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O homicídio doloso perpetrado pelo marido, convivente, namorado e amasiado, em face da sua mulher, por motivo de ciúme, atrai, por si só, a figura do feminicídio?

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O homicídio doloso perpetrado pelo marido, convivente, namorado e amasiado, em face da sua mulher, por motivo de ciúme, atrai, por si só, a figura do feminicídio?

CIÚME

FEMINICÍDIO

HOMICÍDIO DOLOSO

LEI MARIA DA PENHA

PENAL

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Joaquim Leitão Júnior

Joaquim Leitão Júnior

12/07/2019

Há uma discussão travada na doutrina e na jurisprudência se a morte produzida pelo ciúme [2] de marido de maneira dolosa, em face da esposa, poderia acumular com a qualificadora de motivo torpe e ao mesmo tempo ser feminicídio. [3]

Essa discussão se desdobra em vários pontos, os quais ilustraremos adiante para melhor compreensão:

  • Se o feminicídio é de natureza subjetiva, conforme posição minoritária. Se o feminicídio é de natureza objetiva, posicionamento esse majoritário. [4-5]
  • Ainda há quem sustente que se teria uma hibridez, assim parte do feminicídio seria subjetiva (se afeta à discriminação de gênero) e outra, objetiva (relativa à violência doméstica ou familiar).
  • Há ainda quem visualize a possibilidade de o marido ceifar a vida da esposa, sem os componentes de violência doméstica ou de razões da condição do sexo feminino, sem cometer feminicídio, mas sim possível homicídio simples ou o homicídio com qualquer outra qualificadora que não a do inciso VI (feminicídio).

Descobrir em que consiste uma violência doméstica e familiar, assim como menosprezo ou discriminação à condição da mulher, parece-nos ser fundamental para o desate desses pontos nodais e de relevância à celeuma. Ademais, revelar as variações de violência doméstica e familiar, bem como menosprezo ou discriminação à condição da mulher, é fazer uma incursão no âmago da discussão e implica uma leitura atenta da Lei Maria da Penha, em que uma das hipóteses de incidência é justamente a relação íntima de afeto. E mais, para chegarmos ao conceito de feminicídio, impõe-se uma análise da Lei 13.104/2015, conjugada com a Lei Maria da Penha.

Com advento da Lei 13.104/2015, o homicídio doloso tentado ou consumado, em face da mulher em âmbito doméstico e familiar, ou por menosprezo ou discriminação da condição de mulher, passa a ser homicídio qualificado expressamente como “feminicídio”. Vejamos:

§ 2º-A Considera-se que há “razões de condição de sexo feminino” quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Nessa circunstância, em que o marido mata a esposa por ciúme [7], ocorre necessariamente um feminicídio, mormente quando voltamos o olhar aos arts. 5º[8] e 7º[9], ambos da Lei Maria da Penha. Por essas disposições, não conseguimos nos desvencilhar do fato de estarmos perante um feminicídio, diante da situação hipotética, em que o marido, convivente, namorado e amasiado mata dolosamente (ou tenta matar) a esposa (com as demais variáveis do estado civil) por ciúme.

O Superior Tribunal de Justiça, quando enfrentou a natureza do feminicídio, fê-lo como qualificadora de ordem objetiva – embora tenhamos nossas ressalvas nesse ponto.

Essa conclusão inicial pretoriana é importante, ao menos como ponto de partida, para averiguarmos possível compatibilidade de qualificadoras de ordem objetiva e de ordem subjetiva.

Teríamos nessa perspectiva outra problemática: se partirmos do pressuposto de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende ser o feminicídio qualificadora de ordem objetiva, seria possível conciliar com outra qualificadora e até mesmo com o privilégio? Não poderia apresentar uma possível antinomia perante a singularidade dessa situação? Em resposta às provocações contidas nos questionamentos, pelo menos no que toca às qualificadoras, a orientação do STJ tem sido no sentido que:

[…] considerando as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise (STJ, REsp 1.707.113/MG, Rel. Min. Felix Fischer, publicado no dia 07.12.2017).

E mais:

Não caracteriza bis in idem o reconhecimento das qualificadoras de motivo torpe e de feminicídio no crime de homicídio praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar (STJ, 6ª Turma, HC 433.898/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 24.04.2018 [Info 625]).

Então, na visão do Superior Tribunal de Justiça, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio.

