras de Marco Aurélio Bezerra de Melo, que também contesta a necessidade de urgência para o tratamento do tema por medida provisória:

“Por fim e não menos importante é o estranhamento desta matéria tão relevante para o interesse do país ser tratada por Medida Provisória sem os requisitos constitucionais, isto é, carente da explícita relevância e urgência a que se refere o artigo 62 da Constituição Federal e encartada com a sua natureza condominial no artigo que trata da propriedade fiduciária de modo genérico.

É verdade que o instituto possui traços de negócio fiduciário (trust) e a comunhão de investidores pode formar um condomínio, mas deveria ganhar corpo normativo por meio de uma lei especial, nos mesmos moldes da bem sucedida lei do fundo de investimento imobiliário (lei 8868/93), tomando-se como base este regramento e também a citada Instrução Normativa 555/14 da Comissão de Valores Mobiliários com as correções e novas tomadas de rumo que se fizerem necessárias durante o processo legislativo que, por certo, não prescindirá da oitiva da academia e dos operadores do Direito que tenham experiência prática e afinidade doutrinária com o tema.

A ideia de tratar do fundo de investimento de um modo geral por lei federal especial e conferir maior segurança jurídica ao investidor e aos administradores e gestores pode ser promissora no sentido de incremento à economia, com a geração de bens, renda e, por conseguinte, de empregos, mas é preciso que o texto da futura lei seja o resultado de rápidas, mas atentas reflexões que, por certo, trarão luzes sobre pontos não abordados nessa tentativa tímida de regulamentação.

Enfim, muito ainda há a se discutir acerca dessa temática junto ao Congresso Nacional durante a tramitação da Medida Provisória, sendo estas apenas as nossas primeiras impressões restritas ao texto posto”.[3]

Apesar da força das palavras, faço uma sugestão no sentido de que os fundos de investimento sejam regulados como letras do art. 49 da Lei de Fundo de Capitais (Lei n. 4.728/1965). Fiz também algumas pequenas propostas de melhora dos textos, sem que isso atinja o conteúdo das disposições:

“Art. 49-A. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.

Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caputdeste artigo.”

“Art. 49-B. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único da norma anterior:

I – estabelecer a limitação da responsabilidade de cada comunheiro ao valor de suas cotas;

II – autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade.” (NR)

“Art. 49-C. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança”.

Vejamos como o Congresso Nacional analisará esse tratamento, com grande relevância para os investimentos realizados no País. Como palavras derradeiras, ressalto que essas são as minhas impressões iniciais da Medida Provisória n. 881/2019, sem prejuízo de novas reflexões que possam surgir de uma análise mais aprofundada do seu conteúdo.


[1] SCHREIBER, Anderson. Alterações da MP 881 ao Código Civil – Parte I. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/alteracoes-da-mp-881-ao-codigo-civil—parte-i/18342>. Acesso em: 3 maio 2019.
[2] SCHREIBER, Anderson. Alterações da MP 881 ao Código Civil – Parte I. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/alteracoes-da-mp-881-ao-codigo-civil—parte-i/18342>. Acesso em: 3 maio 2019.
[3] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Apreciação preliminar dos fundos de investimento na MP 881/19. Disponível em: <https://blog.grupogen.com.br/juridico/2019/05/03/apreciacao-preliminar-dos-fundos-de-investimento-na-mp-881-19/>. Acesso em: 3 maio 2019.

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