Todavia, em contraponto extremamente elogiável (do qual comungamos do seu ponto de vista) a esse assunto que parece ganhar certa tendência na Corte referida, o promotor de justiça Francisco Dirceu Barros faz uma análise bem profunda sobre a temática, consignando que:

O Dissenso Doutrinário
No que tange à natureza da qualificadora do feminicídio, há grande controvérsia doutrinária.
1ª POSIÇÃO: FEMINICÍDIO É UMA QUALIFICADORA SUBJETIVA, PORTANTO É JURIDICAMENTE IMPOSSÍVEL A EXISTÊNCIA DE UM FEMINICÍDIO PRIVILEGIADO.
Defendo no livro Tratado doutrinário de direito penal que:
Entendo que qualificadora do feminicídio é subjetiva, na medida em que se enquadra na motivação do agente. Ou seja, é homicídio cometido por estritas razões relacionadas à condição de mulher, não havendo ligação com os meios ou modos de execução do crime. A violência doméstica, familiar e também o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher não são formas de execução do crime, e sim a motivação delitiva; portanto, o feminicídio é uma qualificadora subjetiva. [grifos nossos].
Assim, são qualificadoras:
a) Subjetivas (artigo 121, incisos I, II, V, VI e VII, do CP)
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II – por motivo fútil;
V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime;
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino;
VII – funcional.
b) Objetivas (artigo 121, incisos III e IV, do CP)
III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
No mesmo sentido é a posição de:
Cezar Roberto Bitencourt:
[…] o próprio móvel do crime é o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, mas é, igualmente, a vulnerabilidade da mulher tida, física e psicologicamente, como mais frágil, que encoraja a prática da violência por homens covardes, na presumível certeza de sua dificuldade em oferecer resistência ao agressor machista.
Alice Bianchini:
A qualificadora do feminicídio é nitidamente subjetiva. Uma hipótese: mulher usa minissaia. Por esse motivo fático o seu marido ou namorado a mata. E mata-a por uma motivação aberrante, a de presumir que a mulher deve se submeter ao seu gosto ou apreciação moral, como se dela ele tivesse posse, reificando-a, anulando-lhe opções estéticas ou morais, supondo que à mulher não é possível contrariar as vontades do homem. Em motivações equivalentes a essa, há uma ofensa à condição de sexo feminino. O sujeito mata em razão da condição do sexo feminino, ou do feminino exercendo, a seu gosto, um modo de ser feminino. Em razão disso, ou seja, em decorrência unicamente disso. Seria uma qualificadora objetiva se dissesse respeito ao modo ou meio de execução do crime. A violência de gênero não é uma forma de execução do crime; é, sim, sua razão, seu motivo.
É também a posição de: Márcio André Lopes Cavalcante, Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto, Eduardo Luiz Santos Cabette etc.
Conclusões Práticas da Primeira Posição
Sendo o feminicídio uma qualificadora subjetiva, haverá, impreterivelmente, três consequências:
a) As qualificadoras subjetivas (artigo 121, incisos I, II, V, VI e VII) não se comunicam com os demais coautores ou partícipes no concurso de pessoas. As qualificadoras objetivas (artigo 121, incisos III e IV) comunicam-se, desde que ingressem na esfera de conhecimento dos envolvidos.
b) Não é possível a qualificadora do feminicídio ser cumulada com o privilégio do artigo 121, § 1º, do Código Penal, ou seja, não existe feminicídio qualificado privilegiado, porque a doutrina e a jurisprudência dominante sempre admitiram, como regra, homicídio qualificado privilegiado, estabelecendo uma condição: a qualificadora deve ser de natureza objetiva, pois o privilégio descrito nos núcleos típicos do artigo 121, § 1º, são todos subjetivos, o que repele as qualificadoras da mesma natureza.
• Posição do STF: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da possibilidade de homicídio privilegiado qualificado, desde que não haja incompatibilidade entre as circunstâncias do caso. Noutro dizer, tratando-se de qualificadora de caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), é possível o reconhecimento do privilégio (sempre de natureza subjetiva) (HC 97.034/MG).
Posição do STJ: Admite-se a figura do homicídio privilegiado qualificado, sendo fundamental, no particular, a natureza das circunstâncias. Não há incompatibilidade entre circunstâncias subjetivas e objetivas, pelo que o motivo de relevante valor moral não constitui empeço a que incida a qualificadora da surpresa (RT 680/406).
c) As qualificadoras do feminicídio (natureza subjetiva) e as qualificadoras do motivo torpe e fútil (natureza subjetiva) não podem ser cumuladas, constituindo-se um verdadeiro bis in idem a possibilidade de cumulação, uma vez que o desprezível menosprezo à condição da mulher já é um motivo abjeto, repugnante, torpe.
É também da 2ª Câmara Criminal do TJMG:
A cumulação da qualificadora referente à futilidade do motivo do crime àquela do feminicídio configura o vedado bis in idem, uma vez que, inobstante a existência de respeitável entendimento em sentido diverso, ambas são qualificadoras de natureza subjetiva, já que estão ligadas à motivação do agente para a prática delitiva (Recurso em Sentido Estrito 0028221-64.2015.8.13.0572 (1), 2ª Câmara Criminal do TJMG, Rel. Beatriz Pinheiro Caires, j. 22.09.2016, Publ. 03.10.2016).
2ª POSIÇÃO: A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO É OBJETIVA, PORTANTO É JURIDICAMENTE POSSÍVEL A EXISTÊNCIA DE UM FEMINICÍDIO PRIVILEGIADO.
Nesse sentido:
Vicente de Paula Rodrigues Maggio:
Para o autor, com o advento da Lei 13.104/2015, que incluiu mais uma qualificadora no crime de homicídio, cinco passam a ser as espécies de qualificadoras: 1) pelos motivos (incisos I a II – paga, promessa ou outro motivo torpe, e pelo motivo fútil); 2) meio empregado (inciso III – veneno, fogo, explosivo, asfixia etc.); 3) modo de execução (inciso IV – traição, emboscada, dissimulação etc.); 4) por conexão (inciso V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime); e, a novidade, 5) pelo sexo da vítima (inciso VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino). Para Vicente Maggio, as qualificadoras previstas nos incisos III, IV e VI são objetivas.
Paulo Busato:
Para o autor, trata-se de dado absolutamente objetivo, equivocadamente inserido em disposição que cuida de circunstâncias de natureza subjetiva. A partir dessas premissas, lança-se observação acerca do motivo imediato, que pode qualificar o crime se aderente às hipóteses do art. 121, § 2º, incisos I, II e V, do Código Penal, quadro que não se confunde com a condição de fato, ou seja, com o contexto objetivo, caracterizador do cenário legal de violência de gênero.
É a posição das 1ª, 2ª, 3ª e 4ª Turmas Criminais do TJDFT (cf. TJDFT, Recurso em Sentido Estrito 20150310129458 (939432), 1ª Turma Criminal, Rel. Sandra de Santis, j. 06.05.2016, DJe 10.05.2016). Recurso da defesa não provido (TJDFT, RSE 20160310000568 (967751), 3ª Turma Criminal, Rel. Waldir Leôncio C. Lopes Júnior, j. 22.09.2016, DJe 28.09.2016).
E também da 1ª Câmara Criminal do TJMG:
As qualificadoras do feminicídio (natureza objetiva) e motivo torpe (natureza subjetiva) são distintas e autônomas, sendo possível o seu reconhecimento simultâneo, afastando-se, assim, o bis in idem (TJMG, Recurso em Sentido Estrito 2013983-98.2015.8.13.0024 (1), 1ª Câmara Criminal, Rel. Alberto Deodato Neto, j. 02.08.2016, unânime, Publ. 12.08.2016).
Na mesma linha, vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça:
1. O Tribunal a quo decidiu em conformidade com o entendimento desta Corte Superior, porquanto, tratando-se o motivo torpe (vingança contra ex-namorada) de qualificadora de natureza subjetiva, e o fato de a vítima e o acusado terem mantido relacionamento afetivo por anos, sendo certo que o crime se deu com violência contra a mulher, que, na forma da Lei nº 11.340/2006, é uma agravante de cunho objetivo, não se pode falar em bis in idem no reconhecimento de ambas, de modo que não se vislumbra ilegalidade no ponto.
2. Nessa linha, trecho da decisão monocrática proferida pelo Ministro Felix Fischer, REsp nº 1.707.113/MG (DJ 07.12.2017), no qual destacou que, considerando as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de análise. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp 1741418/SP, 5ª Turma, Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 07.06.2018).
Conclusões Práticas da Segunda Posição;
a) Sendo a qualificadora de feminicídio de natureza objetiva, é possível coexistir com a qualificadora de motivo torpe ou fútil.
b) Para essa posição, é possível um “feminicídio qualificado privilegiado”.
Filiamo-nos à primeira corrente, portanto entendemos ser juridicamente impossível a configuração da tese do “feminicídio qualificado privilegiado”.
OS GRANDES ERROS DA SEGUNDA TESE
Em algumas hipóteses, defender que o feminicídio é uma qualificadora objetiva seria interessante para fortalecer o combate à morte de mulheres, pois seria possível cumular a qualificadora objetiva do feminicídio com o motivo torpe ou fútil, que são subjetivos.
Assim, teríamos um feminicídio cumulado com motivo torpe.
É assim que vem decidindo o STJ:
Nos termos do art. 121, § 2º-A, II, do CP, é devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto, a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva. Agravo regimental improvido (AgRg no HC 440945/MG, 6ª Turma, Min. Nefi Cordeiro, j. 05.06.2018).
A segunda tese revela dois grandes erros, a saber:
Primeiro:
Torpe é o motivo baixo, abjeto, desprezível, repugnante, vil, ignóbil, que repugna a coletividade. Pergunta-se: matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino, motivado pelo menosprezo ou pela discriminação à condição de mulher, não é algo repugnante, vil, ignóbil ou repugnante?
Entendo que sim. Portanto, o feminicídio traz em sua essência o conceito de torpeza, caracterizando-se um verdadeiro bis in idem a cumulação das duas qualificadoras, feminicídio mais a torpeza.
Segundo:
O concurso entre a causa especial de diminuição de pena (homicídio privilegiado, artigo 121, § 1º) e as qualificadoras objetivas, que se referem aos meios e modos de execução do homicídio, é aceito pela doutrina majoritária e pela jurisprudência do STF e do STJ.
Dessarte, ao defender que o feminicídio é uma qualificadora objetiva, abre-se o temerário espaço para apresentação da tese de que o agente cometeu o feminicídio impelido por motivo de relevante valor moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima.
É a inaceitável e maquiavélica consolidação do:
“Feminicídio privilegiado: o privilégio de matar mulheres”.
UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL
Para unificar as posições divergentes, demandará muito tempo, ainda mais com a prevalência em nossa doutrina do garantismo penal condoreiro monopolar. Facilmente podemos prever que em pouco tempo será dominante a tese do “feminicídio privilegiado”.
O chamado garantismo penal condoreiro monopolar, ou seja, a doutrina que patrocina uma proteção exagerada e desproporcional ao réu na relação penal processual, e que hoje contamina grande parte da doutrina brasileira, logo fará a apressada filiação do feminicídio privilegiado, causando o usual fenômeno da violação ao princípio da proteção penal deficiente.
Cleber Masson, em citação à lição de Paulo de Queiroz, assinala:
Convém notar, todavia, que o princípio da proporcionalidade compreende, além da proibição do excesso, a proibição de insuficiência da intervenção jurídico-penal. Significa dizer que, se, por um lado, deve ser combatida a sanção desproporcional porque excessiva, por outro lado, cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofensividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se para mais quanto para menos.
No Brasil, além de não dispormos de um potencial legislativo eficaz para combater a ascendente criminalidade, temos que conviver com os exageros garantistas, como bem anotam Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna:
O exagero garantista, no sentido de que a “defesa tudo pode”, é tão gritante que chega a ponto de ensejar decisões inacreditáveis, que acabam fomentando comportamentos maliciosos, criminosos e desonestos dos réus no processo penal, desde que não venham a atingir os interesses de particulares, em uma visão individualista e – data venia – ultrapassada de um processo penal verdadeiramente democrático e garantista.
Prevendo o que pode ocorrer em um futuro breve, a única solução plausível para que matar mulher por razões de gênero não seja um fato fomentador de privilégio, defendo que o feminicídio deve ser retirado da qualificadora do homicídio e se tornar um crime autônomo com pena igual a do latrocínio, a saber:
Crime de feminicídio
Art. 121-A. Matar mulher motivado por razões da condição de sexo feminino:
Pena – reclusão, de vinte a trinta anos.
§ 1º Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Revogam-se o inciso VI e o § 2º-A do artigo 121 do Código Penal (BARROS, 2019, p. 1).

De qualquer modo, fazemos as ressalvas de não estarmos totalmente convencidos de ser possível compatibilizar qualificadora de feminicídio com relação ao privilégio pela singularidade em si da matéria, máxime por estarmos inclinados de que a qualificadora de feminicídio seria de índole subjetiva[10] – e não objetiva, data maxima venia como a maioria da doutrina tem pregado e o STJ chancelado.

Das considerações finais

Caminhando para o desfecho, entendemos que o marido, convivente, namorado e amasiado que mata dolosamente (ou tenta matar) a esposa por ciúme pratica necessariamente um feminicídio, mormente quando se visualiza a dicção dos arts. 5º e 7º, ambos da Lei Maria da Penha.

Por fim, encerramos com as ressalvas de que não estamos totalmente convencidos de ser possível compatibilizar qualificadora de feminicídio com relação ao privilégio pela singularidade em si da matéria, máxime por estarmos inclinados de que a qualificadora de feminicídio seria de natureza subjetiva – e não objetiva, como, a maioria da doutrina e o STJ têm firmado posicionamento, lembrando-se de que, para corrente que defender a qualificadora do feminicídio ser de ordem objetiva, estará dizendo que juridicamente é possível a existência de um feminicídio privilegiado. Obviamente, de outro lado, quem comungar do nosso entendimento, em que a qualificadora do feminicídio seja reputada de ordem subjetiva, estará dizendo juridicamente que não é possível a existência de um feminicídio privilegiado, pela incompatibilidade.

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REFERÊNCIAS

BARROS, Francisco Dirceu. Feminicídio privilegiado: o privilégio de matar mulheres. Publicado em 5 abr. 2019 no GEN Jurídico. Disponível em: [https://blog.grupogen.com.br/juridico/2019/04/05/feminicidio-privilegiado-o-privilegio-de-matar-mulheres/]. Acesso em: 7 jul. 2019.

CUNHA, Rogério Sanches. STJ: qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva. Publicado no Meusitejuridico.com. Disponível em: [https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2018/04/05/stj-qualificadora-feminicidio-tem-natureza-objetiva/]. Acesso em: 7 jul. 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal. Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 2.

STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 363.919/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 13.05.2014, DJe 21.05.2014.

STJ, REsp 1.707.113/MG, Rel. Min. Felix Fischer, publicado no dia 07.12.2017.

STJ, Habeas Corpus 430.222/MG, j. 15.03.2018.

STJ, 6ª Turma, HC 433.898/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 24.04.2018.

TJDFT, 1ª Turma Criminal, Acórdão 904781, 20150310069727RSE, Rel. George Lopes Leite, j. 29.10.2015, DJe 11.11.2015, p. 105.

TJRO, 2ª Câmara Criminal, APL 00003355920168220005, RO 0000335-59.2016.822.0005, Rel. Des. Valdeci Castellar Citon, j. 09.11.2016, DO 17.11.2016.


[1] Quanto ao marido, convivente, namorado e amasiado, partiremos da premissa de que o STJ já deliberou que nessas hipóteses de fatos ocorridos em âmbito doméstico e familiar, em face de sua consorte (com as demais variáveis do estado civil), estaremos diante da Lei Maria da Penha.
[2] Quanto ao ciúme, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça diz: “O sentimento de ciúme pode tanto inserir-se na qualificadora do inciso I ou II do parágrafo 2º, ou mesmo no privilégio do parágrafo 1º, ambos do art. 121 do CP, análise feita concretamente, caso a caso” (STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 363.919/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 13.05.2014, DJe 21.05.2014).
[3] Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
[…]
§ 2º Se o homicídio é cometido:
Feminicídio
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
[…]
Pena – reclusão, de doze a trinta anos.

[4] O festejado penalista Guilherme de Souza Nucci, enfrentando o feminicídio, pontua que se trata de “uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher”, advertindo que “o agente não mata a mulher somente porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, por motivos variados que podem ser torpes ou fúteis; podem, inclusive, ‘ser moralmente relevantes’, não se descartando, ‘por óbvio, a possibilidade de o homem matar a mulher por questões de misoginia ou violência doméstica; mesmo assim, a violência doméstica e a misoginia proporcionam aos homens o prazer de espancar e matar a mulher, porque esta é fisicamente mais fraca’, tratando-se de ‘violência de gênero, o que nos parece objetivo, e não subjetivo’” (NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal. Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 2, p. 46-47).
[5] No julgamento do Habeas Corpus 430.222/MG, julgado em 15.03.2018, a Corte de Cidadania negou a ordem de soltura sob – entre outros – o argumento de que as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio não são incompatíveis porque não têm a mesma natureza: enquanto a primeira é subjetiva, esta última (feminicídio) é dotada de caráter objetivo.
[6] Qualificadora. Feminicídio. Natureza objetiva (TJDFT). 1. Réu pronunciado por infringir o artigo 121, § 2º, inciso I, do Código Penal, depois de matar a companheira a facadas motivado pelo sentimento egoístico de posse. 2. Os protagonistas da tragédia familiar conviveram sob o mesmo teto, em união estável, mas o varão nutria sentimento egoístico de posse e, impelido por essa torpe motivação, não queria que ela trabalhasse num local frequentado por homens. A inclusão da qualificadora agora prevista no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal não poderá servir apenas como substitutivo das qualificadoras de motivo torpe ou fútil, que são de natureza subjetiva, sob pena de menosprezar o esforço do legislador. A Lei 13.104/2015 veio a lume na esteira da doutrina inspiradora da Lei Maria da Penha, buscando conferir maior proteção à mulher brasileira, vítima de condições culturais atávicas que lhe impuseram a subserviência ao homem. Resgatar a dignidade perdida ao longo da história da dominação masculina foi a ratio essendi da nova lei, e o seu sentido teleológico estaria perdido se fosse simplesmente substituída a torpeza pelo feminicídio. Ambas as qualificadoras podem coexistir perfeitamente, porque é diversa a natureza de cada uma: a torpeza continua ligada umbilicalmente à motivação da ação homicida, e o feminicídio ocorrerá toda vez que, objetivamente, haja uma agressão à mulher proveniente de convivência doméstica familiar (TJDFT, 1ª Turma Criminal, Acórdão 904781, 20150310069727RSE, Rel. George Lopes Leite, j. 29.10.2015, DJe 11.11.2015, p. 105).
[7] Apelação criminal. Feminicídio. Tentativa. Nulidade do julgamento. Exclusão das qualificadoras. Motivo fútil. Recurso que dificultou a defesa da vítima. Impossibilidade. Soberania do júri. Dosimetria. Discricionariedade do juiz. Exasperação justificada. Descabe a exclusão da qualificadora de motivo fútil quando comprovado nos autos que o crime de feminicídio foi motivado por ciúmes e pela intenção da vítima de romper o relacionamento conjugal. Caracteriza a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima o ato de o agente surpreendê-la, em meio a uma discussão rotineira, e persegui-la, reduzindo sua capacidade de defesa ao imobilizá-la aproveitando-se de sua superioridade física. Não há que se falar em decisão manifestamente contrária à prova dos autos quando existente versão coerente e consentânea com os meios de provas existentes nos autos. É lícita a fixação da pena acima do mínimo legal quando fundada na correta valoração das circunstâncias judiciais, com fundamento concreto em elementos observados nos autos e uso de uma das qualificadoras para aumento da pena-base, tendo o Juízo a quo apontado clara e precisamente os motivos para a escolha do patamar fixado, conforme lhe permite a discricionariedade (Apelação, Processo 0000335- 59.2016.822.0005, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, 2ª Câmara Criminal, Relator(a) do Acórdão: Des. Valdeci Castellar Citon, Data de julgamento: 09.11.2016) (TJRO, 2ª Câmara Criminal, APL 00003355920168220005, RO 0000335-59.2016.822.0005, Rel. Des. Valdeci Castellar Citon, j. 09.11.2016, DO 17.11.2016).
[8] Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015.)
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
[9]CAPÍTULO II
DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018.)
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
[10] Lembrando-se de que o feminicídio é homicídio cometido por motivações relacionadas, obviamente, à condição de mulher (sexo feminino), não existindo, em nosso sentir, liame com os meios ou modos de execução do crime. Outrossim, a violência doméstica, familiar e também o próprio menosprezo ou discriminação à condição de mulher são ingredientes contidos na legislação para ocorrer o feminicídio, não consistem em formas de execução do crime, mas propriamente a real motivação delitiva. Logo, o feminicídio nessa linha de raciocínio, é uma qualificadora de ordem subjetiva.


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